Autor Daniel Schenker
A desmedida lucidez da loucura
“O que a gente fizer não pode ser só uma aventura. Tem que ter os pés sujos da terra e as mãos levantadas para alcançar as nuvens, o coração eternamente aberto e a razão impulsionando o discernimento. Se não for assim, estaremos dentro de uma máquina em que ou engolimos ou somos engolidos”.
Trecho de uma carta enviada por Luiz Carlos Ripper à musicista e amiga Cecília Conde
Conheci Luiz Carlos Ripper quando era aluno da Casa das Artes de Laranjeiras. Logo no primeiro encontro, Ripper quebrou, de maneira contundente, as expectativas em relação a uma aula de interpretação. Ao invés de estimular os alunos a partirem para a prática, fez com que todos permanecessem, durante um semestre, sentados em arquibancadas dissecando a trilogia de Constantin Stanislavski – A preparação do ator, A construção da personagem e A criação do papel. Juntamente com ele, os alunos dividiram os textos de Stanislavski em Conceitos, Normas e Observações. Este trabalho propositadamente árido e minucioso foi feito com os dois primeiros livros – com o terceiro, não houve tempo.
A construção da história, o jogo da cena
Há uma evidente contradição no título do espetáculo da Cortejo Cia. de Teatro, que procura questionar a história oficial como verdade única, perspectiva que inviabiliza a transmissão e o valor de outras abordagens. Em determinado momento da montagem de Rodrigo Portella, um dos personagens afirma que a história precisa de heróis para ilustrar os livros, sinalizando que a realidade é mais complexa do que as versões normalmente estampadas.
A história oficial é produto de uma construção, assim como a cena teatral – parece frisar Rodrigo Portella ao promover esta associação. A concepção da cena fica à mostra diante do público. No início da apresentação há apenas um cone no palco, que os atores retiram para dar início ao jogo teatral. Trazem da coxia todos os elementos para a construção da cena: fachadas de casas (janelas e portas acopladas), banco, mesa, malas, gaiola, livros, relógio, copo, bule, arma, boneco, retratos (não por acaso, a cenografia é assinada por Rodrigo Portella). O vento é produzido por um ventilador acionado no palco. A música surge no instante em que um ator toca instrumento ou quando uma fita é acionada no aparelho (concepção de som e trilha original de Lucas Soares). A atriz ressalta o uso de peruca. Há proposital desconexão entre a descrição dos personagens e o physique du role dos atores.
Sexualidade em cena desenhada
Apresentado desde a primeira metade da década de 80, Porcos com asas volta à cena destacando o modo intenso e passional com que adolescentes administram a sexualidade. Os personagens desse texto de Mario Sergio Medeiros, inspirado no livro de Marco Radice e Lidia Ravera, despontam menos como individualidades e mais como símbolos de uma juventude em conflito, seja pelas questões que vêm à tona ao longo do rito de passagem para a vida adulta, seja pelo destemor em contestar uma arbitrária ordem pré-estabelecida no Brasil da ditadura militar.
Uma homenagem despretensiosa
A reinauguração do Teatro Ipanema, a cargo do coletivo Pequena Orquestra, atualmente encarregado pela ocupação do espaço, contou com uma homenagem a Hoje é dia de rock, a célebre montagem que se tornou uma febre teatral em 1971, marco do grupo liderado por Rubens Corrêa, Ivan de Albuquerque e Leyla Ribeiro. Agora, a Pequena Orquestra volta a evocar a peça de José Vicente através de um projeto conjunto que também reúne integrantes da Cia. das Inutilezas e da Cia. Dani Lima, todos sob a direção da argentina Lola Arias, encarregada ainda da dramaturgia.
Brasileiro por excelência
Ao longo do tempo, João Falcão vem conjugando as funções de dramaturgo e diretor, acúmulo perpetuado agora no musical Gonzagão – A lenda, concebido para homenagear Luiz Gonzaga no centenário de seu nascimento. A qualidade das músicas, a adesão do elenco e a vibração da cena credenciam esse espetáculo brasileiro por excelência que sublinha certas opções no que se refere à configuração da cena.
Uma das características mais evidentes na encenação de João Falcão é o palco limpo, que permanece assim durante boa parte da apresentação. Os atores entram trazendo os elementos referentes a cada cena e os levam embora ao final da passagem (cenografia e adereços a cargo de Sergio Marimba). Os músicos (direção musical de Alexandre Elias) emolduram esse espaço “vazio” por onde transitam os atores trajados em figurinos (de Kika Lopes) sempre criativos, que surpreendem sem apelar para o esfuziante. As tonalidades neutras imperam – com exceção de poucos momentos, como o do passional reencontro entre Gonzagão e Gonzaguinha. Contrastando com essa neutralidade, a iluminação (de Renato Machado) preenche a amplidão do palco do Sesc Ginástico com cores fortes (vermelho) – ou conferindo intensidade a tons frios (azul) – sobrepostas a uma cortina rendada ao fundo.