Autor Daniel Schenker
O desejo de não parecer teatro
O pastor lança como proposta um desejo de ocultação do ato teatral ao procurar reconstituir, de maneira fidedigna, um culto evangélico, no que se refere ao registro interpretativo do elenco, aos figurinos e à ambientação espacial.
Em relação ao trabalho dos atores há uma inegável aproximação desse objetivo, tendo em vista o esforço em imprimir uma não-atuação, um apagamento dos códigos de representação. Existe um encaminhamento no sentido de fazer com que os atores se assemelhem a um pastor incendiário, sua assistente e um frequentador do culto.
A história sob a perspectiva de quem conta
Nova montagem da Cia. Cortejo, de Três Rios, Antes da chuva destaca mais o ato de contar do que efetivamente um determinado enredo. Aramís e Ana – jovens com personalidades e expectativas distintas (ele, racional e temeroso, ela passional e decidida a deixar o povoado decadente onde moram) – se interrompem mútua e frequentemente, de modo a impedir que o outro continue contando a história de acordo com os seus interesses. Nenhum dos dois é portador de uma versão correta ou completa. Aramís e Ana se expressam movidos pela forma com que as experiências ficaram inscritas em cada um e pela maneira diferenciada com que gostariam que a vida em comum se desenrolasse.
Mecanismos de descentralização
A montagem de O controlador de tráfego aéreo reúne características do trabalho do diretor Moacir Chaves – frequentes antes da fundação da companhia Alfândega 88, com a qual se estabeleceu no Teatro Serrador. Possivelmente a conexão mais perceptível entre esse novo espetáculo e alguns anteriores resida na adoção como matéria-prima de elementos não só não teatrais como bastante áridos em suas concretudes. Em Bugiaria – realizado com a Péssima Companhia, coletivo capitaneado pelo diretor no final da década de 90 – um processo inquisitorial ganhou surpreendente transposição cênica. Em O jardim das cerejeiras, Chaves incluiu as rubricas da peça de Anton Tchekhov, ditas pelos atores durante a encenação. E em A negra Felicidade, já com a Alfândega 88, foi norteado pelos autos de um processo relacionado à reivindicação de uma escrava por sua liberdade.
Acúmulo de solidão em cena
Em Adágio, a solidão desponta como tema no texto de Gustavo Bicalho e Mauro Siqueira e como proposta de atuação, lançada a Suzana Castelo e, em especial, a Márcio Nascimento. Ao estabelecer “contracena” com um boneco em escala humana, o ator é levado a acumular uma dupla função: encarrega-se das motivações de seu personagem e manipula o outro da cena – no caso, o boneco –, responsabilizando-se por suas reações. É uma circunstância distinta da habitual, em que os atores são estimulados pelo contato com os parceiros de cena. Em mais um momento da montagem assinada por Gustavo Bicalho e Henrique Gonçalves, os atores contracenam por via indireta. A atriz interage com o boneco – por sua vez, manipulado pelo ator, cujo personagem não está em cena nesse instante. Diferentemente da primeira passagem mencionada, nessa os dois intérpretes se encontram envolvidos na construção da situação, mas o fato de não firmarem uma relação direta também remete a um solitário estar em cena.
A sinceridade e a limitação do relato emotivo
Novo trabalho do Grupo Garimpo, Tudo sobre minha avó se inscreve numa vertente de encenações recentes que buscam um registro de atuação transparente a partir da fala em primeira pessoa dos atores. Este projeto, como outros, investe numa quebra da hierarquia entre intérpretes e espectadores. Não por acaso, é realizado em espaços reduzidos e destinados a uma plateia concentrada.
Vale citar iniciativas que vêm percorrendo essa trilha, ainda que não de maneira semelhante. Em Ficção, reunião de monólogos da Cia. Hiato, cada ator discorria diante do público sobre acontecimentos de suas vidas, evidenciando o modo como se apropriaram dos fatos (portanto, como ficcionalizaram as experiências). Em Estamira, a atriz Dani Barros entrelaçava a jornada da personagem-título, realçando a lucidez contida em seu processo esquizofrênico, com o doloroso elo com a própria mãe. Em A alma imoral, Clarice Niskier se colocava frente aos questionamentos lançados pelo rabino Nilton Bonder em atuação destituída de vícios de declamação ou impostação. Em A falta que nos move… ou todas as histórias são ficção, os atores portavam a primeira pessoa, o que não significava que fossem os donos das histórias descortinadas.