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O teatro, sob muitos cuidados e em pleno movimento
É só uma história, um recorte de um dia na vida de uma família: o aniversário de um rapaz que está em uma cadeira de rodas, uma condição irreversível que sua mãe tem muita resistência em admitir. Ao longo desse dia, vários personagens aparecem, tanto aqueles que vivem na mesma casa, quanto os que vieram para o aniversário. Meu filho só anda um pouco mais lento, peça do dramaturgo croata Ivor Martinić, apresenta uma narrativa despretensiosa, sem sobressaltos aparentes. Um panorama. Muitos detalhes por imaginar. No elenco, Antonio Pitanga, Camila Moura, Elisa Lucinda, Enrique Diaz, Felipe Frazão, Hypólito, Leandro Santanna, Maria Esmeralda Forte, Simone Mazzer e Verônica Rocha.
A escolha feita pelo diretor Rodrigo Portella no contexto da pandemia e nas instalações do Oi Futuro, centro cultural que sedia e patrocina a obra, é bastante particular. Um projeto de teatro que não se materializa em um formato imediatamente reconhecível como teatro. Em uma sala de exposições, pouco mais de vinte televisores estão espalhados em um labirinto montado com telas pretas translúcidas que pendem do teto. Nos televisores, as cenas da peça, com fotografia e montagem de Pedro Murad, umas gravadas no teatro, com elementos de cena característicos do teatro, outras gravadas em espaços externos, em que se estabelecem outras relações entre as diversas personagens. Cada espectador escolhe se quer ver as cenas na ordem em que aparecem originalmente no texto, se seguem roteiros sugeridos ao fim de cada vídeo, ou ainda se querem entrar no modo aleatório. Em outra sala, que pode ser visitada antes ou depois do percurso pela narrativa, há retratos das personagens em vídeo, projetados nas paredes.
Tom e o barro – o complexo primitivo
Nota: Este texto foi originalmente publicado no livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó.

O ano de estreia da montagem brasileira de Tom na fazenda foi marcado pelo evidenciamento de uma expressiva onda conservadora que começou a se espalhar pelo Brasil e por tantos outros países como reação às liberdades conquistadas na virada do século. Em 2017, houve golpe político, movimentos de xenofobia, limpeza étnica, censura às artes, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, crises econômica, política e ética, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia. É nesse contexto que cai em nossas mãos Tom na fazenda, do canadense Michel Marc Bouchard.
A história sob a perspectiva de quem conta

Nova montagem da Cia. Cortejo, de Três Rios, Antes da chuva destaca mais o ato de contar do que efetivamente um determinado enredo. Aramís e Ana – jovens com personalidades e expectativas distintas (ele, racional e temeroso, ela passional e decidida a deixar o povoado decadente onde moram) – se interrompem mútua e frequentemente, de modo a impedir que o outro continue contando a história de acordo com os seus interesses. Nenhum dos dois é portador de uma versão correta ou completa. Aramís e Ana se expressam movidos pela forma com que as experiências ficaram inscritas em cada um e pela maneira diferenciada com que gostariam que a vida em comum se desenrolasse.
O passado eternizado

O projeto de O que você mentir eu acredito está fundado numa operação de Felipe Barenco sobre diversos contos de Caio Fernando Abreu. O autor realiza uma apropriação literária, recortando frases de seus contextos originais e inserindo-as numa nova configuração dramatúrgica. As frases são reunidas numa história única, que, contudo, preserva um caráter fragmentado.
Felipe Barenco expõe um painel de acidentada comunicabilidade familiar entre integrantes de diferentes gerações. Logo no começo da apresentação, os tempos mortos sobressaem através de um silêncio decorrente de um modo de funcionamento em que o principal não é verbalizado. Entretanto, para além desse enredo generalizante, o autor especifica questões. Em cartaz no Teatro Sesi, O que você mentir eu acredito se revela como uma peça sobre o descompasso temporal vivenciado por personagens que permanecem atrelados a uma tragédia ou que se conscientizam tarde demais de terem desperdiçado um período impossível de ser recuperado. Apesar de não possuírem obviamente acesso ao passado, os personagens se mostram estacionados nele.
A construção da história, o jogo da cena

Há uma evidente contradição no título do espetáculo da Cortejo Cia. de Teatro, que procura questionar a história oficial como verdade única, perspectiva que inviabiliza a transmissão e o valor de outras abordagens. Em determinado momento da montagem de Rodrigo Portella, um dos personagens afirma que a história precisa de heróis para ilustrar os livros, sinalizando que a realidade é mais complexa do que as versões normalmente estampadas.
A história oficial é produto de uma construção, assim como a cena teatral – parece frisar Rodrigo Portella ao promover esta associação. A concepção da cena fica à mostra diante do público. No início da apresentação há apenas um cone no palco, que os atores retiram para dar início ao jogo teatral. Trazem da coxia todos os elementos para a construção da cena: fachadas de casas (janelas e portas acopladas), banco, mesa, malas, gaiola, livros, relógio, copo, bule, arma, boneco, retratos (não por acaso, a cenografia é assinada por Rodrigo Portella). O vento é produzido por um ventilador acionado no palco. A música surge no instante em que um ator toca instrumento ou quando uma fita é acionada no aparelho (concepção de som e trilha original de Lucas Soares). A atriz ressalta o uso de peruca. Há proposital desconexão entre a descrição dos personagens e o physique du role dos atores.