A construção da história, o jogo da cena
Crítica da peça Uma História oficial, da Cortejo Cia. de Teatro
Há uma evidente contradição no título do espetáculo da Cortejo Cia. de Teatro, que procura questionar a história oficial como verdade única, perspectiva que inviabiliza a transmissão e o valor de outras abordagens. Em determinado momento da montagem de Rodrigo Portella, um dos personagens afirma que a história precisa de heróis para ilustrar os livros, sinalizando que a realidade é mais complexa do que as versões normalmente estampadas.
A história oficial é produto de uma construção, assim como a cena teatral – parece frisar Rodrigo Portella ao promover esta associação. A concepção da cena fica à mostra diante do público. No início da apresentação há apenas um cone no palco, que os atores retiram para dar início ao jogo teatral. Trazem da coxia todos os elementos para a construção da cena: fachadas de casas (janelas e portas acopladas), banco, mesa, malas, gaiola, livros, relógio, copo, bule, arma, boneco, retratos (não por acaso, a cenografia é assinada por Rodrigo Portella). O vento é produzido por um ventilador acionado no palco. A música surge no instante em que um ator toca instrumento ou quando uma fita é acionada no aparelho (concepção de som e trilha original de Lucas Soares). A atriz ressalta o uso de peruca. Há proposital desconexão entre a descrição dos personagens e o physique du role dos atores.
A cena é explicada – e não concretizada em sua inteireza – diante da plateia. Os atores falam sobre uma cidade e a simbolizam por meio de poucos elementos. Devido à óbvia impossibilidade de materializar a cidade no palco, o espetáculo aposta na imaginação do espectador. O diretor lembra que a limitação do teatro é a sua riqueza. Os mecanismos de evidenciação da cena quebram a ilusão da fábula apresentada e trazem à tona a influência de Bertolt Brecht, realçada ainda por frases destacadas para suscitar reflexão no público e por uma “trama” (texto de Rodrigo Portella e Tairone Vale) centrada em primitivas relações de poder.
Um jogo entre dominadores e dominados que também remete ao jogo teatral, dividido, mesmo que de maneira generalizante e reducionista, entre quem conduz (o diretor) e os que seguem as indicações (os atores). Em Uma História oficial, um ator interpreta, em certos momentos, a figura do diretor. A criação da cena é tematizada, mas sem que a exposição do mecanismo leve a um desmascaramento do ator ou a uma transparência do ato teatral. Os atores, apesar de referidos como tais, permanecem interpretando papéis. E o teatro se mantém como manifestação artística artificial, na medida em que decorrente de um processo de construção.
Daniel Schenker é doutorando da UniRio.