Uma homenagem despretensiosa
Crítica da peça Hoje é ontem também, com direção de Lola Arias
A reinauguração do Teatro Ipanema, a cargo do coletivo Pequena Orquestra, atualmente encarregado pela ocupação do espaço, contou com uma homenagem a Hoje é dia de rock, a célebre montagem que se tornou uma febre teatral em 1971, marco do grupo liderado por Rubens Corrêa, Ivan de Albuquerque e Leyla Ribeiro. Agora, a Pequena Orquestra volta a evocar a peça de José Vicente através de um projeto conjunto que também reúne integrantes da Cia. das Inutilezas e da Cia. Dani Lima, todos sob a direção da argentina Lola Arias, encarregada ainda da dramaturgia.
Em Hoje é ontem também, projeto propositadamente gestado no meteórico prazo de duas semanas, os atores (Emanuel Aragão, Fernanda Félix, Joana Lerner, Liliane Rovaris, Michel Blois, Rodrigo Maia e Thiare Maia) evocam o momento em que a casa de Rubens Corrêa deu lugar a um prédio, onde no térreo passou a funcionar o Teatro Ipanema. A história é anterior. Rubens e Ivan fundaram o Teatro do Rio em 1959 e se fixaram no Teatro São Jorge (atual Cacilda Becker). Na mudança, rebatizaram o teatro de Ipanema, inaugurado em 1968 com a montagem de O jardim das cerejeiras, de Anton Tchekhov.
Os atores enumeram outros tópicos: destacam o primeiro elenco da encenação de Hoje é dia de rock, constatando o falecimento da grande maioria; propõem expressões para os entrevistados (cujas vozes são acionadas em off) que assistiram diversas vezes ao espetáculo histórico; reproduzem conversas com familiares sobre o tumultuado contexto político brasileiro de 1971; e abrem espaço para o depoimento de um ator (Alexandre Lambert) que participou da montagem original.
Em Hoje é ontem também, os atores procuram suscitar uma relação de cumplicidade com os espectadores (em número reduzido – 45 por apresentação), ainda que não haja a ambição de reconstituir a comunhão que marcou o Hoje é dia de rock do início dos anos 70. O público é disposto no palco e os atores ficam espalhados pela plateia em meio a plantas (uma interessante, mesmo que algo gratuita, proposta cenográfica de Elsa Romero). A rapidez com que o projeto foi concebido acabou se tornando uma aliada no estabelecimento de uma relação desarmada com a plateia. Apesar de elenco e público permanecerem em planos divorciados, o desejo de instalar uma conexão menos hierarquizada do que a habitualmente encontrada no teatro se materializa. Os espectadores se sentem à vontade para fazer breves intervenções, que são integradas a uma proposta cênica maleável, desarmada, despretensiosa.
Mas os efervescentes e contestadores anos 70 parecem distantes dos dias atuais, mais pragmáticos, menos utópicos. A articulação temporal talvez desponte tão-somente na oportuna curiosidade de jovens artistas acerca de uma encenação emblemática do teatro brasileiro e do universo que a cerca. Os atores saíram à cata de registros da época. Inevitavelmente, porém, as lembranças que vêm à tona em relação a Hoje é dia de rock e ao contexto de quatro décadas atrás evidenciam a impossibilidade de acessar os fatos como eles se deram. Afinal, a memória implica em acréscimos e subtrações aos acontecimentos originais, de acordo como foram percebidos individualmente. O passado não é reconstituído com exatidão, mas por meio do filtro da subjetividade de cada um. Possivelmente pelo fato de a diretora e dramaturga ser estrangeira e de os atores não terem vivenciado a época, o que torna todos mais suscetíveis a um certo senso-comum, Hoje é dia de rock acaba ressurgindo em sua faceta mais folclórica (a conexão entre o espetáculo e as experiências com drogas). Se por um lado não é uma abordagem falsa, por outro soa um tanto limitada, tendo em vista a importância da peça de José Vicente como dramaturgia (existem desafios estruturais consideráveis) e do espetáculo de Rubens Corrêa como proposta teatral.
Daniel Schenker é doutorando da UniRio.