Estudos
Mutuando saberes no percurso da experiência
Depois de passar cinco intensos dias em Paraty para vivenciar as atividades da primeira edição do Festival Mutuá entre 21 e 25 de setembro de 2022, me dedico a esta breve reflexão sobre este projeto tão relevante, organizado pelo Polo Sociocultural Sesc Paraty para promover um encontro entre as artes cênicas e os saberes populares. Como diz a Maira Jeannyse, analista de cultura em Artes Cênicas e responsável por esta realização, o Mutuá não é um “evento”. Com isso, ela explica que não se trata de uma produção pontual (que também tem o seu valor), mas de um trabalho continuado. Assim, além de um momento de condensação de encontros e atividades, o Mutuá também pode ser pensado como um desdobramento de algumas atividades que se deram antes e uma aposta para a continuidade delas. Penso também que o Mutuá veio para riscar mais um traçado no chão da cidade que habita, reafirmando, com um novo gesto, o evidente comprometimento das atividades do Polo Sociocultural Sesc Paraty com o território em que está situado, especialmente depois de alguns anos em que tantas atividades precisaram acontecer exclusivamente no modo online. O Mutuá seria, então, uma culminância, uma concentração, uma reunião de forças que condensa, em uma semana, algumas das convivialidades que o Sesc Paraty promove ao longo do ano. O Mutuá surge como desdobramento das atividades mais recentes do APA (Ateliê de Pesquisa do Ator) e do Decanto de Dança.
Arquivo inventado e a cena como máquina do tempo em Cancioneiro Terminal
Olhando agora essas imagens pensamos que elas, assim como as legendas,
serão sempre insuficientes. Esse é o filme que conseguimos fazer.
(créditos de abertura da performance-filme Cancioneiro Terminal)
Praça da República, São Paulo. Sexta-feira, 13 de março de 2020. Caminhava sozinho em direção à Biblioteca Mário de Andrade, para assistir à apresentação de Cancioneiro Terminal, quando as mensagens de fechamento dos equipamentos culturais por motivos de segurança sanitária começaram a chegar pelo telefone. Pairava entre nós certa aflição e desconfiança diante dos noticiários que ao longo de todo o verão atualizavam a elevada taxa de mortalidade na Europa. Àquela altura ainda não havia sido notificada nenhuma morte por COVID-19 no Brasil e constavam apenas 107 casos confirmados de infecção pela doença. Esse percurso a pé até o teatro estabelecia na vida daquele coletivo artístico e daqueles espectadores (eu incluso), sem que soubessem, o início exato do primeiro confinamento no país e da modulação de diversas práticas de convivência, dentre elas, as artes da cena.
Trabalho do ator sobre si mesmo: cuidar das sementes e das raízes do conhecimento, sem pensar na flor, no resultado.
“De que modo é possível se debruçar sobre um conhecimento tão profundo como o do trabalho do ator sobre si mesmo desenvolvido por Stanislávski[1] em seu Sistema?
De que maneira abordar um conhecimento que se manteve em permanente evolução sem jamais ter se fixado em nenhum conceito que o levasse a uma conclusão definitiva?
Como tornar concreto por meio da palavra escrita um trabalho em seu processo sem fim, que começa pela compreensão da prática singular de cada um e segue se desenvolvendo indefinidamente?
Quais os meios possíveis para que se possa assimilar e transmitir um conhecimento que se configura como herança viva?” (Zaltron, P.317)
Formular perguntas é um dos aprendizados mais caros para o ser humano. E se esse ser humano for uma atriz, diretora e pedagoga, as formulações são preciosas porque movem todo o processo de pesquisa, de criação e provavelmente, de uma vida. Essas questões foram as companheiras da autora Michele Almeida Zaltron e, a partir da sua escrita, penso que o prazer, a obsessão, a vocação e o comprometimento com a transmissão parecem ser definidores para a criação de seu livro Stanislávski e o Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo que foi publicado em 2021, pela editora Perspectiva numa parceria com o CLAPS (Centro Latino-Americano de Pesquisa Stanislávski)[2], uma iniciativa do Teatro Escola Macunaíma[3].
Corpos, sons, textos, imagens e telas
O coletivo Pandêmica, que desde o começo da quarentena produz espetáculos como 12 pessoas com raiva ou eventos como Orgulhe, também se propôs a abraçar outros projetos e ser palco-tela para artistas que estão produzindo arte-teatro-afeto de distintos lugares do Brasil. Desta vez, propiciou algo que se faz necessário quando profissionais da arte nos tornamos: pensar, refletir, discutir sobre os temas: dança, atuação, direção musical, direção e dramaturgia.
Mas, pergunto-me agora, como escrever sobre tais temas, sobre os encontros sobre tais temas, sobre como se produziram esses temas nas nossas telas (palcos-casas)? Os encontros performativos, que agora são plasmados nessas palavra-papel DIGITAL a partir de uma escrita ou ex-crítica performaAtiva, são divididos assim, nestes eixos descritos acima, em caixinhas mesmo… pois não é pelas caixinhas-telas, que nos comunicamos atualmente? Talvez tentando sair das caixas, mas apropriando-se do que é possível em meio a esse caos (vide pandemia mundial, quarentena, isolamento, bolsonarismo genocida), eu, Maria Lucas, que aqui escrevo como crítica (?), estive no encontro sobre atuação, como atuadora-artista. Ao receber o convite, lancei uma questão para a equipe, levada a ser despontada na noite do encontro (via telas). Questionei sobre atuação, mas mais ainda sobre A – TUA – AÇÃO. O que você atua, como? Na casa, na vida. Teatro-Arte-Tela-Vida é política(?).
Uma nova fotografia de cena – ou deveríamos chamá-la por outro nome?
Quando a pandemia da COVID-19 alcançou o Brasil, eu estava na cidade de São Paulo realizando a cobertura da sua Mostra Internacional de Teatro, a MIT-sp. Nos últimos dias do evento, convivemos com teatros fechando, espetáculos sendo cancelados ou alterando seus locais de apresentação. De volta a Belo Horizonte, em poucos dias tudo estava fechado. Aqueles haviam sido meus últimos espetáculos presenciais fotografados em 2020. Voltei a entrar em um teatro apenas no último mês de julho.
No primeiro momento, aproveitei para me debruçar sobre a edição do material da mostra, acreditando, como grande parte da população brasileira, que a quarentena imposta faria jus ao que seu nome sugeria. Uma parada nas atividades por algo em torno de 40 dias para, aos poucos, retomarmos o ritmo de trabalho. Com o passar tempo, fomos vendo que isso estava muito distante da dura realidade dos fatos.
Finalizada a organização das fotos da MIT, comecei a acompanhar pelo computador as primeiras experiências online que os artistas da cena vinham criando, pois com os teatros fechados, outros caminhos precisavam ser buscados. O momento estava dado à experimentação.
Mas e a fotografia?