Críticas

Fisionomia elaborada pela linguagem

10 de dezembro de 2008 Críticas

O monólogo Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é uma experiência poética encenada. A inspiração e a dramaturgia resultam do livro organizado por Viviane Mosé sobre a obra textual de Stela do Patrocínio, interna por mais de 20 anos na Colônia psiquiátrica Juliano Moreira. Mosé elaborou uma transcrição poética das falas de Stela e a encenação parece ser a fisionomia dessas palavras, ou seja, sua transformação em criação de mundo, de imaginário lingüístico. A voz de Stela que surge em off logo no início do espetáculo, a meu ver, é elemento preciso dessa intenção da palavra como forjadora de materialidade.

A força verborrágica do texto é traduzida por uma cena desdramatizada na qual as palavras parecem compor toda a fisionomia, ou seja, estão aparentes, compõem uma tecitura que cria o imaginário do mundo de Stela na medida em que o nomeia. A direção de Haroldo Rego não propõe a construção de qualquer noção de personagem, mas cria uma zona de penumbra. Se a linguagem nos coloca no mundo (dá nome as coisas mesmo antes de sabermos delas), a abrangência de sensações no espetáculo se dá por meio de uma região de “quase luminosidade” onde existe uma medida sutil de revelação e apagamento.

A operação cênico-dramatúrgica não perde de vista o fato de que parte de uma escrita poética, de uma linguagem que é pura intermediação, onde não se pode aderir a nenhuma noção de verdade, e sim a uma percepção de possibilidades de verdades.

O trabalho da atriz Raquel Rocha está em sintonia com a inquietação em torno da noção de presença no teatro. Raquel não constrói a personagem Stela, mas dá a ver uma criatura que contém a consciência de ser observada, ao mesmo tempo em que consegue estabelecer com o espectador o acordo tácito que nos faz acreditar. Essa experiência de presença é algo que aponta, que tem característica de linguagem na medida em que nomeia Stela por meio de uma ressonância, assim como quando dizemos o nome de uma pessoa querida e acontece algo como saudade. Não vemos a loucura encenada, mas uma mulher com sua lucidez destroçada.

A cenografia também é um dizer, porque organiza o espaço de comunhão e sacrifício da mesa do altar, ou seja, projeta condições físicas e psíquicas da vida de Stela. Não se trata aqui de pensar os elementos cenográficos a partir de nenhuma semiologia que designe uma relação de signos. A simplicidade dos objetos como oferendas de comunhão criam uma zona marginal de sentido, como por exemplo, a possibilidade de um tom grotesco do fantoche e a noção de que o tempo do relógio – cronológico – quase nada tem a nos dizer. A temporalidade da cena oferece certas suspensões que são como um vão, um espaço para a participação do espectador. Voltamos à ação de comungar (cena/espectador) que a cenografia materializa. No lugar central da mesa, normalmente reservado ao cálice sagrado, alguns papéis com um apontamento biográfico de Stela. Ao final do espetáculo, os papéis lançados para o alto parecem sinalizar a condição pulverizada do próprio psiquismo que nos lembra da nossa condição de banidos, de sem-lugar, de desenturmados.

Schiller em Sampã

10 de dezembro de 2008 Críticas

O dramaturgo Friedrich Schiller está vivo em São Paulo. Sua divisa tempestade e ímpeto ressoa em dois diferentes palcos da cidade: Os Bandidos, em montagem capitaneada por José Celso Martinez Correa para o grupo Oficina e em Rainha[(s)], realização de Cibele Forjaz.

Os Bandidos foi convenientemente reciclada e ambientada na Sampã pós-moderna e inter-galática que exprime e metaforiza a contenda que opõe, há mais de 20 anos, o Oficina e Silvio Santos, em razão do uso dos terrenos adjacentes ao histórico edifício teatral, tombado pelo patrimônio histórico. Pela lei de zoneamento da cidade uma área de 300 metros em volta de um bem tombado fica embargada, para evitar que qualquer alteração desfigure o centro do tombamento. Ocorre que, no caso do Oficina, foi tombado apenas a atividade (ou seja, sua destinação teatral e não o prédio ele mesmo), o que vem possibilitando a aludida contenda com um vizinho bastante incômodo, a sede administrativa do grupo empresarial que controla o Sistema Brasileiro de Televisão e que pretende, naqueles terrenos, construir um shopping center.

Identidade em questão

24 de novembro de 2008 Críticas
Atores: Lucas Gouvea e Leonardo Corajo. Foto: divulgação.

A particularidade do espetáculo Manifesto Ciborgue, dirigido por Joelson Gusson, parece ser a de ser constituído por uma tensão sutil entre elementos mais propriamente formais, nos quais aparecem um teor crítico, e instâncias subjetivas que desmontam as imposições dessa crítica. A meu ver, a sensação para o espectador é a de que não existe um posicionamento definido, surgindo condições de possibilidade de quebrar com sentidos pré-fixados.

Sobre Meyerhold

20 de novembro de 2008 Críticas
Ator: Eduardo Pavlovsky. Foto: Antonio Fernandez.

O espetáculo Variaciones Meyerhold, que fez apresentações nos dias 3 e 4 de novembro no Teatro Poeira, é um trabalho do ator e dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky sobre o diretor russo Vsevolod Emilievich Meyerhold, dirigido por Martín Pavlovsky. A peça conta com intervenções curtas de Susana Evans – como Zinaida Rajch, mulher de Meyerhold – e de Eduardo Misch.

Atuação e espaços fechados

15 de novembro de 2008 Críticas

Prorrogada até dia 7 de dezembro no teatro Solar de Botafogo, a temporada da peça Traição com direção de Ary Coslov, nos possibilita a chance de ver encenado um texto de Harold Pinter, dramaturgo inglês dos mais importantes da segunda metade do século XX. Com uma escrita muito singular, os personagens de Pinter encontram-se antes de tudo em um aqui e agora fechado, onde nem sempre podemos detectar com clareza o que querem, a que vieram ou o que farão; Constituem-se como forças que estão em um limite, como é o caso de Traição. O espaço fechado em que se encontram (um quarto, uma sala, etc.) é o lugar confinado que se constitui como um útero para esses personagens, um lugar de proteção que os fecha e que pretende fechar-se das forças que vêm de fora. Há sempre um embate de forças que não se dão a ver, num discurso habitado de ameaças, violações e revelações, num discurso combativo. Alguém quer acertar contas, alguém quer repassar o passado, esconder o presente; por meio dos diálogos quase coloquiais, que beiram o trivial e ganham força dramática através das pausas e silêncios — o não dito que é tão eloqüente quanto aquilo que é dito. Em Traição, essas “marcas” pinterianas estão todas presentes e o que se vê na encenação de Coslov é um cuidado com esses traços. Há um enorme respeito com essa dramaturgia, o que gerou uma montagem bastante convencional e sem riscos.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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