Schiller em Sampã

Crítica das peças Os Bandidos e Rainha[(s)]

10 de dezembro de 2008 Críticas

O dramaturgo Friedrich Schiller está vivo em São Paulo. Sua divisa tempestade e ímpeto ressoa em dois diferentes palcos da cidade: Os Bandidos, em montagem capitaneada por José Celso Martinez Correa para o grupo Oficina e em Rainha[(s)], realização de Cibele Forjaz.

Os Bandidos foi convenientemente reciclada e ambientada na Sampã pós-moderna e inter-galática que exprime e metaforiza a contenda que opõe, há mais de 20 anos, o Oficina e Silvio Santos, em razão do uso dos terrenos adjacentes ao histórico edifício teatral, tombado pelo patrimônio histórico. Pela lei de zoneamento da cidade uma área de 300 metros em volta de um bem tombado fica embargada, para evitar que qualquer alteração desfigure o centro do tombamento. Ocorre que, no caso do Oficina, foi tombado apenas a atividade (ou seja, sua destinação teatral e não o prédio ele mesmo), o que vem possibilitando a aludida contenda com um vizinho bastante incômodo, a sede administrativa do grupo empresarial que controla o Sistema Brasileiro de Televisão e que pretende, naqueles terrenos, construir um shopping center.

A contenda não apenas opõe capital e trabalho, mas também arte e comércio, sonho e realidade, um projeto urbanístico libertário e democrático de ocupação contra outro privatizante e exploratório. Em cascata, as metáforas vão e vêm, desde que o jovem alemão, em 1781, escreveu Die Räuber (Os Bandoleiros, Os Piratas, Os Ladrões ou simplesmente Bandidos), evocando as disputas entre uma nobreza decadente e corrupta e os anseios de jovens que pretendiam a república e o fim dos privilégios sociais. Imediatamente saudado como revolucionário, o texto de Schiller estreou em Mannheim no ano seguinte, assegurando ao poeta de 22 anos a glória precoce.

Na encenação de José Celso o texto foi convertido numa antropofágica tragikomédiorgya em versos de sabor hip-hop, uma ópera de carnaval que opõe Cosme e Damião como chefes dos grupos rivais que disputam o legado do pai-Ogum. Kosmos (Aury Porto) e Damian (Marcelo Drummond) são os filhos de Doum, o alquebrado capitão-em-chefe da poderosa fábrica de telenovelas PWCSS, império que entra em crise com a luta entre os irmãos. O strume und mangue – recriação daquela primitiva força germânica agora convertida em poliedro do mal – é composto por figurinhas como Diadorim, Spielberg, Ratocogato, Gira, Obrranca, Josephina, Bucetão, Che Cyber e Bin Trotsky, uma quadrilha pra bandido nenhum botar defeito. E há ainda Ariadne Brazilha, cantora de ópera que encanta os dois irmãos e torna-se novo alvo de disputa entre eles.   

O espetáculo dura seis horas. Nem todos resistem à overdose, mas não se pode dizer que alguém saia ileso dali. Poderosa, envolvente, articulada ao som da banda ao vivo, um fluxo de energia percorre o longo corredor do Oficina espalhando, como convém ao ardor irresistível da poesia schilleriana, labaredas de significações. Não me lembro de nenhuma encenação anterior do grupo na qual os recursos multimídia tenham sido tão explorados e integrados à narrativa.

Ao completar 50 anos de vida, o que o torna o mais antigo grupo teatral em atividade no país, o Oficina respira um ar jovial nesse rito de passagem no qual sua figura magna, José Celso Martinez Corrêa, surge parodiada em cena, interpretado por Marcelo Drummond, como uma espécie de gênio perverso polimorfo. Polimorfia que, aos 71 anos, continua a distingui-lo como um dos mais inventivos encenadores que o país já produziu.

Mary Stuart e sua famosa cena imaginária que opõe duas rainhas fornece o gás para que Georgette Fadel (Elizabeth I) e Isabel Teixeira (Mary Stuart)  se reúnam num círculo de desafios onde Schiller é apenas um êmulo. A encenação de Cibele Forjaz organizou um conjunto de enfrentamentos entre as intérpretes: as atrizes ensaiam o texto clássico, inicialmente, o que faz com que manifestem distintos pontos de vista sobre ele. Elas disputam, porém, o coração da situação – centro metafórico da cena – uma grade projetiva que as faz entrar e sair das criaturas, de si mesmas, de seus processos criativos e fantasmas pessoais, incorporando e desdizendo vozes, diferentes chamamentos à razão e aos sentimentos. Até que as rainhas estejam vestidas e prontas para a batalha.

Cibele é uma encenadora auto-proclamada antropofágica. Para sua montagem requisitou elementos de diversas ordens, amalgamando-os e fundindo-os, mas sem deixar desaparecer suas matrizes pulsionais. A performance, a instalação, a performatividade são procedimentos que a ajudaram a estruturar a cena. Georgette e Isabel, limites de si mesmas e expansões energéticas de outros eus, entregam-se de corpo e alma (mais de alma) aos desígnios da encenadora, que as torce, dispersa, enovela e distribui no espaço, compondo novas territorialidades para esse teatro psico-físico.

Há um labirinto marcando o chão, há algo de full contact nos gestos e medidas, signos polissêmicos de uma arena real e imaginária onde leoas se devoram. Sobra sangue sobre o chão, real e metafórico. O público é convidado a votar, como no circo romano, se Mary Stuart deve ou não ter a cabeça decepada. Como sabemos que a soberana subirá ao patíbulo, seja qual for o resultado do escrutínio, esse recurso é mais um truque pós-dramático dentre tantos outros. Mas serve para que a História possa ser repensada, que seus móveis sejam revistos, à luz das regras dos esportes onde o vencedor é aquele que detém maior força ou maior astúcia.

Os Bandidos e Rainha[(s)] indicam uma assemelhada perspectiva: a vida é um jogo, os desafios são eternos, as estratégias de sobrevivência necessitam de revisões constantes. Tudo o que Schiller pensou e maquinou, naquele tempo de passagem entre um século e outro, em quase tudo semelhante também à nossa passagem de um tempo a outro.

Os dados foram lançados. Resta saber quem vai levar dessa vez.

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