Identidade em questão

Crítica da peça Manifesto Ciborgue

24 de novembro de 2008 Críticas
Atores: Lucas Gouvea e Leonardo Corajo. Foto: divulgação.

A particularidade do espetáculo Manifesto Ciborgue, dirigido por Joelson Gusson, parece ser a de ser constituído por uma tensão sutil entre elementos mais propriamente formais, nos quais aparecem um teor crítico, e instâncias subjetivas que desmontam as imposições dessa crítica. A meu ver, a sensação para o espectador é a de que não existe um posicionamento definido, surgindo condições de possibilidade de quebrar com sentidos pré-fixados.

O espetáculo parte de questões de estudos da cultura inspirados em A Cyborg Manifesto da professora da Universidade da Califórnia, Donna Haraway. O referido manifesto propõe idéias que desmontam nossas noções totalitárias de identidade por meio da perspectiva da imbricação entre tecnologia e o corpo humano, ressaltando que este se constitui de modo contraditório e parcial. Esta transformação de perspectiva, ou seja, a percepção da fragilidade de nossas noções identitárias e o agravamento da compreensão de que somos uma construção cultural, transforma-se em materialidade sutil no espetáculo.

A meu ver, o trabalho dos atores é o maior responsável por dar a ver as possíveis ambigüidades que a direção sugere. Todas as imagens de dispositivos tecnológicos integrados ao corpo humano, de cirurgias plásticas, de tratamento, ou de exercícios físicos que almejam a preservação da juventude estão problematizadas por uma cena elaborada por meio de alusões e pelo esmaecimento do lugar do texto. O registro de atuação é acentuado por uma procura de neutralidade e uma fala desdramatizada.  O que resulta desse movimento é o aparecimento de instâncias delicadas que não pretendem acertar nenhum alvo comunicativo. Neste contexto, a beleza física e a sensualidade de Leonardo Corajo parece ser elemento constitutivo de uma narrativa fugidia que não se impõe à força. Um belo momento de Corajo é sua constituição caricatural do feminino que está problematizada por sua voz masculina e suave ao mesmo tempo, quando fala o poema de WJ Solha. Lucas Gouvêa expõe ascetismo e certa objetividade, porém, não deixa de participar de uma sensualidade que permeia os corpos dos dois atores.

A cenografia, também ascética, congrega as imagens de uma sala de hospital com uma galeria de arte criando um ambiente que está pronto a desprezar qualquer idéia de sensação corporal. Se o ascetismo e a brancura tendem para o triunfo do espírito sobre o sofrimento proveniente de nossos corpos, as composições de fotografias de partes de corpos humanos com alguma interferência (próteses, musculaturas proeminentes, piercings) empregam a instância cotidiana. Esses elementos tanto podem provocar uma apreensão despreocupada e que diverte, quanto uma reflexão identitária. Acredito que estaria justamente aqui o trunfo do espetáculo, ou seja, pode ser apreendido por meio do humor aparentemente simples.

O problema que percebo na encenação é que ela deveria acontecer em um outro tipo de espaço, no qual a platéia pudesse ter algum recuo. Um palco pequeno com proximidade da platéia dificulta a visualidade que oferece a cena. Talvez possamos pensar, neste caso, que se trate de uma questão que concerne à curadoria e à política do teatro carioca. O espetáculo Manifesto Ciborgue materializa elementos que colaboram para uma noção de partilha da experiência de arte e, justamente por essa proposta, merecia ser visto em um circuito mais abrangente.

Site da peça Manifesto Ciborgue.

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