Atuação e espaços fechados

Crítica da peça Traição

15 de novembro de 2008 Críticas

Prorrogada até dia 7 de dezembro no teatro Solar de Botafogo, a temporada da peça Traição com direção de Ary Coslov, nos possibilita a chance de ver encenado um texto de Harold Pinter, dramaturgo inglês dos mais importantes da segunda metade do século XX. Com uma escrita muito singular, os personagens de Pinter encontram-se antes de tudo em um aqui e agora fechado, onde nem sempre podemos detectar com clareza o que querem, a que vieram ou o que farão; Constituem-se como forças que estão em um limite, como é o caso de Traição. O espaço fechado em que se encontram (um quarto, uma sala, etc.) é o lugar confinado que se constitui como um útero para esses personagens, um lugar de proteção que os fecha e que pretende fechar-se das forças que vêm de fora. Há sempre um embate de forças que não se dão a ver, num discurso habitado de ameaças, violações e revelações, num discurso combativo. Alguém quer acertar contas, alguém quer repassar o passado, esconder o presente; por meio dos diálogos quase coloquiais, que beiram o trivial e ganham força dramática através das pausas e silêncios — o não dito que é tão eloqüente quanto aquilo que é dito. Em Traição, essas “marcas” pinterianas estão todas presentes e o que se vê na encenação de Coslov é um cuidado com esses traços. Há um enorme respeito com essa dramaturgia, o que gerou uma montagem bastante convencional e sem riscos. Pois vamos à peça:

Traição conta a história de um triângulo amoroso formado por Robert (Leonardo Franco), sua esposa Emma (Isabella Parkinson) e o melhor amigo de Robert, Jerry (Isio Ghelman). Emma e Jerry foram amantes por muitos anos. A peça inicia com o reencontro do casal de amantes dois anos após o rompimento. Há a partir daí um recuo no tempo, pois a peça começa no ano de 1977 e vai até o ano de 1968. Dividida em nove quadros, que fazem com que o espectador se torne de certa maneira cúmplice daquela história de traição e amizade, Pinter magistralmente constrói uma cena inicial cheia de tensão e amargura em oposição ao final da peça, que é o início do adultério, cheia de paixão e certa doçura ingênua dos três personagens.

A encenação de Ary Coslov e atuação dos atores, bem como o cenário e figurinos é bastante tradicional e cuidadosa como já destaquei. Quando digo “cuidadosa” me refiro ao respeito evidente que percebo quase sempre em encenações de textos que são considerados clássicos do repertório teatral, principalmente quando se trata de uma escrita realista como o caso de Traição. Há uma preocupação em corresponder cenário com figurino, com a época, e com a atuação. Não acho que seja um problema, mas me pergunto por que leituras mais audaciosas não são experimentadas em nossos palcos. Assistir a Traição é sair do teatro com a sensação de ter visto uma peça bem costurada e sem surpresas. Começando pelo cenário, que busca dar visualidade àqueles ambientes descritos no texto, no sentido de cada nova contra – regragem, executada por Marcelo Aquino, ter a função de montar o espaço que logo decodificamos, por uma mesa de bar, uma cama, um sofá. A proposta de cenário de Marcos Flaksman busca ser funcional para as mudanças de ambiente a cada novo quadro da peça, assim como ser prática na montagem e construção visual. O que temos é uma espécie de estante que toma o fundo todo do palco, preenchida pelos adereços que vão dando vida àqueles espaços fechados propostos pelo autor. Não há uma criação conceitual de espaço, mas sim uma vontade de tornar visível e facilmente decodificável o novo ambiente, num novo ano, a cada novo quadro da peça. Como exemplo muito nítido dessa proposta é um enorme calendário que marca a passagem dos anos, destacando a passagem decrescente do tempo que orienta o desenrolar dos acontecimentos. Também os figurinos, de Rô Nascimento, têm esse cuidado com o resgate à época. Pensando nessa marca convencional da encenação, percebi na trilha sonora um elemento que fugiu um pouco dessa visão mais fechada proposta pelo diretor. As músicas de Eric Clapton, nas versões originais, numa clara referência à época, culminando com o vigor de Jumping Jack Flash na cena final (início de tudo) trazem uma força e beleza que se destacam durante toda a encenação, por não serem registro de resgate (como os figurinos), mas de uma alusão que está fora daquele ambiente. Quando digo que a trilha fugiu dessa forma mais fechada é pensando em como ela me pareceu trazer uma leveza, uma não – ilustração dos estados em que se encontram os personagens, uma trilha que de certa forma mostra-se díspar no conjunto da encenação.

Mas o que considero mais relevante como discussão que o trabalho de Coslov pode gerar é o registro de interpretação. O que me parece ser o melhor da dramaturgia em questão, os espaços abertos pelas pausas e silêncios freqüentes, fica sublinhado pela atuação que busca apoio em fixar o olhar em um ponto, em gestos repetitivos e deslocamentos pelo palco que denotam uma marcação bem rígida e fixa. Fica claro que a importância do não dito, os silêncios e pausas, não é ignorada pela direção. Pelo contrário, é no enorme cuidado e destaque para esses registros que percebi uma atuação (principalmente Isabella Parkinson e Leonardo Franco) preocupada em demonstrar esses estados d’alma, sublinhando o que não precisaria ser sublinhado, mas sugerido. É no espaço fechado da sala, do bar, do quarto, que os personagens de Traição estão imersos. Este espaço fechado não significa uma limitação daqueles que estão em cena, ao contrário, acredito que é no confinamento estabelecido pelo autor (e respeitado pelo diretor) que os atores poderiam alçar vôos mais altos na infinita possibilidade que a relação dialógica, preenchida de pausas e silêncios, permite.

Acho que a encenação ganharia força e poderia dispensar qualquer outro elemento se focasse numa interpretação baseada na força da relação viva e intensa que o aqui e agora do teatro pode proporcionar para os atores e espectadores, focando na força das palavras de Pinter, no limite em que se encontram as personagens, na palavra que não é dita. Assim, outros registros poderiam ser descobertos, abrindo para outros sentidos, novas interpretações daquilo que é exposto. Um bom exemplo na peça é o momento em que os dois amigos se encontram depois que Robert já sabe do adultério. Marcelo Aquino, que faz um garçom italiano nessa cena, traz uma atuação leve e brincada, baseada na relação de olhar e troca com os dois atores. Não há uma construção caricata de um garçom italiano, lugar comum em que o ator poderia cair facilmente. Há sim um jogo dele com a situação, com os atores e com o que é dito. Essa atuação mais jogada difere da atuação de Leonardo Franco (principalmente nessa cena) que, numa preocupação de deixar claro o desespero em que se encontra o personagem, cai nos clichês do choro, intercalado do riso nervoso, de um bater de punhos na mesa, de uma agressividade abrupta, num esforço centrado em fazer sua atuação chegar a esses lugares propostos pela situação.

O que acho importante pensar e discutir depois de assistir a peça é o registro de atuação, que não abre possibilidades de novos ângulos para o olhar. Em contrapartida, na última cena, há um elemento de cena que aponta para outra direção: o espelho, que não se apresenta como cenário que ilustra, mas como um dispositivo de desdobramento da imagem de Jerry e Emma no início de tudo. Ampliou-se o lugar, não se limitou o confinamento, resultando na mais bela e pungente cena da montagem em cartaz no Teatro Solar de Botafogo.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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