Sobre Meyerhold

Crítica da peça Variaciones Meyerhold

20 de novembro de 2008 Críticas
Ator: Eduardo Pavlovsky. Foto: Antonio Fernandez.

O espetáculo Variaciones Meyerhold, que fez apresentações nos dias 3 e 4 de novembro no Teatro Poeira, é um trabalho do ator e dramaturgo argentino Eduardo Pavlovsky sobre o diretor russo Vsevolod Emilievich Meyerhold, dirigido por Martín Pavlovsky. A peça conta com intervenções curtas de Susana Evans – como Zinaida Rajch, mulher de Meyerhold – e de Eduardo Misch.

Em cena, Eduardo Pavlovski se coloca como Meyerhold/Pavlovsky, como ele mesmo diz. O texto é composto de variações sobre o pensamento e a história desse personagem: são blocos de idéias que não obedecem a uma ordem cronológica nem a uma poética única. Cada bloco tem o seu início, meio e fim, e tem uma coerência interna; mas não há uma relação causal entre eles. Pelo programa da peça, somos informados de que cada apresentação é diferente da outra, que não há um texto escrito a ser seguido. Também não se trata de uma improvisação absoluta, mas de variações sobre esses blocos de textos e idéias previamente preparados. Parece que a improvisação está mais no tratamento dado à estrutura do espetáculo e à dinâmica das cenas do que às palavras que são ditas.

É possível perceber esta liberdade no espetáculo, principalmente pelo seu ritmo. Um espectador acostumado a espetáculos “bem acabados”, em que não há nenhum segundo que não seja preenchido por um foco preciso, pode achar que Variaciones Meyerhold é um espetáculo irregular, que “perde o ritmo” em alguns momentos. A questão é que o ritmo é variável de acordo com a poética de cada cena. Em alguns momentos, Pavlovsky fala diretamente com a platéia, como se fosse Meyerhold em uma aula ou palestra, em outros, faz cenas fechadas, sem dirigir o olhar ao público. Há ainda alguns momentos em que a cena poderia ser fechada, mas há um flerte com os espectadores, como a cena do primeiro encontro entre ele e Zinaida, um dos momentos mais cômicos do espetáculo em que percebemos a presença da improvisação. Por outro lado, há cenas mais densas e distanciadas do público, como as que ele fala da prisão, como se escrevesse cartas. Além disso, como cada apresentação é diferente da outra, cada espetáculo vai ter um ritmo próprio. Esse inacabamento, ou essa irregularidade, parece sinalizar uma opção que não prioriza a espetacularidade nem pretende fechar uma idéia sobre seu objeto. Se a peça nos pergunta como Meyerhold nos afeta e nos comove hoje, sua própria dinâmica dá espaço para fazer essa reflexão no momento em que estamos assistindo.

A propósito dessa questão (como Meyerhold nos afeta e nos comove hoje), pode-se dizer que há uma multiplicidade de respostas possíveis e que seria preciso reunir uma série de depoimentos para apresentar, em um texto crítico, quais foram as reverberações provocadas pela passagem do trabalho de Eduardo Pavlovsky no Rio de Janeiro. A peça apresenta Meyerhold sob diversos ângulos, possibilitando assim que cada espectador pegue o fio condutor que lhe interessa mais diretamente. Para alguns, as questões estéticas de Meyerhold vão chamar mais atenção, enquanto outros vão se interessar mais pelo próprio trabalho de Pavlovsky, ou pela história pessoal do pensador russo, pela sua resistência frente à política que se opunha à sua estética.

Atores: Martín Pavlovsky e Susana Evans. Foto: Antonio Fernandez.

Como podemos entender hoje essa resistência que é ao mesmo tempo uma opção estética e um posicionamento político? Na trajetória de Meyerhold, havia o realismo socialista – a estética que ele não queria acatar – e o stalinismo – seu inimigo declarado. A contenda entre a liberdade individual e o autoritarismo de um sistema repressor faz parte da história da União Soviética, da Argentina e do Brasil. Nesse ponto, Meyerhold nos afeta por nosso passado recente. Mas como essa resistência se manifesta hoje? Defender uma estética, ter autonomia artística, é certamente um posicionamento político, o que não quer dizer que o artista tenha que ter uma posição partidária. Mas se ainda se fala em resistência, é porque há algum tipo de autoritarismo em jogo. Talvez nosso posicionamento político se defina mais pela atitude quanto ao mercado, pela tensão entre o trabalho e sua viabilidade econômica, do que por um discurso que defenda ou ataque programas políticos. A questão de Meyerhold era estética, o que parece tornar ainda mais brutal a violência que sofreu. Mas é possível que uma questão estética seja autônoma, independente, ou ela vai ser sempre política de alguma forma?

Já a figura de Meyerhold, como apresentada por Pavlovsky, pode fazer pensar no que significa nos dias de hoje a figura de um mestre de teatro. A abordagem de Pavlovsky não é biográfica no sentido mais comum do termo, não apresenta uma trajetória linear e dramatizada de forma a informar e emocionar o público com a história. O Meyerhold de Pavlovsky parece ser menos aquele que tem a força de liderar um grupo, de transmitir um sistema, do que uma figura instável, inapreensível, que apresenta problemas.  A descontinuidade e a fragmentação ali presentes parecem mostrar uma noção de mestre também cindida, mais próxima da impossibilidade de ser mestre –que talvez até a isso resista.

Vol. I, nº 8, outubro de 2008

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores