Autor Dinah Cesare

Submersão e respiração de uma dramaturgia com teor de cena

6 de maio de 2011 Críticas
Felipe Rocha, Stella Rabello e Renato Linhares. Foto: Divulgação.

O melhor modo de apresentar as idéias que surgiram a partir do espetáculo Ninguém falou que seria fácil talvez seja tentar esboçar os traços de um pensamento que ainda não pode ser consumido pela escrita. O que seria um lugar comum da escrita, o fato de ser uma expressão da linguagem e, portanto, conter uma medida de indizível e de disforme, se evidencia pela matéria mesma do espetáculo configurado por uma narrativa que busca um trânsito entre a postura dos criadores, dos atuantes e dos receptores. Minha perspectiva aqui foi fisgada pelo o que Daniele Avila escreveu no texto que está no programa. Para refletir sobre o trabalho desenvolvido pela companhia Foguetes maravilha, dirigida por Felipe Rocha em parceria com Alex Cassal, ela se refere a uma dramaturgia singular e emblemática:

Um jogo de objetos animados

25 de fevereiro de 2011 Críticas
Atores: Vandré Silveira e Davi de Carvalho. Foto: Rodrigo Castro.

A vertigem do familiar é a mais vertiginosa de todas. Salas de estar podem rapidamente se tornar salas de estranhar.
Venâncio Filho sobre a exposição Salas e abismos de Waltercio Caldas

Desde que Marcel Duchamp colocou a questão acerca do que faz com que alguma coisa seja um objeto de arte, nos encontramos em uma possibilidade de abertura para pensar a relação entre a arte e a vida sob uma perspectiva, no mínimo, mais acurada. Nosso olhar sobre os espaços cotidianos procurou por sua transubstanciação, encontrando neles suas próprias poéticas. A característica da concretude pela qual é constituída a linguagem teatral pode ser um elemento importante para destacar essa relação. Talvez seja por isso que cismo tanto em gostar de teatro, por sua configuração material, pela encarnação dos nossos processos de representação mental. É essa tensão que, a meu ver, formaliza o espetáculo Dois jogos: sete jogadores, dirigido por Celina Sodré – uma construção poética operada em seus pormenores nos objetos e que, assim, promove a incorporação do humano nos seus meandros. Se por um lado, ações e objetos no espetáculo são criados a partir de uma noção de obra de arte, por outro lado, essa criação acaba implicando o mundo na performance artística. Claro que minha percepção também se deve ao fato de acompanhar o trabalho da diretora ao longo dos últimos quinze anos. Celina se dedica a um trabalho impregnado pela noção de colagem e de montagem e pelo princípio de uma construção repleta de referências.

Equação entre intenção e resultado formal

20 de fevereiro de 2011 Críticas
Atriz: Maria Alice Vergueiro. Foto: Fábio Furtado.

O espetáculo As três velhas remete ao meu viés crítico pelo lado mais inusitado: ao momento em que decidi escrever sobre teatro. Essa origem parafraseia Roland Barthes quando se deparou com o Berliner Ensemble em Paris. O choque estabelecido em Barthes pela encenação de Brecht, em confronto com o teatro burguês praticado na França, causou uma sensação que impulsionou sua perspectiva. Seus escritos sobre teatro aprofundaram o viés da materialidade. Minha visada, aliada à do crítico, se ajusta pela busca das singularidades da linguagem teatral que perfazem um movimento de resistência dessa esfera. O produto resultante do encontro entre a dramaturgia de Alejandro Jodorowski e a direção/desejo de Maria Alice Vergueiro ilumina as intenções em obra do primeiro e estabelece seus devires. O Teatro Pândega de Vergueiro provoca apreensões que não almejam o esclarecimento, mas materializam as tensões existentes na visão de Jodorowski, uma personalidade de difícil classificação. A combinação entre a bufonaria do Pândega e o paroxismo do surrealismo – característica da obra de Jodorowski – dá a ver o trágico em sua performance de crítica. Essa sensação, que nunca tive com os filmes do diretor, só foi possível por meio de um evento que acontece ao vivo, em que o espectador é agente da mesma ação que se desenvolve no palco. A especificidade do teatro se faz visível na reação da plateia em uma performance crítica que transita entre a apreensão dramática e um riso que desabriga novos modos de percepção.

Imobilizações como proposta de encontro

19 de janeiro de 2011 Críticas
Atores: Kettlen Cajueiro, Jane Padilha, Evelin Reginaldo, Pedro Mangueira e Mel Agatha. Foto: Rodrigo Castro.

TransTchekov, dirigido por Celina Sodré, é a formalização de um hibridismo: uma composição de fragmentos de Jardim das cerejeiras, de Tio Vânia e de A gaivota, além da inserção de textos autobiográficos dos atores. A cena é constituída por esses recortes, que se dão a ver, na maioria das vezes, sem uma linha de continuidade. A sensação provocada é mais a de algo que não sai do lugar, lembrando do que vê Thomas Mann na escrita do dramaturgo russo em que se estabelece um “o que fazer?”, um campo semântico associado à impotência. Em TransTchekov é como se todos os textos e os modos de representação fossem flashes fotográficos, como suspensões de um mesmo movimento que se revela como argumentação. O conteúdo, assim, se iguala ao da representação. A semelhança com a fotografia nos insere em uma paisagem de lembranças que é presentificada, mas sem deixar de conter o fato/sensação de que se trata de uma ausência.

O surgimento furtivo da escrita

19 de janeiro de 2011 Críticas
Foto: divulgação.

Pois qual é o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?

Walter Benjamim. Experiência e pobreza

O reino do mar sem fim oferece uma possibilidade de confronto entre o olhar que se dirige para a cultura popular e nossas formas de apreensão contemporâneas. Acredito nisso, porque uma arte intercultural precisa criar também um olhar intercultural e não um olhar de valorização da tradição que privilegia os modos de produção do contexto central. Patrice Pavis nos oferece a possibilidade de inventar uma “nova disciplina” que possa descrever e analisar os objetos. Essa possibilidade existe, no caso de Mar sem fim, porque sua construção partiu de uma inspiração que a diretora e pesquisadora Adriana Schneider se refere como uma epifania. Schneider, em um determinado momento, ao longo de 14 anos de trabalho de pesquisa na Zona da Mata de Pernambuco, se deparou com um mamulengueiro, Severino da Cocada que, realizando um corte na tentativa de direcionamento que ela dava à conversa, abriu uma velha caderneta em uma página em branco e adotando uma postura “épica (…) pôs-se a cantar o romance Reino do mar sem fim”. Qualquer linha discursiva que Schneider procurasse dar àquele encontro foi interrompida pelo fragmento dito e impregnou a pesquisa de um desejo expresso pela sensação de inconclusão. Tempos depois, ao acaso, ela encontrou o folheto de cordel, O romance da princesa do mar sem fim de Severino Borges da Silva, em um sebo – condição de colisão aleatória. A literatura de cordel tem a característica de se originar na oralidade, percorre o caminho entre a fala e a escritura, entre o evento, o improviso e um momento de elaboração.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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