O surgimento furtivo da escrita

Crítica da peça O reino do mar sem fim, do Grupo Pedras

19 de janeiro de 2011 Críticas
Foto: divulgação.

Pois qual é o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?

Walter Benjamim. Experiência e pobreza

O reino do mar sem fim oferece uma possibilidade de confronto entre o olhar que se dirige para a cultura popular e nossas formas de apreensão contemporâneas. Acredito nisso, porque uma arte intercultural precisa criar também um olhar intercultural e não um olhar de valorização da tradição que privilegia os modos de produção do contexto central. Patrice Pavis nos oferece a possibilidade de inventar uma “nova disciplina” que possa descrever e analisar os objetos. Essa possibilidade existe, no caso de Mar sem fim, porque sua construção partiu de uma inspiração que a diretora e pesquisadora Adriana Schneider se refere como uma epifania. Schneider, em um determinado momento, ao longo de 14 anos de trabalho de pesquisa na Zona da Mata de Pernambuco, se deparou com um mamulengueiro, Severino da Cocada que, realizando um corte na tentativa de direcionamento que ela dava à conversa, abriu uma velha caderneta em uma página em branco e adotando uma postura “épica (…) pôs-se a cantar o romance Reino do mar sem fim”. Qualquer linha discursiva que Schneider procurasse dar àquele encontro foi interrompida pelo fragmento dito e impregnou a pesquisa de um desejo expresso pela sensação de inconclusão. Tempos depois, ao acaso, ela encontrou o folheto de cordel, O romance da princesa do mar sem fim de Severino Borges da Silva, em um sebo – condição de colisão aleatória. A literatura de cordel tem a característica de se originar na oralidade, percorre o caminho entre a fala e a escritura, entre o evento, o improviso e um momento de elaboração.

Essa também é uma das características da elaboração das pesquisas acadêmicas que fica, muitas vezes, opaca aos sentidos do senso comum. A “graça” da pesquisa se encontra justamente nos desvios dos princípios teóricos que a experiência proporciona. Essas linhas de fuga se configuram como material criativo para uma teoria investida pela prática. A abordagem que Schneider faz no campo teórico que articula para pensar a cultura pernambucana procura pelas tensões que se estabelecem entre o arcaico e o contemporâneo. Isso está indicado em seu olhar sobre “expressões culturais que sobrevivem contraditoriamente” com o latifúndio e a violência que constitui essa forma de partilha. Minha apreensão da encenação é a de que existe uma articulação entre a experiência e a noção de epifania, juntamente com a de inconcluso, o que projeta o entendimento da “palavra poética cantada” – a esfera tradicional – para o imaginário moderno, em que a autoria e a autenticidade estão problematizados. Assim, citação inicial de Walter Benjamin está implícita como uma pergunta que o espetáculo procura desdobrar.

A primeira ação em que esse movimento aparece é a da fragmentação da figura de Severino da Cocada pelos atores do Grupo Pedras. A “biografia” e os “casos” do cantador são, dessa maneira, presentificados e narrados. Essa operação coloca o espectador em estado de construção mental e, ao mesmo tempo, espacial, o que evidencia o caráter cambiante entre essas duas esferas, próprias de ambas as construções. Essa característica ativa uma noção de presença, juntamente com a de verdade da representação que se mostra em constante contradição com as duas acepções. Isso promove um estado de suspeição quanto ao que está sendo afirmado, se a tradição é tal como a entendemos comumente, ou se ela é alguma coisa que ainda desconhecemos. Talvez seja justamente o fato de estarmos tão distanciados dos processos mais tradicionais de arte popular – tendo em vista que a maioria das manifestações desta, na arte teatral contemporânea, não encontra pontos de reflexão formal – o que favorece uma recepção atenta em perceber as dobras ocultas dessa operação. A figura de Severino se dá a ver em contradição com noções românticas de abordagem dos cantadores e brincantes, tanto por meio da operação que replica sua persona, quanto pelos conteúdos que o colocam no mundo, em meio aos momentos das brincadeiras. Nesta espécie de prólogo do espetáculo fica impressa a medida de um “aqui e agora” dos momentos em que o brincante atua, assim como o momento em que esses recriam o universo literário do cordel que, por sua vez, já se trata de uma tradução de um momento anterior.

Foto: divulgação.

Essa operação deixa clara uma perspectiva de entendimento da estrutura interna das manifestações tradicionais dos brincantes, ao mesmo tempo em que procura se basear em noções dos estudos teóricos. A fusão dessas duas esferas proporciona uma atualização do fenômeno popular, do momento da brincadeira na representação no teatro. Nos faz perceber também a teatralização que a tradição confere aos seus eventos e provoca a relação entre o teatro e a performance dos cantadores. A aproximação dessas duas linguagens permeia a representação da segunda parte do espetáculo em que se desdobra a fábula do romance da princesa. Estão presentes elementos visuais que criam certas tensões para a narrativa, como por exemplo o movimento da luz e a inserção de objetos que redobram as possibilidades de apreensão. Isso acontece no vestido usado pela princesa, tanto no modo em que ele aparece e é transformado – elemento da linguagem do teatro que formaliza a recepção da oralidade, que promove a teatralização.

A manipulação do boneco que duplica o herói nos dá uma medida que transita, que se oferece em flutuação cambiante entre as concepções de criador e de criatura, que problematiza as noções de um herói portador de uma unicidade. Assim como acontece com a figura de Severino da Cocada. Essa é mesmo uma das características dos contos infantis: o mocinho nunca está concluído e enfrenta o mito por meio de sua errância que acentua seus feitos mais por um desfazer impresso nos logros com os quais consegue vencer seus opositores. A referência sutil ao movimento engendrado no prólogo não performatiza um ciclo, mas uma desocultação.

O objeto “águia” se torna belo e mágico – como nossos processos de visualização interna dos contos – por causa de manipulação técnica dos atores, pela graça do surgimento furtivo da escrita. A palavra aqui aparece como uma materialização de pensamentos possíveis dos espectadores e nos religa com a literatura, proporcionando uma necessidade de reflexão em ato que transforma momentaneamente nosso modo de recepção. Se a investida técnica do trabalho do grupo é um elemento ativador nessa segunda parte, a fragilidade desse mesmo elemento prejudica a cena da projeção do canavial que, do modo como eu percebo, não consegue propor camadas de apreensão dos desvios, das tensões que o trabalho infere nas subjetividades e, portanto, não acrescenta à fábula.

A retomada da brincadeira no epílogo, após a materialização cênica do “romance”, surge com fôlego de entendimento e nova força de presença da alegria de estar junto. A sensação é que a encenação quase objetiva esse momento de simples presença. Mas uma presença que se dá a ver por meio da sua complexidade e sua elaboração.

Foto: divulgação.

Dinah Cesare é mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO, atriz, professora de training físico para atores e é integrante do Instituto do Ator no Rio de Janeiro.

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