Um jogo de objetos animados

Crítica da peça Dois jogos: sete jogadores, de Celina Sodré

25 de fevereiro de 2011 Críticas
Atores: Vandré Silveira e Davi de Carvalho. Foto: Rodrigo Castro.

A vertigem do familiar é a mais vertiginosa de todas. Salas de estar podem rapidamente se tornar salas de estranhar.
Venâncio Filho sobre a exposição Salas e abismos de Waltercio Caldas

Desde que Marcel Duchamp colocou a questão acerca do que faz com que alguma coisa seja um objeto de arte, nos encontramos em uma possibilidade de abertura para pensar a relação entre a arte e a vida sob uma perspectiva, no mínimo, mais acurada. Nosso olhar sobre os espaços cotidianos procurou por sua transubstanciação, encontrando neles suas próprias poéticas. A característica da concretude pela qual é constituída a linguagem teatral pode ser um elemento importante para destacar essa relação. Talvez seja por isso que cismo tanto em gostar de teatro, por sua configuração material, pela encarnação dos nossos processos de representação mental. É essa tensão que, a meu ver, formaliza o espetáculo Dois jogos: sete jogadores, dirigido por Celina Sodré – uma construção poética operada em seus pormenores nos objetos e que, assim, promove a incorporação do humano nos seus meandros. Se por um lado, ações e objetos no espetáculo são criados a partir de uma noção de obra de arte, por outro lado, essa criação acaba implicando o mundo na performance artística. Claro que minha percepção também se deve ao fato de acompanhar o trabalho da diretora ao longo dos últimos quinze anos. Celina se dedica a um trabalho impregnado pela noção de colagem e de montagem e pelo princípio de uma construção repleta de referências.

Os objetos no espetáculo se mostram portadores de uma energia própria e, ao proporem um novo modo de percebê-los em cena, nos permitem transpassar a cena também. Esse é um ponto de articulação do espetáculo que encontra as artes plásticas. Jean Genet, observando o artista Alberto Giacometti, destacou a solidão dos objetos em meio à paisagem. Em uma das sessões de pose para um retrato, Giacometti lhe disse:

Um dia no meu quarto, ao olhar para uma toalha sobre uma cadeira, tive a nítida impressão de que não apenas cada objeto estava só, como tinha um peso – ou melhor, uma ausência de peso – que o impedia de pesar sobre o outro. A toalha estava só, tão só que eu tive a sensação de poder tirar a cadeira sem que ela se movesse. Ela possuía seu próprio lugar, seu próprio peso, e até seu próprio silêncio. O mundo era leve, leve…(GENET, 2000: 45).

Em uma conversa que realizei com a Celina ela falou da sua apreensão sobre o trabalho dos objetos em Dois jogos: sete jogadores:

Os objetos nesse trabalho são animados, então eles não são coadjuvantes eles são protagonistas e em alguns momentos, mais protagonistas que os atores. Isso é extremamente interessante para os espectadores, mesmo que, normalmente não saibam traduzir isso em palavras. Mas alguma coisa acontece. Eu dei um exemplo para as atrizes (da segunda parte do espetáculo) a respeito do momento final. Não são vocês que giram sobre o tapete, é o tapete que gira vocês.

Atores: Vandré Silveira e Davi de Carvalho. Foto: Rodrigo Castro.

Por mais que nos espetáculos da Companhia Studio Stanislavski, dirigida por Sodré, o ator esteja no centro da representação (princípio paradigmático que advém de Jerzy Grotowski), a cena se formula pela imbricação entre dramaturgia, literatura, cinema e artes plásticas, fazendo transbordar a noção de presença corporal do ator/homem em um movimento de indiferenciação com o mundo – o desejo de ser homem no desejo de ser mundo. Talvez esse seja mesmo um dos mais importantes efeitos da estética de Sodré que a definiu um dia como barroca. E os objetos sempre foram os lugares de impregnação do traço barroco em seus espetáculos. Curioso, para mim, é que a mais precisa sensação de indefinição e (des)contorno tenha sido visível em um dos últimos espetáculos da companhia, Palácio de neve – uma cena paradoxalmente nua e cuja impressão se assemelhava a da realidade cinematográfica. É que no Palácio todo o espaço se comportava como objeto. Em Dois jogos: sete jogadores a cena opera um movimento de deslocamento das noções de realidade, mesmo que elas sejam sempre o paradigma e, portanto, nos retornem a essas noções. Essa operação já aparece no título que inclui o espectador como fundamento do jogo cênico. Jogar é ação – “no princípio era o verbo” – o homem existe no mundo por suas ações. Jogar compreende ainda o risco, a aposta. Uma das apostas está na relação entre os dois trabalhos apresentados e em jogo no espetáculo – Filho homem e Ingmar Vincent Lispector. Um ilumina o outro.

Filho homem abre a sessão. A dramaturgia é elaborada por meio de uma montagem de dois textos autobiográficos, Pai, de Heiner Müller e Carta ao pai, de Franz Kafka. A poética aqui parte da sóbria cenografia instalada por José Dias na Sala Stanislavski do Instituto do Ator, que instaura uma semelhança com um lugar de exposição: espaço todo branco – chão de linóleo e cortinas drapeadas cobrindo as paredes. A simplicidade segue com a mesa branca, duas cadeiras em que, à cabeceira, estão sentados os dois atores, Davi de Carvalho e Vandré Silveira, ambos vestidos com impecáveis smokings – sinais da mácula que os dois textos desdobram. A posição dos atores materializa seu espelhamento que também está impresso na forma de suas falas. Embora os textos se refiram à relação dos seus autores com seus respectivos pais, Kafka se dirige diretamente ao pai, enquanto Müller fala a respeito do seu. Davi e Vandré perfazem uma imbricação dos dois textos, deslocando o que está sendo dito de um para o outro e assim, por vezes, desfazem o lugar definido de quem está falando. O espelhamento da postura e dos gestos dos atores é rompido e resgatado, mas nunca nos faz retornar para a impressão antecedente.

A ação transcorre com os atores degustando a sobremesa do que teria sido um jantar, mas à mesa estão colocadas pequenas pedras em simetria – restos do que foi o encontro que logo se transformam em devir. Ao longo da ação eles regurgitam outras pequenas pedras, ou mesmo, as pedras insistem em sair de suas bocas – o não dito que se materializa. Essa sensação, aos poucos, passa a preencher todo o espaço de dúvidas, como se toda a simetria e sobriedade estética contivesse um inominável (para além das palavras do texto e dos nomes que damos às coisas) e um invisível (que compõe o que é dito e que cria intensidades no espaço). Ao espectador é aberta uma possibilidade em surdina de questionamentos. Ao centro da mesa está pousado (parece pousado pelo efeito da luz de Renato Machado) um jogo de xadrez em andamento que nos faz percorrer um caminho de desfazimento das amarras do agora/presente.

O modo ajustado (em precisão) entre as falas e as ações dos atores ao comer, ao beber, ao erguerem seus copos (que se assemelham aos de uma mesa viking) descortinam outras intensidades temporais e espaciais. Ora, nossa capacidade de apreensão dos eventos em ato é transgredida para a percepção de outras temporalidades que surgem nos textos e ainda é assolada pelas memórias dos lugares por onde passamos, onde encontramos projetadas nossas compreensões e entendimentos sobre o nazismo, sobre a Alemanha, sobre nossa infância, sobre os nossos pais, família e amigos, bem como os afetos que compõem esses quadros. Assim, o que percebemos como instância da arte, todo o apuro estético, se indiferencia em nossos próprios traços de vida. A mesa em Filho homem nos remete a exposição Salas e abismos de Waltercio Caldas realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro entre junho e agosto de 2010. As salas derivam de momentos anteriores do trabalho de Waltercio em que ele condicionava objetos em caixas. Em Salas e abismos elas são como as caixas – fundem objeto e lugar e transformam este em escultura.

Foto: Rodrigo Castro

Um trabalho em performance

Ingmar Vincent Lispector acontece na segunda sessão, logo após Filho homem, na sala Jerzy Grotowski do mesmo Instituto do Ator. O Instituto é um espaço de trabalho, pesquisa e formação que Sodré e sua companhia criaram no bairro da Lapa. Essa segunda sala é o inverso da primeira: cores quentes (sobressai o vermelho), cortinas separando o ambiente, tapetes, outra mesa (de madeira rústica). A primeira cena acontece ainda na escada que leva ao segundo andar, onde Evelin Reginaldo, com sua voz e fisionomia quase pueris, dá a ver a simplicidade e a pureza da reflexão de Van Gogh sobre a arte. O texto aqui discorre sobre a transcendência material da arte que implica em uma visada especular do mundo, que nos é sugerida pelo conjunto dos efeitos da água, do aquário e da movimentação do peixinho. A inversão dos objetos e pessoas acontece novamente. A atriz é toda calma, fala quase não dizendo, é o aquário que a interroga e aos espectadores também.

Já havia assistido esse espetáculo algumas vezes, em períodos anteriores e pude perceber sua transformação no sentido da hipótese que desenvolvo aqui. Essa transformação se operou na direção de uma sobriedade e da desconstrução de um paradigma religioso. Assim os objetos mostraram seu vigor. A cena de Pôla Neves deu a ver sua potência de paisagem por meio da interferência da luz. Materializou-se seu devir e iluminou sua narrativa. As ações de Carolina Caju encontraram concretude. A fala límpida e o semblante de Tuini Bitencourt dimensionam o “sem dimensão”, a desmedida de Clarice Lispector, que é constantemente desfeita/refeita pelas intervenções de Evelin Reginaldo.

Atriz: Carolina Caju. Foto: Rodrigo Castro

Na cena do jogo de cartas, o ambiente da Lapa entra pelas janelas e desterritorializa mais uma vez a esfera da arte. O contraponto entre o exterior (que não é mais pura exterioridade) e a suspensão com a qual o jogo é realizado desfaz esses limites. Todo um estado de atenção é exigido dos espectadores por meio da proximidade com as atrizes (mais uma vez a mesa está presente). Essa construção torna tudo matéria reconhecível e, ao mesmo tempo, inexplicável. Agora, as cartas é que se põem à mesa. Talvez o único empecilho para os espectadores seja o fato de não ter livre conduto por esses ambientes, como acontece nas exposições de artes plásticas. O guia do espetáculo está fazendo com que o espectador se detenha, por que o que acontece, acontece no tempo. E talvez o único empecilho do livre conduto fosse mesmo nosso acelerado modo cotidiano. Aqui o que está em jogo é nossa corporalidade como fisionomia, como objeto animado – entendemos.

Referências bibliográficas:

CALDAS, Waltercio. Salas e abismos. Textos de Paulo Sérgio Duarte, Paulo Venâncio Filho e Sônia Salztein. São Paulo: Cosac&Naify, 2010.

GENET, Jean. O ateliê de Giacometti. Trad: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.

Dinah Cesare é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO, atriz, professora de training físico para atores e é integrante do Instituto do Ator no Rio de Janeiro.

Foto: Rodrigo Castro

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