Submersão e respiração de uma dramaturgia com teor de cena

Crítica da peça Ninguém falou que seria fácil

6 de maio de 2011 Críticas
Felipe Rocha, Stella Rabello e Renato Linhares. Foto: Divulgação.

O melhor modo de apresentar as idéias que surgiram a partir do espetáculo Ninguém falou que seria fácil talvez seja tentar esboçar os traços de um pensamento que ainda não pode ser consumido pela escrita. O que seria um lugar comum da escrita, o fato de ser uma expressão da linguagem e, portanto, conter uma medida de indizível e de disforme, se evidencia pela matéria mesma do espetáculo configurado por uma narrativa que busca um trânsito entre a postura dos criadores, dos atuantes e dos receptores. Minha perspectiva aqui foi fisgada pelo o que Daniele Avila escreveu no texto que está no programa. Para refletir sobre o trabalho desenvolvido pela companhia Foguetes maravilha, dirigida por Felipe Rocha em parceria com Alex Cassal, ela se refere a uma dramaturgia singular e emblemática:

“Singular na medida em que parece intimamente articulada com a sua noção de atuação; emblemática porque, no fundo, mesmo lançando mão de um vocabulário muito particular, o pensamento sobre dramaturgia que ali se expressa parece falar a língua de muita gente.”

A dramaturgia “articulada com a sua noção de atuação” sugere uma cena que potencializa o presente com atravessamentos temporais. Sim é possível dizer que isso é uma coisa óbvia, na medida em que existe uma dramaturgia escrita, mesmo que seja elaborada em consonância com os ensaios e as traduções realizadas pelos atores materializadas em suas ações. E ainda que a noção impressa, quando pensamos em obras, esteja tomada justamente pelo seu potencial de remissão, que cria naturalmente uma historicidade constituída pelo momento presente e pela rememoração. Porém, para chegar ao que estou querendo tracejar é preciso que se analise as condições de possibilidade que a encenação engendra.

O espetáculo Ninguém falou que seria fácil encena as relações familiares, existe um tema: a família e suas repercussões na formação de um tecido coletivo de subjetividade. A particularidade aqui pode ser percebida por uma dupla implicação. A primeira é a escolha de uma narrativa sob a visada da infância, de seus gestos, de suas construções imaginárias. Isso confere um tempo de constituição dos fatos próprio da apreensão do jogo infantil que não conhece outra coisa senão a transformação súbita, um eterno movimento de pegar e largar. Assim, a dramaturgia/encenação perfaz a produção da história que se trata de um “era assim” e que no “agora” não é mais. Nessa fluidez (dos jogos infantis e da história) existe tanto uma presença (um lençol torna-se realmente uma bandeira), quanto o seu desfazimento (o lençol, imediatamente, pode ser o teto e a porta da casa de brincar). Aqui já existe um duplo estampado no lençol que continua se insinuando como memória traduzida. Essa construção pode ser mais precisamente percebida como montagem. A ludicidade infantil é constituída por tal grau de abertura que serve para inspiração material de pensamentos epistemo-críticos. Pensemos a infância, não como um estado biológico ou uma idade cronológica, mas como uma instância que opera o enigma da origem, do desenvolvimento das formas. A perspectiva infantil também conta com a capacidade da imitação sem psicologismos e sem empregar sentidos sensatos. Promove o atravessamento de signos em uma semântica sempre aberta.

A segunda implicação aparece pelo desdobramento da primeira: sutis momentos de epifania. Estou me referindo às pequenas revelações dos afetos que formam o tecido familiar. Se por um lado a inspiração da dramaturgia partiu da marca deixada por algo que aconteceu na infância, sua tradução não buscou a factualidade, mas a sensação própria da afetação que o fato causou. E aqui, ela deu a ver o sujeito que busca a reflexão no retorno do sintoma, da irrupção. Esse movimento trouxe à encenação, não uma tensão, mas uma despojada espera pelo que pode aparecer. Para isso fica-se no tempo, mas um tempo remissivo aos desvios. O resultado tanto opera uma leveza no espetáculo, quanto uma graça sem a necessidade do riso. É possível perceber certos tempos esgarçados na encenação, mas que não se configuram como tempos mortos, muito menos como tempos que necessitam serem preenchidos, mas como leves surpresas, ou melhor, como pequenos lampejos da alegria, de afetos que se estabelecem no estar junto em família, ou na espera por alguma coisa que não se sabe exatamente o que é.

Já mencionei em outro texto como o trabalho de Felipe Rocha cria instâncias de sensações e mais singularmente quando isso de dá em interface com uma dança evanescente. Suas inserções de movimentos em Ele precisa começar, encenada primeiramente no ano de 2008, surtiam um efeito embreante que nos remetia à esfera da invisibilidade e da imprevisibilidade por meio da precisão e da plasticidade em um ambiente cheio de cisões espaciais e temporais. Em Ninguém falou que seria fácil estas inserções já surgem como desvios porque aparecem como coisas não acabadas, imprecisas, não consolidadas. Aqui o teor de montagem da dramaturgia encontra sua expressão mais pontual, mas esse teor está presente em toda a sua construção em devir na própria cena.

Felipe Rocha, Stella Rabello e Renato Linhares. Foto: Renato Mangolin.

Esse sentido também aparece numa cenografia quase bruta, que serve como topos de suporte para as possíveis imagens suscitadas. Isso se dá também, de maneira inusitada, com o bar suspenso que não é manipulado, mas que insiste em sua presença e promove o desvio do olhar em uma performance necessária diante da imagem concebida como montagem. E assim, também guarda sua parcela de inacabamento. Talvez, como mais um traço, seja possível dizer que a cenografia de Aurora dos Campos e sua manipulação apontem para a fragilidade territorial que, paradoxalmente, a família nos deixa como legado. Ou, dito de outra forma, descortine o impulso que a família pode promover em direção ao mundo. No lugar da origem – e podemos ler também da dramaturgia – está sempre o movimento de fazer, desfazer e fazer outra coisa ainda.

Essa imagem perfaz o movimento empregado pela atuação/corpos/falas/roupas dos atores (as barras da escrita não têm a intenção de pura injunção, mas tentam dar conta de uma sensação ainda baseada por uma lógica própria das coisas como elas aparecem em cena). A palavra “aparece” indica um regime que transita pelo que é visível e suas zonas de indicernimento. Os atores não interpretam crianças, mas dão a ver falas e corporalidades em deslocamentos figurais. Compõem o quadro do devir sendo eles mesmos objeto e sujeito por meio de uma performance de distanciamento (suas falas não parecem coladas a uma idéia de verdade, justamente seus corpos de adultos não deixam transparecer esse desejo), ao mesmo tempo em que estão imersos no jogo. Além da tensão que se estabelece por meio dos corpos adultos e do jogo infantil, a atuação do próprio Felipe Rocha, de Renato Linhares e de Stella Rabello não parece ter como suporte nenhuma espécie de psicologismo e constrói assim a passagem de tempos por uma forma criada pela característica própria entre o que acabou e o que está por vias de surgir.

O jogo infantil também aponta para a construção onírica e a sensação de submersão na piscina que é objeto da rememoração que inspira a dramaturgia. Belo movimento de tradução que nos faz ultrapassar a imagem que está na origem. O desenho de iluminação de Tomás Ribas é um elemento que colabora para a materialização de zonas de quase apagamento e realiza isso quase que negativamente, sem se impor como recorte, mas favorecendo a percepção de margens para as imagens. Seriam as bordas da piscina sonhada? Como se cada um dos quadros, por assim dizer, que constroem a encenação se passassem no fundo da piscina da infância e seus momentos epifânicos fossem como subidas à superfície para respirar. Essa dialética proporciona uma fruição que revela a potência do momento do “agora” como lugar de reflexão, do jogo como estrutura de pensamento e desestabiliza várias sensações míticas sobre as relações familiares.

Informações sobre a temporada no blog da peça: http://ninguemfalouqueseriafacil.wordpress.com/

Leia também a crítica de Dinah Cesare sobre a peça Ele precisa começar: http://www.questaodecritica.com.br/2008/12/o-real-e-sua-esfera-de-criacao/

Dinah Cesare é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO, atriz, professora de training físico para atores e é integrante do Instituto do Ator no Rio de Janeiro.

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