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Ascensão da multidão ao calvário
Laboratório Karamázov, que esteve em cartaz por três dias de junho no Instituto CAL de Arte e Cultura, é uma realização que mostra o investimento na formação de atores profissionais proporcionado pela universidade. O espetáculo, dirigido por Celina Sodré, parte de um roteiro livremente adaptado do romance Os irmãos Karamázov de Fiódor Dostoiévski e de fragmentos de Meu marido Dostoiévski de Anna Dostoievskaia. A noção de laboratório que o título materializa é um procedimento que, para a diretora, está intimamente conectado com as experiências desenvolvidas pelo mestre de teatro Jerzy Grotowski, que visavam o desnudamento, ou um processo de revelação dos atores – o nome de sua companhia era Teatro Laboratório. Ao mesmo tempo, a confecção de um roteiro como material originário parece se aproximar do que Grotowski realizou com as dramaturgias/montagens em Akropolis e, posteriormente em Príncipe Constanti, para citar dois exemplos expressivos de seu trabalho.
Imobilizações como proposta de encontro
TransTchekov, dirigido por Celina Sodré, é a formalização de um hibridismo: uma composição de fragmentos de Jardim das cerejeiras, de Tio Vânia e de A gaivota, além da inserção de textos autobiográficos dos atores. A cena é constituída por esses recortes, que se dão a ver, na maioria das vezes, sem uma linha de continuidade. A sensação provocada é mais a de algo que não sai do lugar, lembrando do que vê Thomas Mann na escrita do dramaturgo russo em que se estabelece um “o que fazer?”, um campo semântico associado à impotência. Em TransTchekov é como se todos os textos e os modos de representação fossem flashes fotográficos, como suspensões de um mesmo movimento que se revela como argumentação. O conteúdo, assim, se iguala ao da representação. A semelhança com a fotografia nos insere em uma paisagem de lembranças que é presentificada, mas sem deixar de conter o fato/sensação de que se trata de uma ausência.
Notas sobre o corpo e sua condição de cadáver – paradoxos e procedimentos do corpo treinado
Parece existir uma espécie de lacuna entre as práticas de treinamento de atores e as possibilidades de transformação das mesmas em pensamento teórico para além das salas de ensaio. Talvez, essa defasagem se deva ao paradoxo que é próprio da linguagem teatral de ser, na realidade, um pensamento que se revela como matéria posta em cena. Daí a dificuldade de formular teorias sincrônicas entre as práticas atoriais e as possibilidades de pensamento que delas advêm. Podemos incluir aqui nessa questão o fato de que as referidas práticas estão, de certo modo, envolvidas em uma zona sempre de deslocamentos, na medida em que lidam necessariamente com os processos subjetivos dos sujeitos, o que imprime uma instabilidade aos possíveis conceitos. Portanto, acredito ser pertinente que pensemos o assunto em consonância com as discussões filosóficas que, por natureza das mesmas, são tentativas de nomear os fenômenos, de lidar com o inexprimível no âmbito da linguagem. É claro que estabelecemos assim uma instância de atrito, pois segundo Walter Benjamin em sua teoria da linguagem, para falar de arte não podemos lançar mão de uma fala identificada com a dos técnicos, mas nesse contexto “linguagem significa o princípio orientado para a comunicação de conteúdos intelectuais” (BENJAMIN: 1992, 177).
A noção de corpo-sem-órgãos em Artaud e no Teatro da Crueldade
1) Um homem que inquietou os homens
Antonin Artaud empenhou sua vida para expressar uma visão acerca da “verdadeira e imortal liberdade”. Dedicou seu corpo a um fazer teatral que anunciava a amplitude de se viver livre – um teatro ritual que extraía o indivíduo dos liames que o ancorava, que chocava e proporcionava um desejo de viver. Parece-me que ele mesmo fugia do juízo como se estivesse atolado em um pântano de piche. Completamente imerso nessa armadilha viscosa, Artaud elaborou um plano de purificação para gerar um novo corpo que não era nem humano nem metafísico, e ainda, refratário e autônomo, um corpo de resistência e intensidades: o corpo sem órgãos.
Grotowski était un mystique!*
(*Grotowski era um místico! Fala de Peter Brook na sua palestra de 19 de outubro de 2009 no Théâtre dês Bouffes du Nord, na Soirée Grotowski dentro do programa do colóquio do 2009 Année Grotowski –UNESCO.)
Começo esta reportagem para falar da aventura espiritual que se configurou, para mim, acompanhar em Paris o colóquio do 2009 Année Grotowski. Pode parecer incongruente falar de aventura espiritual em se tratando de um relato sobre um evento eminentemente acadêmico. Em princípio temos uma espécie de paradoxo, já que a academia e a espiritualidade, aparentemente, se estranham e se excluem, reciprocamente, dentro do senso comum.