O desejo de não parecer teatro
Crítica da peça O pastor, dirigida por Carina Casuscelli
O pastor lança como proposta um desejo de ocultação do ato teatral ao procurar reconstituir, de maneira fidedigna, um culto evangélico, no que se refere ao registro interpretativo do elenco, aos figurinos e à ambientação espacial.
Em relação ao trabalho dos atores há uma inegável aproximação desse objetivo, tendo em vista o esforço em imprimir uma não-atuação, um apagamento dos códigos de representação. Existe um encaminhamento no sentido de fazer com que os atores se assemelhem a um pastor incendiário, sua assistente e um frequentador do culto.
Alexandre Lino – que assume inspiração no filme O apóstolo (1997), dirigido e protagonizado por Robert Duvall – “encarna” o pastor com exatidão, assim como Cesario Candhí na pele do espectador inicialmente revoltado, mas, um pouco depois, anestesiado e hipnotizado pelo fervor messiânico. Kátia Camello é bastante precisa como a Irmã Janaína, não só no que diz respeito à construção do perfil abnegado da personagem como à credibilidade alcançada nos momentos em que explica para os espectadores sobre a estrutura de funcionamento (em especial, a forma de pagamento) da igreja.
Os figurinos (de Karlla de Luca) reproduzem os trajes padronizados dos religiosos, justamente com o intuito de não parecerem figurinos. Contudo, o descolamento entre o acontecimento em si e sua recriação teatral fica mais evidenciado na espacialidade, pelo simples fato de O pastor ser realizado dentro de um teatro e não no local correspondente à situação, por maior que tenha sido o empenho em dotar o minúsculo Espaço II do Solar de Botafogo, de disposição não convencional, da atmosfera de culto (cenografia também a cargo de Karlla de Luca). Há uma certa tensão entre a circunstância de apresentação teatral e a determinação em provocar no espectador uma sensação de afastamento do caráter de encenação.
O ímpeto documental, igualmente presente na dramaturgia (assinada por Daniel Porto), surge articulado a tom crítico diante da prática desonesta do pastor, que não hesita em utilizar a fé para explorar financeiramente os fiéis. Entretanto, o autor mais expõe um panorama do que investe na evolução do quadro descortinado desde a entrada do público. Mesmo que a fala do pastor se torne mais eloquente e que o mecanismo de arrecadação de dinheiro se explicite com destaque crescente, a peça resulta algo reiterativa, como se reafirmasse o que já está claro para a plateia.
Em todo caso, no jogo contido em O pastor, o público recebe um “papel”: cada integrante da plateia é “tratado” como um fiel da igreja. A diretora Carina Casuscelli realça essa ideia por meio de procedimentos, como o pedido para que os espectadores se levantem e deem as mãos, logo no início da encenação.
Cabe mencionar um dado extrateatral. Na noite da sessão de O pastor, o Rio de Janeiro sofreu com um temporal que afetou o espetáculo, uma vez que o espaço foi invadido por forte infiltração. Apesar da excepcionalidade da chuva na noite em questão, vale fazer um alerta para que espaços como o do Solar de Botafogo invistam em infraestrutura para garantir a segurança dos espectadores, atores e equipes das montagens.
Daniel Schenker é Doutor em teatro e crítico do blog danielschenker.wordpress.com