A história sob a perspectiva de quem conta
Crítica da peça Antes da chuva, da Cia. Cortejo
Nova montagem da Cia. Cortejo, de Três Rios, Antes da chuva destaca mais o ato de contar do que efetivamente um determinado enredo. Aramís e Ana – jovens com personalidades e expectativas distintas (ele, racional e temeroso, ela passional e decidida a deixar o povoado decadente onde moram) – se interrompem mútua e frequentemente, de modo a impedir que o outro continue contando a história de acordo com os seus interesses. Nenhum dos dois é portador de uma versão correta ou completa. Aramís e Ana se expressam movidos pela forma com que as experiências ficaram inscritas em cada um e pela maneira diferenciada com que gostariam que a vida em comum se desenrolasse.
Ao se debruçar sobre personagens norteados por desejos não só diversos como inconciliáveis, o dramaturgo Rodrigo Portella (que acumula as funções de diretor e iluminador) traz à tona mais a frustração do que não acontece (o autor faz uso constante do tempo verbal do futuro do pretérito do indicativo) do que uma sucessão de acontecimentos. O texto é estruturado a partir de uma alternância entre a narração (recurso empregado para informar sobre o que já ocorreu e, talvez ainda mais, sobre o que se gostaria que ocorresse) e a fala direta (referente ao que vivenciam).
Nessa apropriação de O leitor, de Bernhard Schlink (realizada para cena curta concebida pelo grupo), e do universo de Gabriel García Marquez (que havia inspirado a companhia em Uma história oficial), o ato de contar também é realçado por meio do relato de histórias, da brincadeira de representar (em que Aramís e Ana evocam figuras circunstanciais através de uma composição caricaturada), da leitura de poesias e da inclusão de um livro, cujas páginas são arrancadas, utilizado como máscara.
Rodrigo Portella investe numa cena sintética, praticamente destituída de elementos (além do mencionado livro, apenas um copo), privilegiando o jogo interpretativo dos atores. Bruna Portella e Luan Vieira revelam entrosamento em relação à proposta de linguagem do trabalho. Afastam-se de um viés tradicionalmente naturalista através de movimentação algo coreografada (que, contudo, não implica em artificialidade) e de um registro de atuação, por vezes, estilizado, no que diz respeito às composições de personagens ocasionais. Os atores buscam expressão facial deformada que, porém, contrasta, em certa medida, com vozes que se aproximam do tom cotidiano. A iluminação de Rodrigo Portella oscila entre uma luz mais aberta para os momentos em que os personagens se mostram afetados pela esfera externa e uma mais fechada para os instantes em que conseguem se resguardar do mundo. Os figurinos de Bruno Perlatto são despojados e sintonizados com os perfis dos personagens ao distingui-los por meio de cor neutra (para ele) e mais intensa (para ela).
Em Antes da chuva, a Cia. Cortejo volta a tematizar a construção da cena e da história. Se em Uma história oficial a cena era evidenciada com a entrada dos atores trazendo os objetos de que necessitariam a cada passagem e com a quebra de uma perspectiva ilusionista a partir da assumida manipulação deles, em Antes da chuva, se dá por meio da redução, da síntese, da supressão do que não for essencial. De diferentes modos, mas tanto num espetáculo como no outro, Rodrigo Portella parece chamar atenção para o fato de que a história – oficial ou particular – é sempre parcial, decorrente dos anseios que atravessam aquele que conta.
Daniel Schenker é Doutor em teatro e crítico do blog danielschenker.wordpress.com