Mecanismos de descentralização

Crítica da peça O controlador de tráfego aéreo, do grupo Alfândega 88

27 de agosto de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

A montagem de O controlador de tráfego aéreo reúne características do trabalho do diretor Moacir Chaves – frequentes antes da fundação da companhia Alfândega 88, com a qual se estabeleceu no Teatro Serrador. Possivelmente a conexão mais perceptível entre esse novo espetáculo e alguns anteriores resida na adoção como matéria-prima de elementos não só não teatrais como bastante áridos em suas concretudes. Em Bugiaria – realizado com a Péssima Companhia, coletivo capitaneado pelo diretor no final da década de 90 – um processo inquisitorial ganhou surpreendente transposição cênica. Em O jardim das cerejeiras, Chaves incluiu as rubricas da peça de Anton Tchekhov, ditas pelos atores durante a encenação. E em A negra Felicidade, já com a Alfândega 88, foi norteado pelos autos de um processo relacionado à reivindicação de uma escrava por sua liberdade.

Agora, o diretor volta a se valer de documentos, contrastando, porém, o caráter impessoal com uma perspectiva notadamente pessoal. Afinal, o projeto tem como base a evocação da trajetória de um dos atores do grupo, Silvano Monteiro, o controlador de tráfego aéreo do título que abandonou a Aeronáutica após longo desgaste e abraçou a carreira artística, guinada que o levou a viver um período na rua. No entanto, Moacir Chaves (responsável pela costura dramatúrgica) empreende um movimento de abertura: parte de Monteiro, mas logo retira o foco dele – sem, contudo, perdê-lo de vista – ao propor articulações com textos diversos. A dramaturgia – de início, afunilada – se torna abrangente, o que não significa que se afaste de uma determinada espinha dorsal. Chaves insere trechos de obras de autores de diferentes fases históricas, como William Shakespeare (Rei Lear), Maximo Gorki (Ralé), Thomas Morus (Utopia) e Machado de Assis (Memórias póstumas de Brás Cubas). Como em muitas de suas montagens, o diretor sublinha a continuidade no presente de estruturas de funcionamento do passado.

À medida que o espetáculo avança, Chaves dá partida a uma dupla descentralização – no que se refere ao mencionado âmbito dramatúrgico e no que diz respeito à configuração espacial. Silvano Monteiro surge sobre uma grande mesa, no meio de um círculo de cadeiras ocupadas pelos espectadores e pelos atores, onde traz à tona a atividade de controlador de tráfego aéreo. Monteiro se distancia do centro da cena e os focos recaem sobre os atores sentados junto ao público (a iluminação de Aurelio de Simoni é importante aliada na “demarcação” das transições), todos em cima do palco do Teatro Serrador. O elenco evidencia afinidade no registro interpretativo – por exemplo, através de uma fala que comenta o texto, realçando certo deboche em relação ao sistema (social, político, econômico, ideológico), ao invés de reiterá-lo (problema que não ocorre nem nos instantes em que se detecta um paralelismo entre o tom adotado e a voltagem emocional do material verbal). Entretanto, o entrosamento do elenco não anula a individualidade contida no trabalho de cada ator, cabendo destacar Leonardo Hinckel e Rafael Mannheimer.

Daniel Schenker é Doutor em Teatro e crítico do blog danielschenker.wordpress.com

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