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O paradoxo da existência virtual (do teatro)
O fechamento dos teatros, para nós que frequentávamos o teatro três ou quatro vezes por semana (e não me refiro apenas aos críticos e jurados de prêmios, como é o meu caso, mas às atrizes, atores, faxineirxs, diretorxs, iluminadorxs, cenógrafxs, porteirxs, bilheteirxs, seguranças, aficcionadxs de todos os tipos, etc) faz lembrar aquela história da pessoa que teve uma perna amputada, mas que todas as noites sente uma coceira insuportável no membro perdido. Não são poucas as coisas nesta vida que se tornam mais reais e imprescindíveis quando as perdemos. Ou estamos na iminência de perder. (E não me refiro apenas à liberdade em tempos de quarentena e desgoverno…).
Mecanismos de descentralização

A montagem de O controlador de tráfego aéreo reúne características do trabalho do diretor Moacir Chaves – frequentes antes da fundação da companhia Alfândega 88, com a qual se estabeleceu no Teatro Serrador. Possivelmente a conexão mais perceptível entre esse novo espetáculo e alguns anteriores resida na adoção como matéria-prima de elementos não só não teatrais como bastante áridos em suas concretudes. Em Bugiaria – realizado com a Péssima Companhia, coletivo capitaneado pelo diretor no final da década de 90 – um processo inquisitorial ganhou surpreendente transposição cênica. Em O jardim das cerejeiras, Chaves incluiu as rubricas da peça de Anton Tchekhov, ditas pelos atores durante a encenação. E em A negra Felicidade, já com a Alfândega 88, foi norteado pelos autos de um processo relacionado à reivindicação de uma escrava por sua liberdade.
Manipulações sonoras e visuais
Desde o início de 2012, a companhia Alfândega 88, da qual Moacir Chaves é diretor artístico, vem ocupando o Teatro Serrador, no centro do Rio de Janeiro, com o patrocínio do Fundo de Apoio ao Teatro, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. A companhia programa as atividades do espaço, no qual também apresenta dois espetáculos próprios em repertório – Labirinto, de 2011, e A negra Felicidade, de 2012. Esta conversa com o diretor foi realizada em julho de 2012, no âmbito do estudo para a dissertação de mestrado “Cenas da voz: A sonoridade no teatro de Aderbal Freire-Filho, Moacir Chaves e Jefferson Miranda”, recém-defendida por mim no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Unirio.
MARCIO FREITAS – Nas suas peças, eu identifico um trabalho muito particular, e de muita precisão, com a emissão vocal dos atores. Como você prepara a voz desses atores? Você tem um conjunto de exercícios que são trabalhados regularmente?
MOACIR CHAVES – Para os atores especificamente não. Porque o que eu espero dos atores é que eles tenham capacidade de execução. Portanto que eles sejam formados, que eles sejam atuadores capazes, essa é a expectativa. Eu tenho exercícios para alunos, mas esses exercícios também não são exercícios que levarão à formação, e sim à percepção da necessidade da formação.
A história que permanece

“Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado.”
Walter Benjamin
A companhia Alfândega 88 apresenta, no palco do Teatro Serrador, o espetáculo A negra Felicidade. Sob a direção de Moacir Chaves, a montagem é organizada a partir da alternância de diferentes registros de escrita, entrecruzando vozes de elementos narrativos diversos, como dois autos de um processo jurídico, retirados dos arquivos públicos da cidade do Rio de Janeiro, de fins do século XIX, classificados do Jornal do Commercio da mesma época, um sermão religioso e, por fim, o fragmento de um solilóquio, extraído da peça O jardim das cerejeiras, de Tchekov. Os quadros são dispostos de forma fragmentada e forjam sentidos na medida em que a sucessão dos fatos deixa entrever uma necessidade do diretor de trazer, para o debate público, as mazelas que herdamos dos procedimentos de conduta éticos e morais do passado.
Uma encenação na frontalidade

A encenação dirigida por Moacir Chaves de O retorno ao deserto, texto de Bernard-Marie Koltès, produz um continente tensionado pelas noções de superfície e profundidade por meio da opção de valorização da palavra como vetor da teatralidade. Essa tem sido, em uma boa medida, uma das investidas observáveis no trabalho do diretor, que cria zonas de contrastes para a recepção, construídas por um movimento de aproximação e de distanciamento que abre espaço para o jogo reflexivo. A ideia de uma teatralidade pautada pelo texto orientou fortemente o teatro ocidental, mas foi paulatinamente desconstruída em favor dos demais elementos da representação teatral na contemporaneidade. Assim, O retorno ao deserto aparece como um objeto constituinte de uma historicidade teatral, na razão própria de seu deslocamento.