Tag: Vol XIV nº 73 junho a dezembro de 2022
A árvore metálica do vale de cada pessoa
Um vale é uma área de depressão territorial alongada, de baixa altitude, cercada por montanhas ou colinas. Sua formação se dá normalmente devido à atividade fluvial: a correnteza das águas provoca uma erosão e um vale é formado, em processo lento e contínuo de deslocamento de materiais de um lugar para outro. É lá no fundo desse vale em que acontece Vale da Estranheza – espetáculo do grupo alemão Rimini Protokoll – apresentado na 8ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, com direção de Stefan Kaegi. Nesse terreno movediço, a peça faz girar e profanar elementos muitas vezes lidos como separados, mas que só existem na relação com o que aparenta ser seu oposto: robô e gente, vida e morte, pele e silício, saúde e doença, mania e depressão, acerto e erro, estabilidade e instabilidade, corpo e engrenagem.
Negro-vida em oposição ao Negro-tema
Eu tenho direito ao espaço que ocupo na nação, nessa nação.
(…) A terra é meu quilombo. O meu espaço é o meu quilombo.
Onde eu estou, eu estou, onde eu estou, eu sou.
Beatriz Nascimento
O 8° Festival Midrash de Teatro, idealizado por Nilton Bonder, com curadoria de Vilma Melo e Natasha Corbelino, reuniu presencialmente 20 peças teatrais e ações formativas no período de 01 a 28 de maio de 2022 no Teatro Café Pequeno, no Leblon. Foi uma mostra extensa do teatro produzido por artistas negros que estabeleceu um deslocamento geográfico, étnico, político e cultural na cidade. Tratou-se de um festival de Teatro Negro por contemplar produções teatrais que tinham como característica em comum a predominância de artistas negros, contrariamente ao que é praticado no sistema cultural de uma maneira geral. Para mim, o festival buscou evidenciar distintas produções não monolíticas que não reforçassem a ideia de Teatro Negro como monocultura. No entanto, para além dos diversos modos de produção e estéticas, podemos perceber pontos de convergência no que tange às negritudes, termo cunhado pelo poeta martinicano Aimé Cesaire e tão caro a Abdias do Nascimento e ao Teatro Experimental do Negro aqui no Brasil, inspiração para a maioria dos artistas racializados desse país.
Gerald Thomas compõe seu “ready-made” rodriguiano
Um feto suspenso no espaço por uma rede tenta romper as fronteiras limitantes em F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada), espetáculo de Gerald Thomas a partir de Doroteia, de Nelson Rodrigues. Está pronto para entrar no mundo. E o mundo, está pronto para recebê-lo?, parece nos perguntar o encenador.
Em sua primeira incursão na obra de Nelson Rodrigues, o diretor faz renascer apenas o DNA do clássico da dramaturgia brasileira. Estilhaça o texto compondo quadros vivos autônomos entre si que conservam pouco mais do que o deboche da obra original em relação à sociedade de seu tempo. A fidelidade de Gerald não é literal, textual, mas conceitual. Centra-se na visão social e política de Nelson e sua Doroteia (1949). “Esta não é uma ave de cunho psicológico”, avisa Fabiana Gugli em cena cacarejando abraçada a uma ave decepada, para não deixar dúvidas sobre o caráter anárquico da releitura.
Camadas biográficas entre idas e vindas temporais
Turmalina 18-50 é, inicialmente, sobre João Cândido Felisberto, Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata ocorrida em 1910. A obra conta em detalhes toda a trajetória de dor e de lutas contra o racismo por parte de Felisberto – nome que lhe foi negado pela Marinha do Brasil à época. Trazer à cena a história desse herói negro, morador de São João de Meriti, mesmo território da Cia Cerne, autora do trabalho, sugere uma duplicidade biográfica no que tange à vida e aos feitos do personagem principal, mas também à identidade que atravessa esse coletivo de artistas. A Cia Cerne integra a Rede Baixada em Cena, organização cultural criada em 2008 na Baixada Fluminense para fortalecer a consciência política e participativa de artistas e produtores da região. A Cia Cerne também é um dos 22 coletivos integrantes da Rede de Grupos de Pesquisa Continuada em Teatro da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a Frente Teatro, que tem como valor expandir territórios e fomentar compartilhamentos entre artistas de todas as regiões do Rio de Janeiro.
Tempo crioulo, tempo criativo
Diego Araúja é artista de Salvador. Produz arte de modo expandido desde 2011. Suas mídias são literárias, visuais, cênico-performáticas e cinematográficas; nas funções de diretor, dramaturgo, cenógrafo, roteirista e artista visual. Dirige o processo Estética Para um Não-Tempo, com o objetivo de instaurar tempos qualitativos para a produção de memórias afro-diaspóricas emancipadas do trauma; o que gerou a obra QUASEILHAS (2018). Este processo possui 2 investigações complementares: estudos da performance-exposição das psiques negras no campo narrativo; e o Laboratório Internacional de Crioulo (LIC), que consiste na fundação de um agrupamento atlântico-internacional entre artistas do corpo para conceber, a longo prazo, “uma língua não-nascida do trauma”, um novo crioulo. O LIC foi ativado em 2020 no Pivô Arte e Pesquisa (São Paulo-SP) e, ainda em 2021, iniciará o mapeamento de artistas do corpo no mundo atlântico, através da Trienal FRESTAS (Sorocaba-SP). Em 2017 Araúja funda, juntamente com a artista Laís Machado, a Plataforma ÀRÀKÁ – um território de criação e produção em arte expandida e transdisplinar. Concebeu uma performance coreográfica para videoinstalação A Marvellous Entanglement, do artista britânico Isaac Julien. Foi convidado para as residências artísticas: Atlantic Center For The Arts (Flórida-EUA) e SAVVY Contemporary (Berlin-GER) em 2020. No mesmo ano, participou do ¡ADELANTE! – Iberoamerikanisches Theaterfestival (Heidelberg-GER) com seu trabalho QUASEILHAS. Diego Araúja também foi indicado a “melhor diretor” por QUASEILHAS; e ganhou o prêmio na categoria “melhor texto” pelo Prontuário da Razão Degenerada, além das indicações de “melhor diretor” e “melhor espetáculo”, respectivamente, no Prêmio Braskem de Teatro da Bahia 2019 e 2020.
A conversa foi realizada por Daniele Avila Small e Lorenna Rocha em março de 2022 para a revista Critical Stages e publicada primeiramente em inglês.
Qual o lugar do teatro na sua formação como artista?
A decisão de ser artista veio antes da decisão do que fazer como artista. Apesar disso, lembro de ter a clara consciência da minha disposição para a narrativa. Como ouvinte, leitor ou plateia, mas também como praticante da narração. Não é simplesmente um ditado, expressão retórica ou, até mesmo, uma mentira; quando alguém diz que as histórias estão para além da narração, do livro, da performance de contação. Que está nas sonoridades, melodias, em imagem, como espaço, em movimento, nessas possibilidades do abstrato. Por isso fui buscando a narrativa por esses meios: escola de música, ateliê de artes plásticas, metalúrgica náutica, marcenaria e mercearia, curso de escrita criativa, concepção fílmica. Estava buscando a resposta para a pergunta: o que poderia ser essa minha narrativa?.