Camadas biográficas entre idas e vindas temporais
Crítica de Turmalina 18-50, da Cia Cerne
Turmalina 18-50 é, inicialmente, sobre João Cândido Felisberto, Almirante Negro, líder da Revolta da Chibata ocorrida em 1910. A obra conta em detalhes toda a trajetória de dor e de lutas contra o racismo por parte de Felisberto – nome que lhe foi negado pela Marinha do Brasil à época. Trazer à cena a história desse herói negro, morador de São João de Meriti, mesmo território da Cia Cerne, autora do trabalho, sugere uma duplicidade biográfica no que tange à vida e aos feitos do personagem principal, mas também à identidade que atravessa esse coletivo de artistas. A Cia Cerne integra a Rede Baixada em Cena, organização cultural criada em 2008 na Baixada Fluminense para fortalecer a consciência política e participativa de artistas e produtores da região. A Cia Cerne também é um dos 22 coletivos integrantes da Rede de Grupos de Pesquisa Continuada em Teatro da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a Frente Teatro, que tem como valor expandir territórios e fomentar compartilhamentos entre artistas de todas as regiões do Rio de Janeiro.
O espetáculo é uma convocação à memória de João Cândido, filho de ex-escravizados que teve importante trajetória política em defesa das pessoas negras. A Revolta da Chibata foi um dos marcos de seu engajamento político, que buscou garantir os direitos da população negra na Marinha, quando esta ainda praticava torturas como forma de disciplinar marinheiros e inibir suas mobilizações políticas – em um momento em que sua grande maioria era composta por corpos negros –, ainda que a chibatada não fosse mais permitida por lei. Já naquela época, a referida prática deflagrava os resíduos da escravização dos corpos negros como biopolítica, que ainda persistem nos dias de hoje. A juventude que mais morre por intervenção policial em territórios vulneráveis da cidade do Rio de Janeiro é a negra. Então, encenar um espetáculo inspirado na biografia de João Cândido é dar um rosto aos movimentos sociais liderados por pessoas negras que são de extrema importância para a garantia de seus direitos sociais. Mas é também dar o devido reconhecimento às histórias de lutas em que o protagonismo é negro e que, quase sempre, são invisibilizadas pela História.
Turmalina 18-50 faz parte do repertório da Cia Cerne, fundada em 2013 na cidade de São João de Meriti, Baixada Fluminense, com dramaturgia e direção de Vinicius Baião, supervisão de Rodrigo França, pesquisa de Luiz Antônio Simas e um elenco predominante negro composto por Átila Bee, Madson Vilela, Graciana Valladares, Higor Nery, Gabriela Estolano e Leandro Fazolla. As operações cênicas realizadas pela Cia Cerne nos remetem imediatamente ao passado, mas com o compromisso sociopolítico de nos fazer refletir o presente. O cenário de Cachalote Mattos, a trilha sonora de Kadu Monteiro (que também realiza a direção musical e preparação vocal) e, sobretudo, a dramaturgia de Baião fazem o espectador se conscientizar de como aqueles mesmos resíduos da escravidão ainda persistem na atualidade e de como servem à estrutura capitalista da desigualdade, como promovem a manutenção do racismo estrutural, que jamais foi devidamente desarticulado.
O cenário articulável, com módulos giratórios capazes de assumirem inúmeros formatos em cena, é quase como uma alegoria do necessário desmonte dessa estrutura racista rígida cuja manutenção interessa ao sistema capitalista, pois não existe capitalismo sem escravização dos corpos subalternos. A cenografia propicia inúmeras formas para contar a história do Almirante Negro, ora situando a cena em um navio, ora remetendo à prisão, por exemplo. É a partir dessa leitura que me proponho a analisar esse espetáculo, observando a sua proposição de alternar a localização da cena entre uma e outra referência espacial. Acredito que esse entrelugar é o que faz desse espetáculo algo tão atual. As referências ao mar trazem à tona a memória colonial consolidada na travessia dos navios negreiros que transportaram inúmeros corpos negros para a escravização no Brasil. Por outro lado, o mar também simboliza a liberdade dos corpos negros pós-abolição. No entanto, não podemos jamais esquecer que o Brasil foi o país que mais colonizou corpos negros e o último a abolir a escravidão.
A cena da prisão de João Cândido e outros marinheiros por conta das mobilizações sociais não nos permite esquecer a tradição de práticas genocidas contra a população negra. Essa mesma cena me remete aos vagões dos navios negreiros lotados das populações africanas em condições precárias – quando muitos morreram antes mesmo de chegarem ao Brasil –, e às prisões atuais no país, igualmente lotadas, resultando no encarceramento em massa que concentra corpos negros (que constituem a maior parte da população carcerária no país) em cubículos até a morte. São acontecimentos históricos que se repetem, tomando outros formatos entre o passado e o presente, materializado pelo uso dinâmico do cenário na direção de Vinícius Baião. O genocídio dos corpos negros perpetua até os dias de hoje com a comprovação das estatísticas de morte da população negra, muitas das vezes associado à intervenção do poder público. O espetáculo nos faz transitar entre a liberdade e a prisão, entre o passado e o presente, “entre a denúncia e a anunciação”.
O Almirante Negro, como era chamado, sofreu retaliações políticas e foi expulso da Marinha de Guerra do Brasil sem nunca ter sido devidamente reconhecido pelas conquistas decorrentes das lutas políticas que travou. Faleceu empobrecido em 1969 como morador da rua Turmalina em São João de Meriti, mesma localidade da Cia Cerne, autora do trabalho. A noção territorial é tão cara ao espetáculo que está contemplada em seu título, uma vez que Turmalina 18-50 é o endereço em que o personagem principal residiu, e que é próximo à casa do ator Átila Bee. O esforço de memória promovido por esse espetáculo é sobre a biografia de Felisberto, como gostava de ser chamado, mas também, sobre São João de Meriti e a Cia Cerne. O espetáculo fala também sobre os artistas em cena, o que está evidente no depoimento de Átila Bee sobre a violência contra seu corpo negro e homossexual, ocorrida na rua Turmalina, ao mesmo tempo moradia do personagem histórico e lugar real da precariedade causada pela negligência de políticas públicas. Essa articulação dramatúrgica se repete ao final do espetáculo quando todos os atores e atrizes mencionam ao público suas identificações às lutas sociais por melhores condições de vida.
Há nesse trabalho um propósito específico do grupo, de encenar sua identidade territorial e social. Trata-se de um trabalho importante por toda a sua pesquisa cênica, mas ainda mais relevante por sua perspectiva ética, por todas as suas dimensões de conscientização social, como a discussão sobre o direito à cidade, implícita na existência desse coletivo. Movimentos artísticos como esse têm sido fundamentais para a fomentação da produção teatral de lugares periféricos do Estado, da visibilidade de coletivos da Baixada e outras regiões do Rio de Janeiro, muitas vezes alijados das políticas públicas, inclusive cultural. Movimentos como esse têm fortalecido coletivos artísticos por meio da organização coletiva, da criação de estratégias de circulação no Estado e do engajamento de públicos e intercâmbios, além de propiciar o deslocamento pela cidade. A Cia Cerne esteve com o espetáculo no Teatro da Casa de Cultura Laura Alvim, localizado na zona sul do Rio de Janeiro, e, recentemente, no Sesc Tijuca, região norte da mesma cidade. Logo, falar da sua localidade tem também uma intencionalidade política que é o de circular por diferentes localidades.
O apagamento histórico de João Cândido Felisberto é também uma metáfora do apagamento que a cena teatral da Baixada Fluminense sofreu ao longo de anos devido à desigualdade social – que é também territorial. O apagamento histórico sofrido pelo personagem principal também é uma analogia ao apagamento da produção cultural periférica da cidade do Rio de Janeiro que tem dificuldades de estar no jornal, por exemplo. Coletivos como a Cia Cerne têm sido responsáveis por alterar os eixos dessa capital tão excludente, inclusive para seus artistas.
Viviane da Soledade é Bacharel em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), pós-graduada em Arte e Cultura pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), pós-graduada em Gestão Cultural pelo Itaú Cultural e Instituto Singularidades e doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
Vol. XIV nº 73, junho a dezembro de 2022
Foto em destaque: Stephany Lopez.