Gerald Thomas compõe seu “ready-made” rodriguiano

Crítica de F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada), de Gerald Thomas

22 de agosto de 2022 Críticas

Um feto suspenso no espaço por uma rede tenta romper as fronteiras limitantes em F.E.T.O. (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada), espetáculo de Gerald Thomas a partir de Doroteia, de Nelson Rodrigues. Está pronto para entrar no mundo. E o mundo, está pronto para recebê-lo?, parece nos perguntar o encenador.

Em sua primeira incursão na obra de Nelson Rodrigues, o diretor faz renascer apenas o DNA do clássico da dramaturgia brasileira. Estilhaça o texto compondo quadros vivos autônomos entre si que conservam pouco mais do que o deboche da obra original em relação à sociedade de seu tempo. A fidelidade de Gerald não é literal, textual, mas conceitual. Centra-se na visão social e política de Nelson e sua Doroteia (1949). “Esta não é uma ave de cunho psicológico”, avisa Fabiana Gugli em cena cacarejando abraçada a uma ave decepada, para não deixar dúvidas sobre o caráter anárquico da releitura.

A tragicomédia de Nelson Rodrigues foi escrita onze anos após Jean Paul Sartre criticar a ausência de sentido do mundo no romance existencialista A náusea (1938) e retoma o tema enfocando a repressão sexual e o moralismo de sua época. Na peça, culpada pela morte do filho, Doroteia deixa de ser puta para voltar para casa, unindo-se às mulheres castas da família. Tem que aprender com elas a sentir náusea em vez de prazer, a domar o desejo e a apagar sua feminilidade.

Em sua leitura, Thomas se apropria da maternidade perdida como metáfora para falar sobre a morte – ou o renascimento – da arte, do homem, do país, de um mundo regido por guerras, pela fome, pelo desencanto, em que o desejo se tornou um impulso apático e humanidade, uma qualidade em extinção.

Seu discurso passa longe da racionalidade. Evoca quadro a quadro sucessivamente o fim dos tempos, elaborando-se a partir do poético, a partir de signos diversos. Thomas conduz o espectador a uma descida aos infernos de sua era por meio de uma viagem inconsciente na qual o tom satírico do percurso alivia seu caráter trágico. Passa por Doroteia, de Nelson, pelo niilismo de Beckett, pela metalinguagem e segue rumo a um jogo estético imagético regido pela abstração e a metafísica, sempre a dispensar o território do mental.

Uma bala de canhão coroada em sua extremidade por um mamilo atravessa a cena anunciando o estilo do bombardeio proposto por Thomas. No palco vermelho, três cortinas se abrem para o vazio emoldurando o nada. Fabiana Gugli abana o passado de hábitos e valores europeus com um leque enquanto voa pelos ares em espasmos de prazer acrobáticos memoráveis. Os atores Rodrigo Pandolfo, Lisa Giobbi e Beatrice Sayd vomitam suas náuseas em um bule.

F.E.T.O. Foto: Matheus José Maria.
F.E.T.O. Foto: Matheus José Maria.

Na mesma toada, o feto morto do quadro de Iberê Camargo No Vento e na Terra 1 (1991) ocupa o centro do palco no início da peça, e, mais adiante, ganha o tablado uma reprodução do primeiro ready-made de Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta (1913) – obra-protesto representante de uma conceituação desmedida de pensar a arte, que dá status de museu, por exemplo, à tal roda de bicicleta fincada em um banquinho de madeira.  Duchamp surge duplamente. Ele inspira também o subtítulo da peça. O quadro Nu Descendo a Escada (1912) marca mais uma provocação do artista francês na história da arte. Nele, o tema clássico da nudez é deslocado da representação usual. O corpo feminino é representado de forma cubista, em movimentos decompostos.

As referências reforçam a busca de Thomas pela ressignificação de decomposições temáticas e formais, pelo questionamento dos pilares balizadores dos valores humanos e artísticos. Trata-se de uma prática recorrente em sua trajetória prolífica, conhecida pela remontagem de diversos textos de Heiner Muller e de Beckett, seu guru assumido.

Há cerca de 40 anos, desde que estreou seu primeiro Beckett no La MaMa, em Nova York, o encenador faz de seus experimentos composições essencialmente não-teatrais, exploradoras de códigos de desconstruções. Já alardeou a influência do dramaturgo e diretor irlandês considerado um dos escritores mais influentes do século passado, em peças como Quatro Vezes Beckett (1985) – sucesso no país que chegou a ser apresentado na Bienal de Veneza, -, e no projeto Asfaltaram a Terra (2006), composto por 4 espetáculos que celebravam seu centenário. Também já renegou abertamente este grande nome do teatro do absurdo, ao lado de Ionesco, Harold Pinter e Jean Genet: “Chega de Beckett”, gritou Gugli no solo G.A.L.A., de 2021.

Evocando-o ou rejeitando-o, é fato que Thomas partilha de uma busca comum a Beckett ao erigir trabalhos esteticamente belos e potentes, tendo como pilar central a desilusão na humanidade, o desgaste e a depreciação da linguagem.

Em sua leitura ao mesmo tempo atual, libertária e sensorial de Nelson Rodrigues, o F.E.T.O. de Gerald Thomas nasce com o poder de extrair sinais de vitalidade da plateia. Carrega a potência de fazer soar no corpo a força do teatro, ultrapassando sentidos nomeáveis. A mente desperta, a respiração se altera, a visão busca o que muitas vezes não é visível.

É necessário trabalho para transformar a destruição cênica proposta em arte, em alimento artístico. Como nos ready-mades de Duchamp, o encenador exige empenho do espectador para ultrapassar o caráter puramente provocador ou a aleatoriedade aparente da obra. É preciso recolher as ruínas expostas em cena e recodificá-las. Há que se ativar também os motores do terreno do sensível. Só assim para tocar seu âmago.

Com F.E.T.O., Thomas constroi seu ready-made. Um ready-made irreverente e iconoclasta, alerta sobre a necessidade da reinvenção da sociedade e a cultura de seu tempo, no melhor estilo rodriguiano.


Gabriela Mellão é autora, diretora de teatro e crítica. É pós-graduada em Jornalismo Cultural na PUC, com passagem pela Universidade Sorbonne, em Paris (Cultura e Civilização Francesa) e Harvard, em Boston (Dramaturgia e História do Teatro Moderno). É membra da Associação Internacional de Críticos de Teatro e compõe o júri do prêmio APCA. Foi repórter teatral da Folha de São Paulo entre 2008 e 2012, crítica da Revista Bravo! entre 2012 e 2022, ano do fechamento da mesma, além de curadora de diversos festivais e editais. É roteirista, diretora e editora de duas peças/filmes: Começo do Fim (2022) e Fragmentos Possíveis (2020), este último vencedor como melhor curta-metragem experimental nos festivais New York Cinematography Awards(EUA), London Indie Short Festival (Inglaterra), entre outros. Tem diversas obras de teatro escritas e encenadas, como Kansas (2018), DesolaDor (2018-19), e Nijinsky – Minha Loucura é o Amor da Humanidade (2014/15), apresentada no Festival de Avignon off. Também é autora de Sylvia Plath – Ilhada em Mim (2014-18), espetáculo cuja direção de André Guerreiro Lopes foi premiada pela APCA. Publicou o livro “Gabriela Mellão – Coleção Primeiras Obras”.

Vol. XIV nº 73, junho a dezembro de 2022

Foto em destaque: Matheus José Maria.

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