Negro-vida em oposição ao Negro-tema

Leitura crítica do 8° Festival Midrash de Teatro

25 de agosto de 2022 Críticas

Eu tenho direito ao espaço que ocupo na nação, nessa nação.
(…) A terra é meu quilombo. O meu espaço é o meu quilombo.
Onde eu estou, eu estou, onde eu estou, eu sou. 

Beatriz Nascimento

O 8° Festival Midrash de Teatro, idealizado por Nilton Bonder, com curadoria de Vilma Melo e Natasha Corbelino, reuniu presencialmente 20 peças teatrais e ações formativas no período de 01 a 28 de maio de 2022 no Teatro Café Pequeno, no Leblon. Foi uma mostra extensa do teatro produzido por artistas negros que estabeleceu um deslocamento geográfico, étnico, político e cultural na cidade. Tratou-se de um festival de Teatro Negro por contemplar produções teatrais que tinham como característica em comum a predominância de artistas negros, contrariamente ao que é praticado no sistema cultural de uma maneira geral. Para mim, o festival buscou evidenciar distintas produções não monolíticas que não reforçassem a ideia de Teatro Negro como monocultura. No entanto, para além dos diversos modos de produção e estéticas, podemos perceber pontos de convergência no que tange às negritudes, termo cunhado pelo poeta martinicano Aimé Cesaire e tão caro a Abdias do Nascimento e ao Teatro Experimental do Negro aqui no Brasil, inspiração para a maioria dos artistas racializados desse país.

O Festival Midrash de Teatro produziu um recorte do teatro negro em que a curadoria de Vilma Melo e Natasha Corbelino, ambas com trajetórias artísticas questionadoras dos modos hegemônicos de produção teatral no Rio de Janeiro, apresenta uma intenção de provocar esse choque territorial, narrativo e social. Vilma Melo foi a primeira atriz negra a ganhar o Prêmio Shell, em 2017, depois de anos de importante contribuição para as artes cênicas no Rio de Janeiro como atriz, diretora e professora. Natasha Corbelino, artista da cena, foi responsável pela iniciativa de intercâmbio entre grupos de teatro no Rio de Janeiro denominada A cena da cidade, no início dos anos 2000. Ambas têm como mobilização em suas trajetórias a disrupção entre centro e periferia, branco e preto, erudito e popular, ao assumirem posturas artísticas que não desconsideram a perspectiva social do teatro e compreendem a complexidade que é a cidade e suas inúmeras distinções, operadas, inclusive no sistema cultural. Ambas são profissionais das artes que buscam, cada uma a seu modo, alterar a dinâmica da produção teatral e as realidades da cena dos corpos dissidentes. Nesse sentido, a construção de fabulações negras é urgente e se faz indiscutivelmente necessária, uma vez que é por meio da presença dos corpos negros em todos os espaços da cidade que poderemos exercitar de fato a democracia nesse país.

Trata-se de uma mostra que, antes de confrontar a cena, já tensiona a fruição de seus públicos compostos por pessoas brancas e negras na zona sul, Leblon, IPTU mais caro da cidade do Rio de Janeiro, onde pessoas negras são na sua grande maioria os subalternos e subalternizáveis. Essa desestabilização social já determina um deslocamento de corpos, que, por sua vez, é também territorial. A reunião desses 20 trabalhos produzidos por artistas negros – periféricos territorial ou socialmente – possibilita ao público não negro ver para além dos seus esquemas privilegiados.

No festival, os deslocamentos territoriais e poéticos atingiam a sua radicalidade citando a favela como cenário e principalmente como referência artística, como em Nem todo filho vinga da Cia. Cria do Beco, grupo formado por jovens artistas negros, universitários e moradores do Complexo de Favelas da Maré. Mas também como inspiração como em Eu Amarelo, monólogo com Cyda Moreno, que cita a favela como universo de moradia e criação da escritora Carolina Maria de Jesus, local onde a autora escreveu o seu diário que aborda visceralmente a dinâmica da favela.  O espetáculo apresenta de uma maneira ficcional a biografia de Carolina Maria de Jesus em que a favela é também o protagonista.

Depois de temporada no Museu da Maré, a Cia Cria do Beco apresenta no Festival Midrash o espetáculo Nem todo filho vinga, sobre a questão do genocídio negro, com direção de Renata Tavares, arte educadora do projeto Entre Lugares voltado para o ensino de teatro para jovens do Morro do Timbau na Maré. Não é à toa que o espetáculo tem como cenário a Maré, uma das mais importantes favelas do Rio de Janeiro. Deslocamento urbano é uma pauta do direito à cidade muito cara aos corpos periféricos e, talvez por isso, seja uma questão em muitos trabalhos dessa mostra. Esse deslocamento ao qual me refiro é também uma operação cênica a ser compartilhada nesse trabalho com o espectador, com a criação do movimento do espectador no espaço.

Inicialmente o público é colocado de maneira frontal diante do palco que estabelece como cena a laje, o coração de toda e qualquer casa popular. Em seguida propõe-se que o espectador se desloque para dar espaço aos becos e passagens característicos das favelas, criados na presença do espectador e com ele. E desse modo o espetáculo vai sendo conduzido pelos atores com a sua narrativa ficcional, mas que em muitos momentos se coloca de maneira biográfica como modo de reivindicação de equidade e justiça social. O espetáculo parece produzir uma outra operação interna muito cara a alguns espetáculos que assisti na mostra: trata-se de um espetáculo de pessoas negras para pessoas brancas. O público branco é convocado a refletir sobre o racismo estrutural e suas consequências. E isso é provocado conscientemente por meio de uma discussão política de corpos dissidentes constantemente afetados pelas desigualdades sociais.

Nem todo filho vinga. Foto: divulgação.
Nem todo filho vinga. Foto: divulgação.

Por vezes, o deslocamento do público para o universo da periferia vinha somente por meio da dramaturgia e do corpo do ator, como no caso de Cuidado com Neguin, de Kelson Succi que aborda a vivência e o deslocamento de um jovem pobre, preto e favelado, que sobe e desce o Complexo do Alemão diariamente para ocupar a cidade. Esse trabalho é também, de maneira mais direta, uma interpelação aos públicos brancos e não negros que são constantemente questionados pela reprodução do racismo estrutural. Cuidado com Neguin, é uma obra em processo que questiona, do início ao fim, a branquitude, com inúmeras perguntas ao espectador que me parecerem ser direcionadas muito mais para uma plateia identificada pelo ator como branca, com o intuito de construir uma atmosfera crítica e desconfortável. O ator, em sua performance, evidencia a importância de ter uma plateia preta e artistas pretos em programações culturais, para romper com a lógica racista e de subalternização dos corpos negros – inclusive – nas artes.

Muitos trabalhos apresentados no festival possuem um caráter fortemente biográfico, a exemplo dos já citados, incluindo Cão Chupando Manga, um exercício cênico do ator Fábio Freitas que mistura teatro, circo, dança e artes plásticas na construção de uma dramaturgia ficcional com inspiração em citações biográficas. No caso de Eu Amarelo, a origem dramatúrgica, que é o livro Quarto de Despejo, acaba tendo uma aproximação biográfica por tratar-se de um diário da autora. Esse trabalho nos evidencia a importância de estar no palco para sair do quarto de despejo.

Eu amarelo. Foto: Edu Monteiro.
Eu amarelo. Foto: Edu Monteiro.

Não é à toa que a biografia atravessa os corpos dos artistas, sobretudo pretos, por conta do marcador racial e da extrema violência desse país, que precisa ser denunciada constantemente, como é feito em Turmalina 18-50, ao relembrar os abusos sofridos pelos marinheiros negros do século passado que resultam na histórica Revolta da Chibata, marco na luta por igualdade racial em nosso país. O movimento foi conduzido por João Cândido, um herói nacional pobre e esquecido, incógnito na cidade do João de Meriti, na Baixada Fluminense, mesma localidade da Cia Cerne, produtora do trabalho, que tem constantemente furado a bolha da cidade e conquistado ampla circulação por diferentes territórios.

Muitos são trabalhos que atravessam a realidade do corpo preto de uma forma ou de outra, produzindo encarnações de maneiras distintas. De certo modo podemos perceber isso em Reencarnação, uma palestra-performance criada pela artista Larissa Siqueira, que compartilha camadas de sentidos com o espectador de maneira elaborada, por meio de um acervo de citações poéticas que são referências artísticas e também biográficas reunidas ao longo de uma vida. Referências essas que foram aparecendo para ela e constituindo o seu olhar enquanto artista e cidadã. São imagens sobrepostas, enunciações que ora são ditas pela artista em cena presencialmente, ora no vídeo, criando sobreposições que problematizam até mesmo as noções de corpo, tempo e espaço.

São muitos os trabalhos apresentados no festival que não nos permitem desassociar os artistas de sua condição cidadã. Jongo Mamulengo dos coletivos Bonobando, Jongo da Serrinha e Cordão do Boitatá, traz para dentro do espaço teatral a arte do mamulengo e do jongo, muito praticada em espaços públicos, numa emocionante reverência aos mestres e mestras negras, repletos de referências políticas explicitadas em manifestações populares recentes de reivindicação às melhorias das políticas públicas de saúde, gênero e igualdade social. Todas essas manifestações também são sobre políticas de corpos não privilegiados pela estrutura governamental, que são em sua maioria trabalhadora e negra. O contato com a realidade também se dá pelo constante diálogo entre a peça e os acontecimentos do país. Nesse trabalho também há uma operação de deslocamento geográfico, sensorial e de sentido, na medida em que a arte do mamulengo normalmente é apresentada em espaços públicos, abertos e populares tais como feiras, festas e praças com grandes circulações de pessoas.

Meus cabelos de Baobá, com Fernanda Dias, Beá e Ana Paula Black é inspirado no argumento de Simone Ricco a partir de textos de Conceição Evaristo numa articulação com as mitologias africanas. Esse espetáculo é alicerçado exclusivamente na ficção, diferentemente dos outros aqui citados, e traz à tona questões de extrema importância para as populações negras tais como a ancestralidade (para lidar com o presente, os afetos, os estigmas), a valorização da identidade negra e a necessidade de fabulação de espaços de poder e prestígio. A cena final da personagem como rainha nos lembra que a representatividade positiva dos corpos negros é um ato político.

Meus cabelos de baobá. Foto: Divulgação.
Meus cabelos de baobá. Foto: Divulgação.

A representação e a representatividade dos corpos negros são, para mim, duas forças necessárias no campo da vida atravessadas pelo olhar, inclusive nas artes, que implicam na identificação (ou não) com alguém e/ou sua cultura. Ver corpos negros em lugares não subalternizados, como protagonistas de sua própria história e desconstruindo estigmas solidificados em bases racistas, também é a possibilidade de narrar a própria história, mais do que isso, a possibilidade de ficcionalizar as suas próprias imagens e criar seus próprios sentidos, como foi feito em Meus cabelos de Baobá, mas também em Quilombo, espetáculo de teatro-dança da Cia Afro Black Rio composta por moradores da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro. Em alguma medida, a dança e a performance negra podem ser compreendidas (cada uma a seu modo) como um movimento avassalador de manutenção do seu direito de criação de autoimagem. Essa causa em comum gera comunhão, forma um público (ou públicos) e cria a semelhança de um quilombo simbólico, também presente em outras dimensões da vida negra, como a religiosa, com os terreiros de umbanda e candomblé, bem como a festividade, com os terreiros de escola de samba e bailes de funk e charme. Além disso, muitos desses quilombos simbólicos se mostraram atentos ao compromisso antirracista de combate a determinadas imagens e discursos hegemônicos, além da constante vigília das produções artísticas negras que remetam a valores importantes para as pessoas negras.

Com o fortalecimento da cena teatral composta por pessoas negras, venho observando o crescente empoderamento dos públicos negros – que não acontece sem a presença dos públicos brancos ou não negros. No que diz respeito ainda aos públicos, muitos desses espetáculos assistidos no Festival Midrash de Teatro são exemplos de mobilização de pessoas negras que parecem querer ouvir suas histórias através do corpo negro semelhante. Estamos falando da possibilidade de atribuir à representação um engajamento antirracista que nos alarma para a urgência de criar dispositivos de olhar para os inúmeros modos de existência. Nos últimos anos, estive diante de acontecimentos cênicos que propõem uma política de visibilidade dos corpos negros, tornando-se impossível a negação da existência de pessoas negras qualificadas para o trabalho, produtoras de arte, criadoras de discursos representativos afetados pela discriminação que sofrem os seus corpos.

O processo de invisibilização dos corpos negros tem relações também com a forma como o Brasil se constituiu enquanto nação. Como já dizia o mestre Abdias Nascimento desde a década de 1940, com o Teatro Experimental do Negro, quase sempre o espaço oferecido aos atores e atrizes negras reforçava estereótipos racistas por meio de personagens secundários e pejorativos. Havia, segundo Abdias Nascimento, uma rejeição do negro como “(…) personagem e intérprete, e de sua vida própria, com peripécias específicas no campo sociocultural e religioso, como temática da nossa literatura dramática” (NASCIMENTO, 2004, p. 210). Mas, se foi por meio da cena (muitas vezes com a criação de uma dramaturgia inédita), da festa e do ritual que muitos coletivos negros conseguiram criar um espaço democrático e possível para suas existências, é também por essas manifestações culturais que constantemente são perseguidos e violados, devido à intolerância religiosa com os terreiros de candomblé cada vez mais acirrados nos dias de hoje, mas também aos ataques aos bailes funks endossados pela política genocida de extermínio dos corpos negros.

Quilombo. Foto: Divulgação.
Quilombo. Foto: Divulgação.

Quilombo, como tantos outros trabalhos apresentados na mostra, sugere uma relação entre escravidão, quilombo e as manifestações culturais como a capoeira, o funk e o passinho. Tratam-se de corpos que se agrupam para resistir ao criarem lutas, danças, performances como formas de ocupar espaços, ao mesmo tempo em que são profundamente atacados, tornando-se vítimas do genocídio em favelas. Se antes a forma de resistir era a fuga para os quilombos, hoje a maior fuga que as pessoas negras vêm buscando é da imagem criminalizadora de seus corpos. Esse espetáculo, como tantos outros, denuncia um ataque a meninos e meninas negras das favelas cariocas, propondo a seguinte dialética: o corpo que dança alegremente no baile funk é também aquele que está no minuto seguinte estendido no chão em decorrência dos ataques policiais, na maioria das vezes. Em Quilombo, os bailarinos-atores dançam ao som de tambores com gestos fortes, intensos, por vezes agressivos, ratificados pela imagem violenta de suas mãos ensanguentadas. A dor de ser discriminado por um olhar está presente na trajetória dos corpos negros e exige deles a necessidade de agrupamento, como a dança e a performance. Performar o corpo negro é uma forma de contracultura, na medida em que este corpo não está garantido como possibilidade de existência sem que haja censura. Por isso, esse gesto torna-se extremamente fundamental como enfrentamento ao racismo.

Acredito que essa mostra oportunizou o compartilhamento de trajetórias dos corpos negros e seus atravessamentos por meio de diferentes histórias e questões políticas comuns. Estes corpos-territórios deram ao público do Leblon a possibilidade de ampliação do olhar sobre a negritude. O festival começa muito antes da apresentação dos espetáculos, com a presença constante de corpos negros transeuntes, cidadãos, produtores e espectadores da cultura no Teatro Café Pequeno. Na cena, tivemos o privilégio de acessar inúmeros trabalhos com estéticas distintas, abordagens específicas, modos diversos de ser negro nesse país, que apresentaram muitas questões comuns, mas também múltiplas perspectivas da constituição do “teatro negro” – um marcador identitário importante por evidenciar as exclusões sociais, mas que não pode, de maneira alguma, reduzir as diferenças. Trata-se de uma identidade fluida que não deve ser mais uma vez aprisionada. É extremamente importante uma mostra como essa, pois não podemos fingir que não há desigualdade. Chego a pensar que talvez só uma programação como essa deixaria os públicos negros à vontade para frequentar um teatro na zona sul da cidade tal como pude presenciar, pois foi uma mostra em que os negros e negras não eram exceção (!) e que desmistificou a narrativa racista de que não há artistas negros nesse país. No entanto, o festival não é para os negros e sim para todes, uma vez que uma programação aponta caminhos e ratifica que pessoas racializadas, na mesma medida em que precisam se aquilombar, precisam andar por aí!

Nota

O título é inspirado nas reflexões propostas pela artista, professora e pesquisadora Renata Aparecida Felinto dos Santos, que tem proposto uma análise sobre o registro da vida das pessoas negras em obras artísticas livres dos estereótipos cunhados pelo colonialismo como forma de interdição.

Referência bibliográfica

NASCIMENTO, Abdias. Teatro Experimental do Negro: trajetória e reflexões. Estudos Avançados 18 (50), 2004 (p. 209 – 224).


Viviane da Soledade é mulher negra, mãe de Santiago, amante de teatro, curadora, gestora sociocultural envolvida com periferias e tecnologias sociais. Bacharel em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), pós-graduada em Arte e Cultura pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), pós-graduada em Gestão Cultural pelo Itaú Cultural e Instituto Singularidades e doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Cursou o Laboratório de Tecnologias Sociais da Universidade das Quebradas, projeto de extensão da UFRJ.

Vol. XIV nº 73, junho a dezembro de 2022

Imagem em destaque: Cuidado com neguin. Foto: Divulgação.

Se você aprecia o nosso trabalho, faça parte dessa história colaborando com a gente no Apoia-se! Com essa campanha, firmamos uma parceria com o Foco in Cena, unindo nossos esforços pela memória e pelo pensamento sobre as artes cênicas no Brasil. Junte-se a nós e ajude a compartilhar! apoia.se/qdc-fic 

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores