Tempo crioulo, tempo criativo

Conversa com Diego Araúja

28 de julho de 2022 Conversas , e

Diego Araúja é artista de Salvador. Produz arte de modo expandido desde 2011. Suas mídias são literárias, visuais, cênico-performáticas e cinematográficas; nas funções de diretor, dramaturgo, cenógrafo, roteirista e artista visual. Dirige o processo Estética Para um Não-Tempo, com o objetivo de instaurar tempos qualitativos para a produção de memórias afro-diaspóricas emancipadas do trauma; o que gerou a obra QUASEILHAS (2018). Este processo possui 2 investigações complementares: estudos da performance-exposição das psiques negras no campo narrativo; e o Laboratório Internacional de Crioulo (LIC), que consiste na fundação de um agrupamento atlântico-internacional entre artistas do corpo para conceber, a longo prazo, “uma língua não-nascida do trauma”, um novo crioulo. O LIC foi ativado em 2020 no Pivô Arte e Pesquisa (São Paulo-SP) e, ainda em 2021, iniciará o mapeamento de artistas do corpo no mundo atlântico, através da Trienal FRESTAS (Sorocaba-SP). Em 2017 Araúja funda, juntamente com a artista Laís Machado, a Plataforma ÀRÀKÁ – um território de criação e produção em arte expandida e transdisplinar. Concebeu uma performance coreográfica para videoinstalação A Marvellous Entanglement, do artista britânico Isaac Julien. Foi convidado para as residências artísticas: Atlantic Center For The Arts (Flórida-EUA) e SAVVY Contemporary (Berlin-GER) em 2020. No mesmo ano, participou do ¡ADELANTE! – Iberoamerikanisches Theaterfestival (Heidelberg-GER) com seu trabalho QUASEILHAS. Diego Araúja também foi indicado a “melhor diretor” por QUASEILHAS; e ganhou o prêmio na categoria “melhor texto” pelo Prontuário da Razão Degenerada, além das indicações de “melhor diretor” e “melhor espetáculo”, respectivamente, no Prêmio Braskem de Teatro da Bahia 2019 e 2020.

A conversa foi realizada por Daniele Avila Small e Lorenna Rocha em março de 2022 para a revista Critical Stages e publicada primeiramente em inglês.

Qual o lugar do teatro na sua formação como artista?

A decisão de ser artista veio antes da decisão do que fazer como artista. Apesar disso, lembro de ter a clara consciência da minha disposição para a narrativa. Como ouvinte, leitor ou plateia, mas também como praticante da narração. Não é simplesmente um ditado, expressão retórica ou, até mesmo, uma mentira; quando alguém diz que as histórias estão para além da narração, do livro, da performance de contação. Que está nas sonoridades, melodias, em imagem, como espaço, em movimento, nessas possibilidades do abstrato. Por isso fui buscando a narrativa por esses meios: escola de música, ateliê de artes plásticas, metalúrgica náutica, marcenaria e mercearia, curso de escrita criativa, concepção fílmica. Estava buscando a resposta para a pergunta: o que poderia ser essa minha narrativa?. Eu tinha ou tenho o mal costume de desejar fazer as coisas que me espantavam. É uma vontade de entender a expressão em suas complexidades, mesmo que no final eu não entenda nada – também foi assim com a crítica. Gosto de pensar que essa atitude favoreceu meu estilo de narração – o que é melhor do que pensar ser traidor de alguma arte. Mas a vontade de concentrar esses aprendizados começou a ficar latente com o passar dos anos. Isso tudo para responder que, em minha formação como artista, o teatro foi a solução. Em meio a bagunça, me disponibilizou método, talvez uma ética de projetista, designer. Me deu até algum nível de altruísmo criativo. Mas também me deu a única resposta aceitável do que seria narrativa. Só poderia ser uma questão de Tempo.

 

QUASEILHAS, vista externa da instalação cênica. Foto: Shai Andrade
QUASEILHAS, vista externa da instalação cênica. Foto: Shai Andrade.

 

Entre as suas obras, quais você considera mais importantes na sua trajetória? Você identifica conexões e/ou rupturas entre elas?

QUASEILHAS. Claro, ela fez com que eu circulasse para além de Salvador. Não necessariamente com a obra – porque sempre foi muito difícil circular com QUASEILHAS –, mas favoreceu contatos com outras artistas brasileiras e internacionais. É bom não se sentir ilhado. Depois de 7 anos como artista cênico, e já desejando empreender outras coisas em arte, QUASEILHAS foi minha mensagem na garrafa. Isso se deve também à inciativa da Plataforma ÀRÁKÁ, um espaço artístico fundado por mim e pela artista Laís Machado, que tem como motivação uma ideia, digamos, mais cosmopolita em arte e na criação de obras de arte transdisciplinares ou expandidas. Mas considero essa obra importante, pois ela foi a materialização, com todos os riscos, de um processo poético de quase 4 anos, que na época chamava de Estética para um Não-Tempo. Hoje chamo de Tempo Crioulo, e considero QUASEILHAS minha primeira creollage. Como eu vinha de teatro grupo – e a dinâmica do teatro de grupo se configura enquanto poética grupal, coletiva – acabo vendo essa obra mais como ruptura do que conexão com meus outros trabalhos. Tive a clara sensação de se estar começando de novo. Obviamente eu tive colaboradores, como qualquer outro processo cênico. Pessoas de quem sou muito grato; principalmente Laís Machado, Diego Alcantara e Nefertiti Altan, artistas do corpo que me acompanharam por mais de 9 meses, do laboratório teatral a última aparição de QUASEILHAS. Foi nesse trabalho que eu consegui iniciar, publicamente, um projeto poético-autoral. Muito embora ela tenha apontado as grandes dificuldades da continuidade desse processo, o Tempo Crioulo.

 

QUASEILHAS. Foto: Shay Andrade.
QUASEILHAS. Foto: Shai Andrade.

 

Como se deu a criação de QUASEILHAS? Você pode falar um pouco sobre a relação entre a concepção do espaço cênico, a música e o trabalho dos alárìnjó?

A obra foi o resultado dessa pesquisa poética que atualmente chamo de Tempo Crioulo. Esse projeto poético nasceu de um quase aforismo: “O que é o tempo se não uma consciência da carne”. Comecei a ver Tempo como uma experiência ou manifestação fenomenológico-histórica e não mais como linhas – lineares, não-lineares, circulares etc. Ou seja, comecei a considerar as condições materiais. Essa visão me distanciou de antigas crenças minhas: tempo-metafísico, tempo-ancestral ou tempo-místico. Considerando essa visão, o Tempo para mim produz (e é sempre uma questão de produção) alguns tipos de consciência. Até o momento só me dei conta de duas: “consciência traumática da carne” e uma possível “consciência emancipada da carne”. Como afro-brasileiro, consigo dizer que a 1ª consciência é produzida num tipo específico de experiência do tempo, o Tempo da Sobrevivência. A 2ª consciência, num tempo qualitativo, o Tempo Crioulo, o tempo criativo. Uso o termo Crioulo inspirado aqui nas línguas e culturas crioulas, como as do nordeste brasileiro e de outras localidades do mundo. Não deixa de ser uma tentativa de se criar uma linguagem composta. Logo, instaurar, organizar um Tempo Crioulo seria buscar essa linguagem não-nascida do trauma, essa “consciência da carne emancipada” na relação com as pessoas. QUASEILHAS foi a 1ª creollage com esse intuito e a mídia cênica, espetacular, no meu ver, é a mais propícia pra esse tempo acrioulado. Por isso inseri essa obra numa arquitetura efêmera, deixei com que os alárìnjó organizassem, cada uma, a sua dramaturgia das ações, a partir de suas memórias familiares e geográficas, de um modo até mesmo stanislavskiano. Fui acrioulando isso com os oríkì que escrevi sobre minha família, sobre a Península de Itapagipe. Nessas dramaturgias de ações, os próprios alárìnjó criaram o que chamei de vibrações melódicas desses oríkì. Como eu partia da minha experiência familiar, usei o yorùbá como idioma da obra. Esse idioma foi a base de uma língua crioula doméstica, e já esquecida, em minha família materna um trocar-língua, segundo minha avó. Acho que esse meu interesse pela crioulagem começa daí. 

Como você tem observado o cenário contemporâneo dos teatros negros no Brasil? E como você posiciona o seu trabalho nesse contexto?

Eu não consigo aceitar tão bem o termo teatro negro, mesmo que ele esteja no plural. Já que estamos usando o plural, por que não aceitarmos que a diversidade estética e de produção se alargou no Brasil, com o trabalho e inserção de pessoas negras? Ou melhor, ficou mais rico? Trouxe outras perspectivas de mundo e outros mundos? Ou desafiou outras tantas, tão ainda hegemônicas? O termo teatro negro me soa como um tipo de gênero em arte e, se pararmos para pensar, pode trazer muitas simplificações sobre o fazer de uma artista negra. Eu tenho minhas dúvidas se um gênero artístico dá conta desse tipo de experiência. Os gêneros, naturalmente, já limitam o processo de criação. Não acho, lá, equitativo limitarmos ainda mais o espaço criativo de artistas negros. O fluxo da história da arte já apresentou a fragilidade disso. Uma vez se enquadrando num tipo de fazer, mas fácil de se esvaziar o sentido. Já o plural, teatros negros, me passa uma ideia de movimento que eu não sei se existe. Com honestidade, desejo que não. Pois o movimento em arte gera uma espécie de intransigência estética nos fazedores, uma espécie de vigília que possibilita transformar em gênero o que é vontade; teatro negro, por exemplo – mas acho que já virou. Tenho a impressão de que existe uma ideia simplificada do que seria a obra de uma artista negra. Deveríamos considerar, no campo da arte, o que isso implica. Então, considerando essa minha crítica, como eu observo? Observo que o teatro feito no Brasil ficou mais complexo com esses e essas artistas. Que outras poéticas estão sendo adicionadas a historiografia. Que há tensão. Tensões que podem instigar outras produções poéticas. E onde eu me posiciono? Não sei se me posiciono necessariamente. Estou andando. Isso vai depender do fotograma. Hoje eu faço e penso umas creollage’s; e amanhã, tomara, será outra coisa.

 

QUASEILHAS. Foto: Guto Muniz.
QUASEILHAS. Foto: Guto Muniz.

 

Seus trabalhos mais recentes se situam em campos expandidos das artes da cena, do meio digital e do audiovisual. O que te mobiliza a experimentar nesse trânsito?

Acho que é aprendizado mesmo. Vontade estranha de não saber o que fazer no meio processo. De conquistar o direito ao erro. De estranhar se conquisto alguma especialidade. De estar num risco que não seja pela bala, mas de um que me deixará ainda mais vivo. Criar esses Tempos Crioulos. De encontrar, talvez, outras respostas a pergunta “o que poderia ser essa minha narrativa?”. Criar uma língua, uma linguagem que não seja traumática. Suprir o trauma pela poética. Não acho que farei arte expandida, creollage’s, a vida inteira. Acredito que não. Empreender esse tipo de trabalho exige muita energia. Depende de muitos fatores contextuais. O que pode fazer com que, mais tarde, tudo possa ser como nas primeiras vontades. Eu diante de uma folha em branco, e só.


Em inglês na Critical Stages: https://www.critical-stages.org/25/creole-time-creative-time-interview-with-brazilian-artist-diego-arauja/ 

Vol. XIV nº 73, junho a dezembro de 2022

Foto em destaque: Shai Andrade.

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