A história que permanece

Crítica do espetáculo A Negra Felicidade, da companhia Alfândega 88

26 de maio de 2012 Críticas
Foto: Guga Melgar.

“Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado.”
Walter Benjamin

A companhia Alfândega 88 apresenta, no palco do Teatro Serrador, o espetáculo A negra Felicidade. Sob a direção de Moacir Chaves, a montagem é organizada a partir da alternância de diferentes registros de escrita, entrecruzando vozes de elementos narrativos diversos, como dois autos de um processo jurídico, retirados dos arquivos públicos da cidade do Rio de Janeiro, de fins do século XIX, classificados do Jornal do Commercio da mesma época, um sermão religioso e, por fim, o fragmento de um solilóquio, extraído da peça O jardim das cerejeiras, de Tchekov. Os quadros são dispostos de forma fragmentada e forjam sentidos na medida em que a sucessão dos fatos deixa entrever uma necessidade do diretor de trazer, para o debate público, as mazelas que herdamos dos procedimentos de conduta éticos e morais do passado.

A base da dramaturgia se concentra na trama que envolve a negra que dá nome à peça, Felicidade, e o comerciante Antônio Vietas da Costa, que a toma como sua escrava, por meio de diversos ardis. O comerciante, aproveitando-se da “boa fé” da liberta, elabora meios para enganá-la, não só lhe tomando dinheiro, como também induzindo-a a assinar documentos, sem que a mesma sequer soubesse do conteúdo discriminado. Felicidade e sua filha decidem, então, entrar com recurso na justiça, porém, o veredito determina que ela seja obrigada a cumprir serviços forçados para o comerciante, por um prazo de três anos.

A narrativa que explode em cena é o conteúdo do processo, movido pela mulher, em sua linguagem técnica. O sermão de Santo Antônio aos peixes, do Padre Antônio Vieira, e o fragmento do solilóquio de Tchekhov se intercalam no drama de Felicidade, despidos de uma linguagem visual que reconstitua, historicamente, uma época delimitada. Estes dois textos são fundamentais na medida que preenchem possíveis lacunas de sentido e arrematam uma estrutura dramatúrgica coesa, já que os diferentes fragmentos textuais foram concebidos para atenderem a fins diversos, em diferentes dimensões de tempo e espaço. Os sentidos de que falei há pouco se referem à ideologia defendida pela montagem, de uma sociedade que não pode caminhar em direção ao progresso sem olhar para trás e ignorar os escombros, os rastros e o peso da crueldade e da opressão, praticados por homens contra outros homens.

A peça fala de escravidão, mas não se circunscreve a esse tema. Seu projeto prevê uma reflexão maior. A condenação de Felicidade pressupõe defesas de interesse nas relações de poder e o exercício da demonstração de autoridade via artifícios de linguagem. O cinismo se pulveriza pelo espaço cênico quando as determinações das sentenças históricas privilegiam a manutenção de um status quo social, tecendo, em torno dessa estrutura, uma forte rede de proteção às ligações corruptas que administram os organismos públicos, ontem e hoje. A peça procura alargar a nossa sensibilidade, na medida em que o encenador opta por não criar equivalente cênico, por meio de ações, de uma representação da repressão negreira, mas sim, de pôr em verbo a documentação de um fato verídico insuspeito.

A linguagem rebuscada dos autos corresponde a uma provocação interessante que a estética do espetáculo assume em primeiro plano, confrontando o espectador com um jogo de impossibilidade de assimilação total do conteúdo narrado pelos atores. O sentido literal do texto é manipulado de forma irônica, em momentos bem pontuais da encenação, por meio de intervenções vocais e corporais, que descaracterizam, propositalmente, a seriedade do documento histórico.

O numeroso elenco faz intermediação do texto para a plateia sem vestir máscaras individualizantes. Todo procedimento se volta para formas de vocalização e disseminação do conteúdo das narrativas, procedimento este já característico dos trabalhos anteriores do diretor. Os atores lidam com um material complexo e sua maioria consegue expressar domínio de entendimento do contexto, jogando com nuances de falas que, ora reforçam o desconforto retórico excessivo, ora sublinham, no espaço cênico, certo tom de deboche que o próprio texto deixa entrever. Edson Cardoso, por exemplo, se apropria da sua condição de dançarino para executar partituras de movimento enquanto enuncia um fragmento correspondente. Esta opção provoca reação cômica na plateia, já que os movimentos realizados por ele fazem associação à banda musical É o Tchan, que o tornou nacionalmente conhecido.

As pistas que identificam clímax e estados conflituosos, detectados no texto, são pontuados, tanto pela direção musical de Tato Taborda, que sublinha e realça certa dramaticidade, atenuada pela escrita fria dos documentos, quanto pela iluminação de Aurélio de Simoni, que joga com blecautes entre as cenas, imprimindo, nesse movimento, um efeito de peça dentro da peça. A cenografia de Fernando Mello da Costa é pensada em termos de acumulação. Numa estrutura no centro do palco, entulham-se materiais dispostos de forma desordenada, criando uma espécie de caos entre códigos civis, livros de história, cadeiras, madeira, cordas, correntes e refletores inutilizados, que formam um conjunto amontoado de destroços à espera de um novo reordenamento, uma outra reorganização, uma outra história que ainda está para ser contada.

Num momento em que se iniciam intensos debates sobre a obrigatoriedade das cotas para negros nas universidades públicas e das contas que serão ajustadas com o período da ditadura, a encenação de A negra Felicidade se articula aos temas atuais e urgentes, em voga nos noticiários da TV e nas mídias eletrônicas.

Referência bibliográfica:

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. IN: Magia e técnica, arte e política. SP: Editora Brasiliense, 1996.

Informações sobre o repertório no Teatro Serrador: http://alfandega88.com.br/

Pedro Allonso é ator e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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