Manipulações sonoras e visuais

Conversa com Moacir Chaves

27 de dezembro de 2012 Conversas

Desde o início de 2012, a companhia Alfândega 88, da qual Moacir Chaves é diretor artístico, vem ocupando o Teatro Serrador, no centro do Rio de Janeiro, com o patrocínio do Fundo de Apoio ao Teatro, da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. A companhia programa as atividades do espaço, no qual também apresenta dois espetáculos próprios em repertório – Labirinto, de 2011, e A negra Felicidade, de 2012. Esta conversa com o diretor foi realizada em julho de 2012, no âmbito do estudo para a dissertação de mestrado “Cenas da voz: A sonoridade no teatro de Aderbal Freire-Filho, Moacir Chaves e Jefferson Miranda”, recém-defendida por mim no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Unirio.

MARCIO FREITAS – Nas suas peças, eu identifico um trabalho muito particular, e de muita precisão, com a emissão vocal dos atores. Como você prepara a voz desses atores? Você tem um conjunto de exercícios que são trabalhados regularmente?

MOACIR CHAVES – Para os atores especificamente não. Porque o que eu espero dos atores é que eles tenham capacidade de execução. Portanto que eles sejam formados, que eles sejam atuadores capazes, essa é a expectativa. Eu tenho exercícios para alunos, mas esses exercícios também não são exercícios que levarão à formação, e sim à percepção da necessidade da formação. Porque a formação é muito elementar, a formação é canto lírico, é aumentar a voz em extensão e em volume, e ser capaz de manipular esse recurso. A manipulação do recurso é o ensaio do espetáculo. A criação do recurso é a formação do ator. O que acontece é que essas tarefas muitas vezes se misturam por conta da má formação básica dos atores no Brasil, da falta de solidez mormente nos aspectos físicos da voz. Aqui, a gente tem uma distinção entre expressão vocal e expressão corporal, como se o som não fosse do corpo. O som é corpo. Se você tem problema vocal, é porque você tem problema no corpo, na musculatura. Em espetáculos comerciais, por exemplo, em que eu sou contratado, não há tempo pra isso, um trabalho específico não resolve aquela questão, é inútil, é perda de tempo. A não ser que você ensaie oito meses, e faça uma preparação de oito meses, aí isso muda de figura.

No grupo, por exemplo, nós temos uma formação contínua, todos os atores do grupo, nesse trabalho no Teatro Serrador, fazem aula de canto, todos os atores, obrigatoriamente. E nos meus ensaios eu aproveito o desenvolvimento deles para que eles percebam as dificuldades e consigam trabalhar. Trabalhar significa usar os recursos que se tem, porque muitas vezes o ator consegue desenvolver o recurso, mas ainda não tem liberdade para trabalhar com ele. Essa é uma outra tarefa. A tarefa do desenvolvimento físico é uma tarefa primária, que não deveria caber ao diretor. A gente institui isso na companhia porque isso não está instituído, porque nós não temos companhias, nós não temos formação sólida, continuada. Um ator deve trabalhar diariamente pela sua profissão, como um músico: você imagina um músico de uma orquestra que não treine a sua musculatura para se relacionar com o instrumento diariamente? Não. E porque o ator acha que não precisa? Porque às vezes a demanda ao nosso ator é uma demanda muito vulgar, muito baixa. Quando a demanda se acende, se aferra, eles dizem “nossa, isso é tão difícil”, “nossa, que material difícil”, quando na verdade eles é que estão despreparados para materiais outros que não sejam aquele pequeno cotidiano. Pode ser um texto estranho, como um processo, ou um texto antigo, que trabalhe outro vocabulário, vai exigir uma outra musculatura, e vai ser difícil. A única coisa fácil é uma dramaturgia mais banal, ou uma telenovela, que você pode adaptar o texto a você mesmo.

MARCIO FREITAS – Eu sei que, na companhia, os atores também fazem uma preparação corporal regular, paralela ao trabalho nos espetáculos. Como se ligam o treinamento físico e a cena?

MOACIR CHAVES – O raciocínio é o mesmo: o ator tem que estar preparado, ele tem que dominar os seus movimentos, ele tem que dominar a sua expressão total: sonora e visual – ao invés de falar corporal e vocal, porque isso é um erro, prefiro pensar em expressão sonora e expressão visual. Ele tem que estar preparado. E nós optamos por um trabalho, que poderia ser outro: primeiro, o trabalho que a gente ia fazer era com a Josie (Antello), de segmentação e dança indiana, só que ela não tem tempo agora, então a gente está fazendo capoeira. É um trabalho que dê tonicidade, dê vigor, dê precisão, dê ritmo, dê e exija coragem, que trabalhe a segmentação, para perceber o corpo em cada parte dele, para saber o que está expressando o quê em cada momento, e usar isso. Seja para uma forma mais comum, quer dizer, andar de um ponto a outro em cena, seja para uma coisa que pareça fora do comum, uma expressão mais pujante, mais dinâmica. Depende, obviamente, da imaginação e da vivência de cada um, do repertório individual, que precisa também ser aumentado, sempre.

MARCIO FREITAS – Eu percebo no seu trabalho uma escolha, reiterada, tanto por uma frontalidade no posicionamento dos atores em cena quanto por uma neutralização da gestualidade física desses atores. Isso é uma escolha estética que se repete, ou é outra coisa, ou é resultado de algum outro procedimento?

MOACIR CHAVES – Isso é episódico. Depende do elenco. Eu falei pros nossos atores, a respeito de Labirinto e A negra Felicidade especificamente, eu falei assim: “vocês acham que esses espetáculos têm esse caráter estático por estilo – não! – têm porque vocês não dominam o movimento”. Por exemplo: a cena do Andy (Gercker) no Labirinto é riquíssima de movimento. Porque ele é capaz. Porque ele está pronto. “Vocês não! Eu não posso pedir uma coisa que vocês não são capazes, às vezes vocês não são capazes de um deslocamento simples”. E isso é camuflado. Porque eu não sou burro. Eu crio uma cena que não demonstre as dificuldades, que esconda as dificuldades, e que o elenco pareça sólido. Eles são muito sólidos, mas têm que ser muito mais. Eu trabalho com o material que eu tenho. O Bugiaria, por exemplo, era uma peça absolutamente plena de movimento. Mas ali eu escolhi dois acrobatas, eu escolhi, fazia parte da linguagem, se não fossem acrobatas eu não poderia ter a cena, então eu pego uma mão-de-obra capaz de realizar. E é isso que eles estão se tornando ao fazer aula de capoeira. Eles serão capazes de fazer mais coisas. E eles têm que estar dispostos a serem capazes, porque se eles não estiverem dispostos eles devem ser substituídos. Porque é formação. A frontalidade é outra coisa: quanto à frontalidade você tem razão, é uma outra coisa, é uma ruptura, é obviamente um desafio aos limites de palco e plateia, isso tinha mais ou menos em muitos espetáculos que eu venho desenvolvendo há anos.

MARCIO FREITAS – Voltando à fala: sonoramente, eu observo que certas formas de falar parecem às vezes se repetir nas suas peças – um ressalte do final das frases, um modo de falar bem projetado e às vezes monocórdico, uma separação silábica explícita…

MOACIR CHAVES – Se for monocórdio é porque não conseguimos chegar lá. O objetivo não é esse, o objetivo é a clareza, o objetivo é a comunicação, o objetivo é processar aquelas coisas. Isso nunca é fora da matéria, isso está sempre relacionado com a matéria, mesmo que recursos para trazer a matéria à tona e à discussão se repitam – isso pode acontecer. Mas é uma ênfase, é um passe pela sua cabeça. Porque a gente costuma falar como se a gente não estivesse processando o que está ali. E isso é o que eu fico notando e dizendo. Talvez a minha forma de processar saia de um jeito reconhecível, e o que os atores façam, em certo estágio, seja repetir mecanicamente uma forma, e isso parece estilo, quando não é, porque não me interessa aquela forma, me interessa uma forma que chegue. Eu só tenho a minha, quer dizer, eu tenho um repertório limitado, eles não, mas, enquanto eles não processam, isso se parecerá semelhante a algo que eu propus. O que parece monocórdio é aquilo que ainda não foi assenhoreado, que o ator ainda não tomou posse. Mas isso é um processo, ele pode vir a tomar posse, ele já está entendendo, ele está tentando, mas não está conseguindo. Tem coisas que as pessoas fazem nos espetáculos apenas para que elas possam vivenciar aquilo. Para o espetáculo seria melhor não ter. Às vezes eu sacrifico literalmente o espetáculo para que os atores possam vivenciar. Às vezes não, às vezes eu corto, infelizmente, porque não se alcança uma coisa, e também é importante que o espetáculo se comunique e não seja enfadonho. Por exemplo, A negra Felicidade é um espetáculo difícil, mas não é o propósito ser enfadonho, não, por isso ele foi diminuído no todo. Isso é um equilíbrio, você tem que levar quase ali. O Beckett não é enfadonho, o Beckett leva a um limite, e aí ele faz outra coisa. O tempo inteiro ele está brincando com a gente, quando chega perto do limite ele faz uma coisa agradável. Mas isso é de uma execução dificílima, com recursos às vezes muito concentrados, como, por exemplo, no Dias felizes. É uma tarefa muito difícil.

MARCIO FREITAS – Nesse sentido, você não está pesquisando modos específicos de se falar?

MOACIR CHAVES – Não, mas eu estou pensando a fala também pelo ritmo, com a percepção de que produção do som é um dos grandes prazeres da humanidade. Por isso a gente grita de vez em quando, a gente canta no banheiro, por isso a gente faz poesia. E falar com ritmo, entender a poesia de uma prosa, entender a poética de uma obra específica, isso tudo é um prazer enorme pra gente. E me relacionar com os autores dessa maneira me interessa muitíssimo. Me interessa muitíssimo me relacionar com o Nelson ouvindo o Nelson, ouvindo o Beckett, ouvindo o Padre Antônio Vieira. Quando eu pego um processo da inquisição do século XVI ou um processo de libertação de uma escrava do século XIX, eu crio isso, porque naturalmente não há uma construção rítmica poética ali, às vezes até coincidentemente há, mas é uma invenção que a gente faz em cena, a partir daquele texto, a partir do sentido. Estou falando de trabalhar sonoramente, perceber o que pode ser explorado, e sempre colado no sentido, na percepção do que está sendo dito e do que está embutido naquele universo. O que está sendo dito às vezes é nada, mas tem tanta coisa que a gente relaciona. Quando você fala de um auto de avaliação de um escravo, do que a gente está falando? Da mercadoria, do homem como mercadoria, mas a gente está falando de hoje, são as permanências que nos interessam, e as permanências são ressaltadas no modo de falar. O ator tem que saber o que ele está fazendo, ele tem que processar a cada momento o sentido. E junto como sentido um som: um jeito de falar, de enfatizar, de colocar as coisas, de se relacionar com aquilo.

MARCIO FREITAS – Sobre os autores que você escolhe usar em cena, como, por exemplo, o Qorpo Santo (Labirinto) e o Thomas More (Utopia). Que tipo de aproximação você trava com eles? Você busca, de algum modo, ser fiel? Quais são os motivos que levam você a montar esses ou outros autores?

MOACIR CHAVES – Eu escolho muitos autores, e diferenciados, portanto descobrir esses autores é um prazer. Qorpo Santo é interessantíssimo: “vamos trabalhar com ele, vamos ver o que é isso?”. Eu escolhi fazer o Beckett, por exemplo, para entender o Beckett. Eu tinha meus 25 anos e falei “deixa eu entender melhor esse cara”. Qual é a melhor forma de entender o cara? Trabalhando com ele. E entendi muito, ele ficou me ensinando teatro o tempo todo. Cada caso é um caso, Utopia está muito ligado a uma linha que se relaciona com A negra felicidade, que se relaciona com A violência da cidade, que é um pouco “vamos olhar pra gente! Vamos parar de falar que a cidade é violenta!”, a cidade não é violenta, a cidade sempre foi violenta, a cidade é organizada através da violência. Não assusta que a violência nos atinja, é esperável que ela venha também nos atingir. A repressão consegue mantê-la afastada durante um período, mas a violência é parte estrutural da nossa sociedade, desde sempre. Vamos parar com essa ingenuidade, “nossa, que cidade violenta”, nós erigimos uma civilização através da violência. Isso é a história do Rio de Janeiro, é a história do Brasil. Nunca houve guerra? Claro que não, houve genocídio, não precisou ter guerra. Não houve guerra entre os portugueses e os índios, houve massacre. Se tivesse sido necessário haver guerra, teria havido guerra, não foi necessário. A violência da cidade começava com um texto do Anchieta, que parecia uma cena de guerra entre os índios e os portugueses, muito sangue, até que morria um português. Aí você percebia: não era uma guerra, era um massacre, morreu um português e ainda não tinha morrido! Parece filme americano, de Rambo, que vai matando chinês, vai matando russo, vai matando cubano, e de repente morre um americano, aí entra a música, tudo para, mostra a família. Isso é Anchieta, século XVI, dos Feitos de Mem de Sá. Isso é uma linha de trabalho, na qual Bugiaria também se inclui. Utopia é obvio, porque Utopia é pensar sobre relações humanas, desigualdade, é isso que o Thomas More está fazendo lá, no século XVI, na Inglaterra. É a mesma coisa que nós estamos pensando aqui.

MARCIO FREITAS – Mas quando você trabalha com ele, você não está necessariamente colando no que ele está dizendo…

MOACIR CHAVES – Claro, eu estou relacionando com a nossa vida. Mas eu estou dizendo só o que ele está dizendo. Esse que é o barato. Eu não invento palavras: eu relaciono estruturas que se mantêm constantes no tempo, em espaços completamente diversos. O que o Thomas More fala serve pra gente hoje, de uma forma muito enfática, portanto é interessante falar o que ele fala. Quando a gente faz isso, o que cria o sentido é a nossa percepção de uma permanência. É essa percepção que dá a forma, é esse relacionar consigo mesmo, com o seu mundo, que dá a forma: a forma do cenário, a forma do figurino, a forma do som.

MARCIO FREITAS – Como você vê a legibilidade das suas peças, ou seja, a recepção do público, diante de algumas operações relativamente sofisticadas que você apresenta em cena? Como você lida com a compreensão ou incompreensão do público, ou com o choque? Isso é relevante?

MOACIR CHAVES – O que é importante para um público que assiste a um espetáculo desses é, em primeiro lugar, ser livre. Muita gente é livre em teatro, muitas plateias são livres, principalmente as plateias mais populares, elas são as mais livres. A plateia da zona sul do Rio de Janeiro, de fazedores de teatro, por exemplo, tem muita dificuldade de entender determinados espetáculos. Um público mais popular não. Ele entende direto, porque ele está aberto, ele está interessado por aquilo que acontece naquele momento, e já o outro cara está relacionando aquilo com uma estrutura de certo e errado, de pertinente e não pertinente. É o que fazem alguns críticos, que são incapazes de se relacionar com o que está acontecendo. Esse espetáculo, por exemplo, A negra Felicidade, é um espetáculo óbvio. Você pega uma coisa, junta na outra, junta na outra, e diz: “ah tá”. Pode se tocar, pode se emocionar, ou pode ser indiferente. Você pode até ficar indiferente, mas não porque não se relaciona. Se você não se relaciona, é porque você: 1) não tem inteligência, 2) não tem vontade, 3) não tem interesse. Tem gente que entra, senta na plateia e dorme, na primeira cena. Você não pode dialogar com uma pessoa dessas. Você não sabe por que ela foi ali, talvez porque ela só consiga dormir no teatro. Você também não pode se relacionar com uma atriz amiga sua, que mora na zona sul do Rio de Janeiro, muito bem de vida, que veio ver um espetáculo seu querendo ver uma dramaturgia de princípio, meio e fim, com enredo, com personagem reconhecível – o que você pode fazer? Não pode fazer nada.

A não-comunicação com a plateia é sempre uma falha, é algo que nós não conseguimos, ela nunca é um propósito. Ela acontece, com constância, por nossa culpa, nossa, dos atores, minha. Às vezes, espetáculos que se comunicam muito bem em determinados dias não conseguem atingir isso. Isso é normal. Mas nunca é um propósito. A gente monta o Macbeth, é para tudo ser compreendido, é para tudo chegar com o impacto que aquilo tem. Não tem nenhum mistério ali. É uma leitura do Macbeth, mas é uma leitura junto ao Macbeth, não é uma deturpação do Macbeth. Deturpar o Macbeth é dizer que existe o bem e o mal. É botar na figura do Duncan a bondade, na figura do Macbeth a maldade. Porque aí você é contra o leitmotiv da peça, que é dizer “o bem e o mal, é tudo igual”. Como quando eu trabalho com o Tchekhov: se a gente fala a rubrica, é para que a gente possa chegar à essência da peça, porque a essência da peça prescinde da cenografia realista, e até da interpretação realista. O Tchekhov é um cara que fala diretamente com o público. Por isso essa incompatibilidade com o Stanislavski, em muitos aspectos. Se você fizer certas falas do Tchekhov como se elas fossem solilóquios tradicionais, são boçais aquelas intervenções – não – aquilo é uma fala. Mas quem é o interlocutor, se não tem mais ninguém no palco? É a plateia. Se o ator finge que está pensando, isso é mau teatro! O que o Tchekhov fez foi pegar o espectador e falar “vocês viram isso aqui?”. Mas se você montar a peça assim, o careta antigo, ou a crítica incapaz de “relacionar lé com cré”, vai achar que você está avacalhando Tchekhov, e não, você só está sendo tchekhoviano.

MARCIO FREITAS – Você muitas vezes busca habilidades específicas dos atores – coisas que eles fazem bem ou de um modo especial – e coloca elas em cena, fazendo com que essas habilidades dialoguem, de alguma forma, com as palavras sendo ditas. Como isso funciona, o que você busca com essa operação?

MOACIR CHAVES – Todas as capacidades devem ser apresentadas, o que nós fazemos é espetáculo: nós temos que ser capazes de fazer coisas especiais, para termos o direito de cobrar ingresso. Isso é o óbvio. Utilizar aquilo com inteligência, relacionando com o que está sendo processado, é a minha função. A função do ator é ser capaz de fazer coisas. Nós podemos fazer um treinamento para essas coisas, ou ele pode trazer das suas próprias vivências. Como por exemplo, o Jacaré (Edson Cardoso) com a vivência dele de dança afro. E aí você relaciona com o material (em A negra Felicidade), e isso cria um monte de sentidos, cria um suporte que permite ao espectador projetar, ou entender, ou criar os sentidos possíveis. Não há um só sentido, eu não sei dizer por que especificamente ele faz aquilo naquele momento, eu posso dizer um monte de coisas sobre aquilo, mas não há um sentido específico. Há uma obrigação para aquilo poder existir: aquilo tem que ser performaticamente valioso. O teatro é uma performance. A presentificação cria o sentido da performance. Cada vez você tem que fazer aquilo, você tem que ser capaz de realizar aquilo. Se você não for capaz, você é mais pobre. Você é tanto melhor ator quanto mais capaz de fazer mais coisas você é.

MARCIO FREITAS – Como você enxerga a inserção do seu trabalho no teatro sendo produzido hoje à sua volta? Que tipo de diretor te parece que você é? E que papel tem a sua ligação com a universidade, com a Unirio, nesse seu lugar de diretor?

MOACIR CHAVES – O fato de eu ser o diretor que sou, e pensar o que penso, e fazer o que eu pude fazer e venho fazendo, me torna uma pessoa valiosa na universidade, na relação com os alunos, porque lá dentro eu continuo processando muita coisa, com eles como parceiros, e isso é muito rico. Mas a universidade não me formou como diretor, absolutamente, a universidade é uma coisa tardia na minha vida. Não estou falando de formação intelectual: sem a Unirio, sem o Ronaldo Brito, sem a Flora Süssekind, eu não seria ninguém. Da mesma maneira que sem o professor de canto com quem eu trabalhei anos, a professora de corpo, e um monte de gente, sem o grupo Tapa, etc. Mas o diretor que eu sou, eu não sou porque eu sou professor universitário. Eu sempre fui maluco, no sentido de ser independente. Eu tenho um componente de não-medo muito estranho. Eu nunca tive medo de morrer de fome. Não estive perto de morrer de fome, mas estive perto de não ter recursos para comer. Mas isso nunca me causou medo. Exceto quando chegava muito próximo. Eu nunca pensei de maneira oportunista o teatro. Eu nunca pensei “eu vou fazer uma coisa porque isso vai dar certo”. Jamais pensei isso. Eu vou fazer isso porque eu preciso fazer isso, porque fazendo isso eu entendo alguma coisa. Eu faço o que eu acho que eu devo fazer, para aprender, para pensar, para experimentar, para fazer uma intervenção no mundo, me relacionar com as pessoas do mundo, falar com elas determinadas coisas, falar no sentido estético, fazer com que elas sejam capazes de criar. Eu sempre estudei muito, eu sempre vi tudo o que pude, eu não sou ingênuo. E isso talvez seja um diferencial. Nós às vezes somos muito ingênuos aqui, porque nós não temos memória.

Eu acho que, no teatro, tem muita gente que está pensando projeto para dar certo, como também fazem as pessoas de televisão. Se um sujeito faz televisão, é uma irresponsabilidade ele não pensar em fazer sucesso, ele tem que pensar em fazer sucesso, aquilo é uma indústria, se não fizer sucesso aquela indústria vai à falência. Em teatro, é quase o contrário. É quase uma sacanagem você pegar dinheiro público e ficar reafirmando o mesmo. Você tem que pegar dinheiro público e levar adiante o pensamento público. Dinheiro público não pode ser para fazer um teatro tradicional. Pode até ser, se for um teatro tradicional que reafirme certos valores, por exemplo, um teatro clássico para a população, como o TNP francês, OK, bota dinheiro público nisso. Mas geralmente é para fazer uma comediazinha, ligada à mesma mentalidade televisiva, ou um musical, uma cópia de um musical da Broadway, que não tem nada de pensamento. Não que não seja importante, é importante: os musicais, por exemplo, obrigam os atores a serem profissionais, isso é sensacional. Os atores experimentais deveriam primeiro fazer musical: eles muitas vezes são esnobes em relação a esse teatro mais comercial, e não têm a mesma capacidade técnica. Fulano se acha muito especial porque não faz musical, mas não sabe fazer nada, não sabe cantar, não sabe dançar, o cara que faz musical canta e dança, você canta e dança? Ou trabalha o texto num ritmo cadenciado determinado, indo atrás de uma poética específica, ou ressaltando um certo sentido, ou criando uma cena realista…?

MARCIO FREITAS – Quais os planos futuros para a Alfândega 88?

MOACIR CHAVES – O plano é apresentar o nosso repertório, e, basicamente, vivenciar essa experiência do treinamento, que é o que qualquer companhia de dança, de balé, faz. E os grupos de teatro fazem? Não. Esse treinamento diário, perceber o som que você produz, aumentar sua capacidade respiratória, a sua força diafragmática, distensionar os seus músculos para a emissão do som, etc., controlar o seu corpo, tonificar o seu corpo, ficar muscularmente mais potente e ter respostas mais prontas, ser capaz de segmentar os seus movimentos e perceber os sentidos que você pode criar com isso, ter noção de ritmo, de tempo, de disposição de espaço, de criação de tempo e espaço diferenciados através do seu movimento. Essa é a experiência que a gente vai vivenciando lá, e que precisa de engajamento.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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