Arquivo inventado e a cena como máquina do tempo em Cancioneiro Terminal

18 de outubro de 2021 Estudos

Olhando agora essas imagens pensamos que elas, assim como as legendas,
serão sempre insuficientes. Esse é o filme que conseguimos fazer.

(créditos de abertura da performance-filme Cancioneiro Terminal)

 Praça da República, São Paulo. Sexta-feira, 13 de março de 2020. Caminhava sozinho em direção à Biblioteca Mário de Andrade, para assistir à apresentação de Cancioneiro Terminal, quando as mensagens de fechamento dos equipamentos culturais por motivos de segurança sanitária começaram a chegar pelo telefone. Pairava entre nós certa aflição e desconfiança diante dos noticiários que ao longo de todo o verão atualizavam a elevada taxa de mortalidade na Europa. Àquela altura ainda não havia sido notificada nenhuma morte por COVID-19 no Brasil e constavam apenas 107 casos confirmados de infecção pela doença. Esse percurso a pé até o teatro estabelecia na vida daquele coletivo artístico e daqueles espectadores (eu incluso), sem que soubessem, o início exato do primeiro confinamento no país e da modulação de diversas práticas de convivência, dentre elas, as artes da cena.

O espetáculo Cancioneiro Terminal integraria uma série de ações performativas realizadas pelo grupo Mexa em ônibus urbanos como parte da investigação artística em torno da produção da própria imagem. Criado em 2015 após episódios de violência em centros de acolhida, o Mexa é um coletivo artístico formado por membros da comunidade LGBTT na cidade de São Paulo. Conforme as palavras do próprio grupo em sua auto apresentação no site, realizam “ações que transitam entre a arte e a política” e criam “obras limítrofes, que não se encaixam em categorias precisas”.

Na apresentação programada para acontecer na MITbr, a ideia era exibir trechos dessas ações filmadas e intervir de modo improvisado no momento da exibição, lançando mão de procedimentos como: continuar, desdobrar, completar, transformar, subverter, reiterar, comentar, legendar, dublar. A impossibilidade de realizar a obra conforme o previsto, dentro da Biblioteca, colocou o grupo mediante a urgência de uma decisão intempestiva: cancelar a apresentação, que já contava com público, ou migrar sua ação para o território da rua?

E foi assim, ocupando as áreas embaixo das copas das árvores, nos fundos da Biblioteca, que as performers ironicamente se viram novamente na rua. Essa mesma rua, escura, acolhia agora sua criação artística, que fora vetada de acontecer no interior de um prédio estatal por medidas de saúde pública. Nas palavras do próprio grupo no site, “na rua, o Cancioneiro Terminal aconteceu como uma grande explosão, ou como a última canção daquele antigo mundo”. O evento foi filmado por Laysa Elias e, dois meses depois, o grupo lançou a obra em sua versão filme-performance, um percurso audiovisual montado com as imagens produzidas durante a apresentação na rua, que está disponível para visualização no site do grupo: https://www.grupomexa.com.br/mitsp/

Para João Turchi, dramaturgo do grupo, o coletivo descobre nessa operação de modular a obra e posteriormente lançá-la em formato audiovisual a prática de inventar arquivos, já que são vestígios de uma obra que nunca aconteceu. O termo arquivo inventado contém ao mesmo tempo um procedimento de criação artística e de registro. Portanto, além de estabilizar o instante da performance, o arquivo inventado opera como máquina do tempo capaz de intervir no passado e no futuro, gerando ruídos na História institucional. Ele surge e se conserva fora das esferas de validação sistemática ou normativa, entendendo que a própria comunidade é capaz de validar os traços que no futuro irão compor sua história.

Ainda no site – que é em si mesmo um arquivo do grupo – pode-se também acessar um interessante ensaio fotográfico do evento, outra camada de documentação produzida por Ivi Maiga Bugrimenko a partir do espetáculo modulado. As performers Daniela Pinheiro, Ivana Siqueira, Tatiane del Campobello, Patrícia Borges, Yasmin Bispo, Luiza Brunah Wunsch, Fabíola Dummont, Muniky Flor, Roberto Lima Miranda, Kristen Oliveira e Anita Silvia, Alessandro Lins, Barbara Britto, Dourado, Dudu Quintanilha, Giulianna Nonato e Lu Mugayar operam um jogo em que ora performam para o público presente na Praça ora performam de modo induzido para a câmera de Laysa Elias.

O público assiste, então, simultaneamente, a uma ação performativa e à criação de um arquivo audiovisual do qual também é parte, procedimentos que já apareciam em A Floresta que Anda (2015), de Christiane Jatahy, e com menor participação da audiência em FotoHamlet (2005), de Adriano e Fernando Guimarães. Nessas obras, a cena se torna um pretexto para que o arquivo seja produzido. A presença do público como integrante da obra não se dá ao acaso, está ali denunciando a validade pública da invenção daquele arquivo e a capacidade que a cena e seus dispositivos convivais, públicos e coletivos, ativam para inventá-lo.

Uma vez que a migração do Mexa para o espaço da rua foi motivada por orientações emitidas via decreto para o fechamento imediato dos equipamentos culturais, o arquivo gerado naquele 13 de março de 2020 participa ainda da fundação de um marco que trouxe novamente à superfície questões de ordem genética aparentemente superadas pela crítica e pelo debate acadêmico. Instalava-se a partir dali a calorosa discussão que vem protagonizando as mesas, debates, festivais, eventos acadêmicos e o campo da prática e dos estudos teatrais nos últimos dois anos: o teatro online ou teatro filmado.

A tecnologia audiovisual – que surgiu nas décadas finais do século XIX e se popularizou nas décadas iniciais do século XXI – desencadeou uma revolução no campo do documento e do arquivo para as artes da cena. Para Daniele Avila Small , “um registro de uma peça é algo que pertence, inevitavelmente, à cultura do teatro, sua história, sua documentação, sua esfera de conhecimento”. Em seu artigo “O fantasma do teatro”, Avila afirma que “o arquivo acessa uma parte considerável do que foi o acontecimento teatral”.

Para Eleonora Fabião (2011, p. 56), o arquivo se constitui também como “uma fonte de experiência histórica e experimentação historiográfica. O arquivo não é uma mera coleção de dados mas um produtor de efeitos e afetos; uma ponte para acessar o instante, arquivoato. Assim, a pergunta da cena também é: — como performar o arquivo?, e não apenas: — como performar o tema? “Performar o arquivo é também ser confrontado com a força epistemológica e energética do fragmento” (FABIÃO, 2011, p. 56). A cena põe o arquivo em movimento e tanto o arquivo — como objeto e traço, extensão de uma ação que já aconteceu — quanto sua história ganham contexto.

A repetição nos permite acessar recorrências, obsessões, desdobramentos do inconsciente, linhas de fuga. “A repetição ativa a atenção ao pequeno, ou aos detalhes desapercebidos do corpo que inventa” (DIAS, 2020, p. 90).  É potência à espera da História: um traço, um vestígio, uma produção que em algum momento do tempo se configurou como extensão de uma ação (humana ou não), cujos desdobramentos e ressonâncias ainda hoje ecoam. Um rastro visível do que não está mais vivo, por meio do qual acessamos o vestígio e a perda.

A pandemia instaurou uma dúvida sobre os processos da cena em si mesma, primeiro questionando o suporte – isso é teatro? – e, num segundo momento, apresentando como resultado estético uma variedade enorme de obras produzidas por meio de dispositivos audiovisuais, as quais todavia nunca deixaram de duvidar do arquivo como documentação do instante – afinal, o instante é sempre mais complexo que sua representação ou estabilização.

Em Cancioneiro Terminal essa equação se modifica, e a cena passa a ser vista como processo possível para a invenção de arquivos – uma biblioteca de imagens próprias cuja produção instaura invariavelmente um discurso estético e político – e como intervenção possível na história, tal qual uma máquina do tempo capaz de inserir fragmentos do presente no passado e no futuro, e assim transformá-los. O arquivo inventado põe em jogo nossa relação com o tempo e reitera a arte da cena como a arte que pesquisa o instante, nossa curiosidade acerca dele e as interações possíveis dentro de seu acontecimento.

Referências

DIAS, Kenia. Obras em processo nas Artes Cênicas: estudos dos diários de montagem da peça Nós do Grupo Galpão/MG e Prática Aisthesis/DF. 204 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2020.

FABIÃO, Eleonora. “Performance e precariedade” In JUNIOR, A. W. de O. (ORG). A performance ensaiada: ensaios sobre performance contemporânea. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2011.

SMALL, Daniele Avila. “O fantasma do teatro” In Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais. Vol. XII nº 70, novembro de 2019 – maio de 2020. Disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2020/04/o-fantasma-do-teatro/

Glauber Coradesqui é pesquisador e artista da cena, professor do curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal Fluminense. Doutor em Arte pela Universidade de Brasília, é autor dos livros “Canteiro de obras: notas sobre o teatro candango” (2012) e “Experiência e mediação de espetáculos” (2018).

Foto em destaque: Ivi Maiga Bugrimenko

Vol. XIII nº 72, setembro a novembro de 2021

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