Autor Maria Lucas
Um Manifesto Transpofágico
“Este corpo foi construído por mim. Eu me fiz. De certa forma, eu fiquei grávida de mim mesma, eu me pari…”
Renata Carvalho, Manifesto Transpofágico
“A Convenção teatral dos três sinais para início do espetáculo se faz necessária neste protocolo de apresentação. Um corpo em pé no meio do palco está parado, sem se mexer, como um manequim. A luz contra o fundo revela gradativamente a silhueta. Este corpo está apenas de calcinha, com voz suave e calma, ao microfone”
Renata Carvalho, Manifesto Transpofágico
Assim começa não só o espetáculo sobre o qual escrevemos e que está circulando por palcos de todo o mundo, mas que assisti em temporada no Teatro Firjan SESI no Centro do Rio de Janeiro, como também o texto que pode ser adquirido em formato de livro no saguão de entrada do teatro, após a apresentação. O livro, publicado em quatro línguas pela Editora Monstra[1], conta com instigante texto introdutório de Jaqueline Gomes de Jesus. [2]
A noite é das estrelas
Homenageando os shows de artistas LGBTQIAP+ das décadas 80 e 90, a ocupação artística Noite das Estrelas produziu um mapeamento de feitos artísticos destes artistas locais, do ontem mas também do agora, e se expandiu com um espetáculo pelas ruas da Maré, culminando no ponto ápice da performance na Quadra da Escola de Samba Gato de Bonsucesso. Além do espetáculo, a Ocupação contou com exposição de documentos fotográficos “A Noite das Estrelas, uma Galáxia Imorrível” na Lona Cultural Herbert Vianna. Antes da exposição e do espetáculo, pertencentes a ocupação, foi produzido um filme homônimo, com recursos da Lei Aldir Blanc, em 2020, e tendo sua estreia no Festival Internacional de Cinema Zózimo Bulbul. Diversas ações foram feitas também durante a ocupação, como uma oficina de produção que visava estimular pessoas LGBTQIAP+ do entorno a terem contato com produção cultural, conduzida por Bem Medeiros que, junto com Wellington Oliveira, trabalham na equipe de produção do espetáculo.
Corpos, sons, textos, imagens e telas
O coletivo Pandêmica, que desde o começo da quarentena produz espetáculos como 12 pessoas com raiva ou eventos como Orgulhe, também se propôs a abraçar outros projetos e ser palco-tela para artistas que estão produzindo arte-teatro-afeto de distintos lugares do Brasil. Desta vez, propiciou algo que se faz necessário quando profissionais da arte nos tornamos: pensar, refletir, discutir sobre os temas: dança, atuação, direção musical, direção e dramaturgia.
Mas, pergunto-me agora, como escrever sobre tais temas, sobre os encontros sobre tais temas, sobre como se produziram esses temas nas nossas telas (palcos-casas)? Os encontros performativos, que agora são plasmados nessas palavra-papel DIGITAL a partir de uma escrita ou ex-crítica performaAtiva, são divididos assim, nestes eixos descritos acima, em caixinhas mesmo… pois não é pelas caixinhas-telas, que nos comunicamos atualmente? Talvez tentando sair das caixas, mas apropriando-se do que é possível em meio a esse caos (vide pandemia mundial, quarentena, isolamento, bolsonarismo genocida), eu, Maria Lucas, que aqui escrevo como crítica (?), estive no encontro sobre atuação, como atuadora-artista. Ao receber o convite, lancei uma questão para a equipe, levada a ser despontada na noite do encontro (via telas). Questionei sobre atuação, mas mais ainda sobre A – TUA – AÇÃO. O que você atua, como? Na casa, na vida. Teatro-Arte-Tela-Vida é política(?).
Ser travesti não precisa ser sempre uma barra pesadíssima!
“Por que eu tenho que parecer hétero?
Por que eu tenho de parecer mulher?
eu não posso parecer uma caminhoneira, um caminhoneiro?
Por que eu não posso ser travesti?”
(Claudia Wonder, 2009)[1]
É uma barra MUITO pesada ser travesti e estar viva (e atuante) nesse país que, mesmo antes de um presidente genocida, já liderava o ranking sendo o que mais mata pessoas trans em todo o mundo: o foco maior é em travestis, sobretudo pretas e em situações de rua, prostituição e alta vulnerabilidade social.
Fazer-se, atuar, reivindicar, é, não só arte, política. Eu, que escrevo esse texto, e as outras que transcrevo nesse esboço crítico, somos, antes de mais nada, o sonho de conquista revolucionária das que aqui estavam antes da violência chamada de Descoberta a partir da Portugal colonial chegar, e também das que, como Xica Manicongo[2], foram escravizadas e aqui, longe de suas terras originárias, obrigadas a serem quem não são, ultrajadas. Somos também a continuação da existência das que resistiram à Operação Tarântula[3] e à Ditadura Militar. Ser travesti é assumir-se contra um projeto de mundo processualmente construído para nos matar… Mas é também ativar uma força ancestral de poder e glória contra um CIStema que cega a todos e todas fazendo com que trabalhem em prol de ver-nos mortas, apagadas. É necessário então, para que sigamos produzidas-produtivas e vivas-ativas, que reergamos o nosso projeto de mundo, contrário ao imundo projeto precário e caduco, mas ativamente potente, branco-europeu-cis-colonial e binário que vem, ao longo de séculos, nos apagando, afastando e arrancando, literalmente, o nosso sangue. Para isso, se faz necessário conhecer e exaltar as que estiveram aqui antes de nós e reconhecer e estimular as potências das que ainda seguem vivas aqui.
O feminino independente do corpo & a performance independente da plataforma
Uma confluência de idiomas: português e espanhol. Como numa viajem de avião, somos convidades a navegar pelo continente intitulado América Latina. Imagens e sons desconexos revelam na tela corpos não desvelados, assim como as vozes. Os performers que constroem e materializam imagem-som em suas corpas e na tela são Nina da Costa Reis e Eduardo Ibraim; uma mulher cisgênera e um homem cis, ou melhor, uma bicha. Essa interação entre bicha-mulher-tela, multilíngue e performática, é chamada de Gaia, uma experiência promovida através do YouTube em cartaz na parceria com o Pandêmica Coletivo Temporário de Criação.