Tom e o barro – o complexo primitivo

27 de fevereiro de 2018 Processos

Nota: Este texto foi originalmente publicado no livro Tom na fazenda, que integra a Coleção Dramaturgia da Editora Cobogó.

Foto: José Limongi.
Foto: José Limongi.

O ano de estreia da montagem brasileira de Tom na fazenda foi marcado pelo evidenciamento de uma expressiva onda conservadora que começou a se espalhar pelo Brasil e por tantos outros países como reação às liberdades conquistadas na virada do século. Em 2017, houve golpe político, movimentos de xenofobia, limpeza étnica, censura às artes, genocídio em comunidades pobres e indígenas, desmatamento desenfreado, crises econômica, política e ética, repressão das expressões “pagãs”, perseguições religiosas, homofobia. É nesse contexto que cai em nossas mãos Tom na fazenda, do canadense Michel Marc Bouchard.

Fui convidado para dirigir a peça pelo amigo Armando Babaioff, um ator com quem tive a oportunidade de trabalhar diversas vezes no teatro. Nosso primeiro trabalho juntos, em 2001, teve sua dramaturgia inspirada no romance inglês Maurice, de Edward Morgan Foster, sobre um jovem aristocrata da alta burguesia rural inglesa em descoberta e aceitação da sua sexualidade numa Inglaterra eduardiana rígida e austera, contexto em que qualquer ato de “perversão”, uma vez público, poderia abalar profundamente seus planos de futuro. O idílio de Maurice e seu amante termina quando um amigo próximo é preso, julgado e condenado por manter relações com o camareiro de um hotel.

Agora, 16 anos depois, estamos diante de Tom, o jovem publicitário bem resolvido, que vê na morte acidental do marido a oportunidade de conhecer sua família, nunca antes apresentada pelo falecido. Tom sai da cidade e vai à fazenda num movimento contrário ao de Maurice que deixou o ambiente rural para estudar em Cambridge. Ao chegar na casa, descobre que a sogra nunca tinha ouvido falar dele, e pior: ela está a espera de Helen, a namorada do seu filho morto, que na opinião dela não deveria ter faltado ao funeral. A história da falsa namorada foi tramada pelo próprio namorado de Tom, com a ajuda do irmão Francis, no intuito de proteger a mãe da “devastadora” notícia de que seu filho era gay. Se em Maurice as relações se complexificam por um contexto social opressor, em Tom na fazenda a complexidade se constrói pela truculência de um único personagem, um ente da família, um jovem e solitário homem que não sabe lidar com a orientação sexual do irmão, ou seja, do outro.

Tom na fazenda traz o problema para dentro das casas, para o núcleo familiar mais íntimo. No passado, na impossibilidade de tolerar a homossexualidade do irmão, Francis acaba por cometer um crime atroz naquela comunidade rural: a vítima é um garoto de 16 anos que se diz apaixonado pelo seu irmão. Desse modo, Francis age como guardião da heteronormatividade, mentindo, enganando, fingindo e ferindo, no intuito de sufocar a natureza distinta do irmão mais novo. No entanto, a própria diferença entre eles gera muito mais do que intolerância. Francis parece ter com o irmão uma relação de admiração carregada de afeto. Dividia com ele a dor da morte do pai, a lida na fazenda, momentos de lazer e descontração. É o irmão gay que insiste em levá-lo às aulas de dança de salão e o estimula a arrumar uma namorada. Mas quando esse irmão se apaixona por um outro homem e se afasta de Francis para viver esse amor, o primogênito rasga a boca do rapaz num ato impensado que envolve raiva, medo, rejeição e vingança.

Anos depois, quando Tom chega à fazenda, Francis está diante de sua memória: aquele que ali dorme no mesmo quarto que ele era também amado por seu irmão. Mas, na ausência desse, Tom parece aos poucos ocupar o lugar deixado pelo morto: por nove dias eles conversam sobre suas vidas, trabalham juntos, dançam juntos, compartilham segredos e fazem a quatro mãos o parto de um bezerro que nasce com a pata quebrada. Quando a relação entre eles parece ganhar uma espécie de irmandade, chega à fazenda, a pedido da mãe, a falsa namorada do irmão morto. A presença da mulher é desestabilizadora, uma vez que agora Tom é quem não consegue lidar com o interesse de Francis pela garota e acaba por cometer um ato violento de vingança. Será esse o motivo?

Todo movimento que fizemos ao montar Tom na fazenda foi de relativizar as verdades instituídas a partir dos nossos processos de formação social e cultural. Para nós, sempre foi ponto de convergência a ideia de provocar reconhecimento e identificação, mas não só ao que é belo e bom. Vejo um movimento nessa corrente conservadora — e também em seus opositores mais radicais —, a necessidade de polarizar e classificar. O que mais me interessou no texto de Bouchard não foi apenas a temática, mas a forma complexa com que ele a aborda, tridimensionalizando os personagens num grau de profundidade tão potente que nos torna incapazes de emitir afirmações e certezas. É sempre mais fácil julgar e classificar o outro (incluindo os personagens) como o bom ou o mau, o belo ou o feio, o bruto ou o sensível, o algoz ou a vítima, o simpatizante ou o homofóbico. Me pergunto quantas graduações podem existir entre um padrão e outro. Para isso foi necessário adotar uma encenação que valorizasse o não-dito, o que não se sabe, que não revelasse por inteiro, que fosse capaz de abrir um campo vasto e misterioso de leituras possíveis sem defender um único ponto de vista. Que não materializasse a fazenda, mas a complexidade dos seus moradores.

Foi nesse sentido que pensamos no barro (terra e água) como principal elemento da cenografia. Dois elementos naturais que unidos possuem a textura e a cor necessárias para materializar o chão da fazenda numa primeira camada, mas também a sujeira escondida pelo irmão, os hematomas que Tom adquire nas intermináveis lutas corporais com Francis, o esmaecimento das características individuais, uma vez que o barro depositado sobre o piso vai subindo no corpo dos atores à medida que a peça avança. Isso sem falar na ancestralidade da relação homem/barro: ver os personagens terminarem a peça completamente enlameados, com matizes da terra secando e craquelando pelo corpo, pode aludir ao retorno do homem ao barro, à terra e ao primitivo. O cenário assinado por Aurora dos Campos conta ainda com uma lona preta de obra sobre o piso com a função primeira de amparar o barro, produzindo, além disso, uma sonoridade a cada movimento. Não há como se mover sem fazer barulho, é como pisar em um campo vigiado onde tudo que se faz é monitorado por alguém. Sacos de areia e alguns baldes pretos compõem a cenografia como se fossem gavetas que escondem os objetos que entram e saem de cena. Uma única lâmpada pendente no centro do palco emoldura a casa vazia como metáfora da solidão dos personagens, elemento proposto pelo iluminador Tomás Ribas, que usa a luz para reforçar a aridez e o vazio evidenciado pela atmosfera da peça. A trilha sonora, assinada por Marcelo H., faz o mesmo movimento, além de potencializar as tensões e as suspensões propostas pela encenação, criando paisagens sonoras que ajudam a desdobrar as possíveis leituras da imaterialidade da peça, criando outras camadas.

O elenco original contou com os atores Gustavo Vaz, no papel do irmão e do próprio Babaioff no papel do Tom, e com as atrizes Kelzy Ecard interpretando a mãe/sogra e Camila Nhary como a falsa namorada. No processo de criação da encenação, coloquei desde o princípio os atores no centro da concepção. Desde quando li o texto pela primeira vez disse ao elenco que via ali uma peça sem cenário, sem mobílias, sem apoios físicos. Há algo desconfortável nisso que por si só já me parecia potencializar as relações propostas por Bouchard: uma fazenda de certa forma inóspita, difícil de se posicionar dentro dela, de encontrar conforto. Num lugar sem assentos não se pode relaxar. Uma vez num palco vazio, começamos a construir um repertório gestual para cada personagem com base no estudo que fazíamos da peça. Começamos a criar algo para além do gesto ordinário e cotidiano previsto pela coerência do texto, que pudesse abrir os sentidos, subjetivar a comunicação com os espectadores.

Desse processo cada ator foi construindo um repertório gestual flexível e diverso capaz de ser absorvido pelas ações dos personagens ao longo de toda a peça. Isso funcionou como uma espécie de “gesto-bordão” que, de alguma forma, caracterizava cada personagem. Ações como assoviar, cuspir no chão ou estalar os dedos são gestos de teor ordinário que caracterizam o Francis como o homem que é. Aos poucos, Tom, numa sacada inteligente do próprio Babaioff, vai assumindo os gestos do cunhado e se tornando como ele. Em contrapartida, o repertório do Tom é predominantemente de uma natureza mais subjetiva, como despencar sobre a lama, descer as calças até o calcanhar ou cobrir o rosto. Não se pode decodificar esses gestos numa leitura superficial, assim como o próprio Tom e suas múltiplas interlocuções durante a peça: muitas vezes não sabemos com quem ele está falando, se é com os outros personagens ou com o namorado morto ou consigo mesmo. Em várias falas caberiam duas ou mais interlocuções. Ou seja, não sabemos com quem ele fala e o que escutam aqueles a sua volta. Levei isso também ao campo das ações físicas; criando momentos em que os outros personagens também não vêm o que Tom faz. Esse dispositivo acabou abrindo um espaço ainda mais potente para a criação da corporalidade do personagem título. Mas ainda, há uma terceira natureza gestual: lavar as mãos nos baldes, por exemplo, é uma ação repetida inúmeras vezes pela mãe e pelo cunhado. Esse gesto tem diversas camadas de leitura, desde algo mais cotidiano (uma vez que há lama por todo lado, então há o que lavar) a talvez uma leitura mais psicológica como metáfora de quem não quer se envolver, participar ou saber a verdade. Isso acontece também quando Tom e Francis dançam uma cúmbia no curral. Na coreografia de Toni Rodrigues não sabemos ao certo se aquilo é uma dança, uma brincadeira de criança ou uma luta greco-romana.

Entretanto, todo investimento nos aspectos imagéticos e corporais surgiu do desvendamento desses personagens e de toda sua complexidade. Houve um momento muito bonito no processo: quando descobrimos que não haveria respostas para todas as perguntas e que a dúvida e o mistério poderiam ser nossos aliados. Perguntas como: “O que Francis sente por Tom?”, “Por que Tom não foi embora após o funeral?”, “O quanto essa mãe sabe sobre a sexualidade do filho?”, “Porque Tom rasga a boca do Francis e assume seu lugar naquela fazenda?” Claro, podemos especular muitas respostas, mas não há no texto uma resposta única e verdadeira capaz de dar conta de tudo. Isso é maravilhoso!

Aos poucos fomos nos contaminando com nossas perguntas, impressões e intuições. Meu maior trabalho foi me manter atento ao que o processo dizia e ele disse: “não abra mão disso!”, “vá mais fundo”, “não se envolva com isso”, “deixa espernear”, “não interfira nisso agora”, “preciso de mais”, “preciso de menos”, “preciso de nada”. Antes de tudo, acredito numa relação honesta e justa (no sentido de “sem sobras”) no processo de criação. Fizemos um espetáculo que tem o nosso tamanho, as nossas questões e que, de certa forma, tenta materializar o complexo que somos, o primitivo que somos, o barro para o qual voltaremos!

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