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Nos desdobramentos do Teatro Pós-Dramático: Beckett através de Artaud e Deleuze
Vol. VIII nº64, maio de 2015
“Eu preferiria que o texto não fosse visto em nenhum formato antes de ir para a cena e não aparecesse em forma de livro até que eu tenha assistido a alguns ensaios em Londres. O texto não pode ser definitivo sem um trabalho real dentro do teatro.” Samuel Beckett sobre o texto de Happy Days [Dias Felizes], 1961.
Através de Artaud
Na entrada para o espaço menor, no andar de baixo do Théâtre du Rond-Point (saindo da Avenida Franklin D. Roosevelt, no oitavo arrondissement em Paris, não muito longe dos Champs Elyssées), há duas fotografias imponentes perduradas, de dimensões amplas, uma de Antonin Artaud, a outra de Samuel Beckett. A partir de 1958, esse teatro passou a ser dirigido por Jean-Louis Barrault (1910-1994), que fora, no entanto, demitido do cargo pelo ministro da cultura gaullista André Malraux durante a revolta estudantil na primavera de 1968. O Théâtre du Rond-Point, sob a direção de Barrault, foi um dos teatros de Paris onde a Compagnie Renault-Barrault introduziu aos parisienses o que era então entendida como performance avant-garde europeia, incluindo as peças de Samuel Beckett.
Imagens em confinamento: A tensão entre corporeidade e espacialidade
“Fazer isso, ligar o teatro à possibilidade da expressão pelas formas, e por tudo o que for gestos, ruídos, cores, plasticidades, etc, é devolvê-lo à sua destinação primitiva, é recolocá-lo em seu aspecto religioso e metafísico, é reconciliá-lo com o universo” (ARTAUD, 2006:77).
Apagam-se as luzes da plateia. Ao iniciar o espetáculo, o espaço sonoro é preenchido por uma voz feminina em off, suave, plena de potência e de vontades. Uma voz que deseja o mergulho no ar e por sobre as cataratas. Desejo de cortar o espaço de maneira vertical, de furar o bloqueio das possibilidades do entendimento. Entendimento sobre si e sobre aquele que assiste, sentado na plateia. Um pássaro que carrega o seu fardo, que deseja voar, mas está preso ao seu destino em terra firme. Objeto que prende. Barril que encerra sua presa dentro de si e por sobre si. Desejos em conflito. Conflito entre o que se ouve e o que se vê. Construção imagética que se mantém autônoma do significado lingüístico. Essa atmosfera poética é emanada para o espectador, que compartilha junto com os demais, as angústias e os temores de uma figura (não, necessariamente, um sujeito psicológico) que divaga uma série de questionamentos abstratos sobre a existência. Ouvimos a narração durante o blackout.
A noção de corpo-sem-órgãos em Artaud e no Teatro da Crueldade
1) Um homem que inquietou os homens
Antonin Artaud empenhou sua vida para expressar uma visão acerca da “verdadeira e imortal liberdade”. Dedicou seu corpo a um fazer teatral que anunciava a amplitude de se viver livre – um teatro ritual que extraía o indivíduo dos liames que o ancorava, que chocava e proporcionava um desejo de viver. Parece-me que ele mesmo fugia do juízo como se estivesse atolado em um pântano de piche. Completamente imerso nessa armadilha viscosa, Artaud elaborou um plano de purificação para gerar um novo corpo que não era nem humano nem metafísico, e ainda, refratário e autônomo, um corpo de resistência e intensidades: o corpo sem órgãos.
Marianne Lamms
Diversas testemunhas disseram tê-la visto em companhia de Artaud. Ela fora membro do “Grand Jeu” (Grande Jogo), onde Roger Vailland a teria introduzido. Depois disso, ela faria do jornalismo tudo para prosseguir obstinadamente em suas pesquisas em astrologia, geomancia e numerologia. Paixão dos números a qual Daumal e Gilbert-Lecomte a tinham encorajado. Ele não estava surpreso que isso a conduziria a cruzar um dia a rota de Artaud. Ela não o tinha encontrado muitas vezes, mas algumas trocas seriam suficientes para que ela ficasse impressionada com a vida. Ainda hoje, ela o confunde numa lembrança um pouco fascinada com seus amigos do Grande Jogo.
Pergunta: O que você fez para conhecer Artaud em sua época?
Resposta: Isso se passou em 1933, no momento, eu creio, quando ele preparava Heliogábalo. Roger Gilbert-Lecomte é que me tinha sugerido a encontrá-lo. Ele me dizia mais ou menos: “É pena que não o conheça, com as pesquisas que você faz!” Eu compreendi mais tarde que ele tinha, ao mesmo tempo, falado de mim a Artaud. Ele o amava muito. Daumal também, mas um pouco menos. Sim, o pintor era mais reservado: quando soube que eu tinha visto Artaud, me disse para ficar atenta.
Uma amiga anônima de Artaud
Conversa de Alain e Odette Virmaux, realizada em 1978, com uma mulher que foi muito amiga de Antonin Artaud e que não quis que seu nome fosse revelado. Este texto foi traduzido em 1996 por ocasião do centenário de nascimento de Artaud.
Pergunta: Você foi amiga de Antonin Artaud, e uma amiga fiel, pois você pertence ao pequeno número daqueles que não o abandonaram na época dos internamentos. Você foi vê-lo no manicômio de Ville-Évrard e lhe escreveu quando estava internado em Rodez. Quinze anos antes, você esteve brevemente colaborando com ele para o Teatro Alfred-Jarry. Adivinha-se a riqueza dessa longa amizade e pressente-se que você seja talvez uma das pessoas mais indicadas para falar dele sem deformá-lo. Ora, você tem se abstido de se juntar ao coro inumerável de todos esses que o tem evocado frequentemente, mesmo o tendo conhecido muito menos que você. Por que esse silêncio?