Imagens em confinamento: A tensão entre corporeidade e espacialidade

Crítica da peça O barril, com Ângela Dip, direção de Vivien Buckup

26 de abril de 2011 Críticas
Atriz: Ângela Dip. Foto: divulgação.

“Fazer isso, ligar o teatro à possibilidade da expressão pelas formas, e por tudo o que for gestos, ruídos, cores, plasticidades, etc, é devolvê-lo à sua destinação primitiva, é recolocá-lo em seu aspecto religioso e metafísico, é reconciliá-lo com o universo” (ARTAUD, 2006:77).

Apagam-se as luzes da plateia. Ao iniciar o espetáculo, o espaço sonoro é preenchido por uma voz feminina em off, suave, plena de potência e de vontades. Uma voz que deseja o mergulho no ar e por sobre as cataratas. Desejo de cortar o espaço de maneira vertical, de furar o bloqueio das possibilidades do entendimento. Entendimento sobre si e sobre aquele que assiste, sentado na plateia. Um pássaro que carrega o seu fardo, que deseja voar, mas está preso ao seu destino em terra firme. Objeto que prende. Barril que encerra sua presa dentro de si e por sobre si. Desejos em conflito. Conflito entre o que se ouve e o que se vê. Construção imagética que se mantém autônoma do significado lingüístico. Essa atmosfera poética é emanada para o espectador, que compartilha junto com os demais, as angústias e os temores de uma figura (não, necessariamente, um sujeito psicológico) que divaga uma série de questionamentos abstratos sobre a existência. Ouvimos a narração durante o blackout.

O monólogo O barril – Uma comédia filosófica, em cartaz no Teatro das Artes, com texto e atuação de Ângela Dip, é um espetáculo que provoca o espectador pelas múltiplas possibilidades de comunicação que saltam aos olhos do público através do corpo da atriz. Muito à vontade, dentro do único adereço cenográfico que compõe a montagem (o já citado barril, que mede 80 cm de altura por 70 cm de largura, com duas aberturas nas laterais para a saída das pernas), a ex-bailarina executa uma série de partituras físicas altamente elaboradas, ressignificando o tempo todo os modos de utilização do objeto, sem esgotar suas possibilidades de sentido e de função: Em certos momentos, parece que a atriz está nua e que o barril é o único adereço que pode cobrir-lhe o corpo; em outro instante, o objeto está em suas costas, enquanto Ângela rasteja sobre o palco bem devagar, semelhante a uma tartaruga; numa terceira situação, ela sobe no barril e se equilibra sobre ele, vestindo sobre a cintura um enorme tecido preto, tornando-se nesse instante uma bela mulher alta, que enxerga o mundo de cima. Uma voz e uma visão superiores às da platéia. Devido ao rigor com que executa a cadeia de movimentos e gestos físicos, perde-se o fio da meada no encadeamento da narrativa, fazendo com que o espectador preste muito mais atenção à fisicalidade corporal da atriz do que na própria materialidade do texto, mas talvez seja esse o grande barato da encenação, provocar essa suspensão estética.

A diretora Vivien Buckup, em parceria com a atriz, procura expandir o movimento, já bastante inquieto da atriz, para outras extremidades do palco. O deslocamento se dá no interior do seu mundinho simbólico, ou seja, o próprio barril. A figura representada por Ângela desliza sobre o tablado com o intuito de tornar mais evidente os estados de emoção provocados pelo bloco de palavras que saem da boca da personagem, instaurando uma atmosfera de intensa poesia no espaço, juntamente com as risadas da atriz que ecoam pelo ar, além dos efeitos criados pela trilha sonora, também de autoria de Ângela Dip e pela iluminação criativa de Hugo Peake. O movimento traçado pelo barril, enquanto a personagem desliza dentro dele, não é retilíneo. Podemos considerar esse momento fugaz da encenação como signo que reitera ainda mais a fragilidade da nossa situação de sujeitos perecíveis, nesse mundo dos fenômenos, desnorteados pela única certeza do ser humano, a morte, que perturba o espírito a cada ano que passa. Mas, apesar de toda essa carga por demais ácida e fatalista da vida, o texto é leve, recheado de frases engraçadas, discursa contra as bisbilhotices e obviedades do mundo contemporâneo e, principalmente, faz refletir sobre tudo isso que foi dito agora pouco. O posicionamento frontal da atriz, aliado a uma certa informalidade na vocalização do texto, cria uma espécie de atmosfera intimista, uma conversa despretensiosa e bem divertida.

A estética espacial do espetáculo é constituída por desdobramentos e reelaborações do locus privilegiado da representação. Como já foi mencionado, logo no primeiro parágrafo, identificamos a princípio um espaço sonoro, onde a voz gravada da atriz em off flutua pelo território destinado ao público do Teatro das Artes. Nesse momento inicial, nenhum esboço de visualidade nos é apresentado, além da massa negra que cobre palco e platéia. Ausente de qualquer aspecto imagético concreto, o inconsciente é ativado, tensionando a matéria auditiva da gravação com os fluxos de linhas e volumes organizados mentalmente. Num segundo momento, a estrutura cênica do espetáculo opera uma reduplicação do espaço de atuação, com o significante barril servindo de palco reduzido em suas possibilidades físicas de representação sobre outro palco, esse sim muito maior e de extensão e profundidade superiores. Ângela Dip circunscreve toda sua atuação performática, confinando-se dentro dos limites estreitos do palco microcósmico.

A encenação de O barril – Uma comédia filosófica no conglomerado teatral do Shopping da Gávea difere das demais produções cênicas apresentadas ali justamente pela qualidade artística da encenação, pela ousadia de não optar por uma linguagem cênica óbvia e facilmente palatável e não fazer concessões de gosto para um público condicionado a formas gastas de atuação e de repertório padronizados.

Referência bibliográfica:

ARTAUD, Antonin. Teatro oriental e teatro ocidental. In: O teatro e seu duplo. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006.

Pedro Allonso é ator e aluno do curso de Teoria do Teatro da UniRio.

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores