Uma amiga anônima de Artaud

Tradução de Wilson Coelho da conversa de Alain e Odette Virmaux com uma amiga de Antonin Artaud que não quis que seu nome fosse revelado.

10 de abril de 2009 Traduções

Conversa de Alain e Odette Virmaux, realizada em 1978, com uma mulher que foi muito amiga de Antonin Artaud e que não quis que seu nome fosse revelado. Este texto foi traduzido em 1996 por ocasião do centenário de nascimento de Artaud.

Pergunta: Você foi amiga de Antonin Artaud, e uma amiga fiel, pois você pertence ao pequeno número daqueles que não o abandonaram na época dos internamentos. Você foi vê-lo no manicômio de Ville-Évrard e lhe escreveu quando estava internado em Rodez. Quinze anos antes, você esteve brevemente colaborando com ele para o Teatro Alfred-Jarry. Adivinha-se a riqueza dessa longa amizade e pressente-se que você seja talvez uma das pessoas mais indicadas para falar dele sem deformá-lo. Ora, você tem se abstido de se juntar ao coro inumerável de todos esses que o tem evocado frequentemente, mesmo o tendo conhecido muito menos que você. Por que esse silêncio?

Resposta: Uma das raras vezes que aceitei falar dele, deturparam minhas palavras. Daí minha desconfiança e também uma certa preocupação: eu não quero ser considerada como aquela que sucedeu a Genica Athanasiou ao lado de Artaud. E todavia é verdade que nós tínhamos estado muito próximos, pois nós vivemos juntos muitos anos. Mas trata-se de uma relação privada e seria chocante expor em praça pública. Falar de Nanaqui (Apelido de infância de Artaud), sim, das duas mãos. Mas das relações que têm podido existir entre ele e eu, não.

Pergunta: Voltemos então ao Teatro Alfred-Jarry. A maior parte dos atores que Artaud tinha reunido vinha da casa de Dullin. E você não? De onde você vem? Do music-hall, como tinha escrito?

Resposta: Eu não tinha vinte anos. Minha família veio da Rússia. Era preciso ganhar o meu pão e o de minha mãe. Eu pensei em fazer teatro. Mais tarde, eu seguia os cursos de Denis d’Inès e de René Simon. Mas nessa época eu tinha de fato começado pelo music-hall. Sem dúvida nenhuma e laureada em dois concursos de beleza, fui me apresentar a Paul Derval, que me engajou ao Folies-Bergère. Não é uma lembrança ruim.

Pergunta: Existe um laço entre a aventura do Folies-Bergère e esse do Teatro Alfred-Jarry. Uma história de figurino?

Resposta: Sim. Quando ensaiamos O Sonho, de Strindberg, eu mesmo me ocupei de uma de minhas roupas. Uma das duas personagens que eu fazia estava vestida como empregada portando uma espécie de balde. O balde tem sua importância. Eu estava secretamente encarregada de esvaziar o conteúdo sobre os perturbadores eventuais do espetáculo. Mas quando eu vi Robert Desnos saltar sobre o palco, eu não tive a audácia de lhe espargir – ele era irresistivelmente simpático – e eu me felicito hoje. Muito mais tarde, Desnos multiplicara as negociações para fazer amenizar a sorte de Antonin Artaud no hospital psiquiátrico de Rodez.

Pergunta: Mas e o figurino?

Resposta: O outro papel que eu tinha em O Sonho era, ao contrário, de uma personagem suntuosamente vestida! Os meios aos quais nos dispusemos foram bastante limitados, eu tinha dito a Nanaqui que eu mesma me ocuparia do figurino. Aqueles que eu usei no Folies-Bergère ainda existiam. O guarda-roupa alugado para as turnês e bailes de máscaras. Eu tive sorte: aquele que eu queria – um esplêndido vestido de 1880 – voltou da turnê. Assim, para um preço de locação bem razoável, eu pude recuperar um traje magnífico, mesmo um pouco demasiado, esse luxo deslumbrante sendo talvez um pouco deslocado numa companhia de vanguarda.

Pergunta: Tem-se escrito que, para o último espetáculo do Teatro Alfred-Jarry, você tinha recusado no último momento o papel de Ida Mortemart na peça de Roger Vitrac, Victor ou as crianças no poder.

Resposta: É verdade que eu recusei o papel, mas é falso que eu tenha recusado no último momento, o que teria sido uma grosseria. Eu gostava muito de Vitrac por três razões: ele mesmo, sua afeição por Nanaqui e seu talento. Simplesmente, os primeiros ensaios me confirmaram o que eu já pressentia na leitura do manuscrito de Victor: o papel de Ida que Vitrac me tinha proposto me desagradava. Ele atribuía inoportunas zombarias (comparação com o “pétomane” do Eldorado, etc.), e eu tinha medo de ficar marcada pela personagem.

Pergunta: Artaud dava porém uma grande importância à Ida Mortemart: era para ele o papel-chave da peça. Ele o via como o símbolo da decomposição de uma sociedade. Pensando bem, você não se arrependeu de sua recusa?

Resposta: Não.

Pergunta: Como se deu o conhecimento, e onde?

Resposta: Nos estúdios de Joinville, durante a temporada do Judeu Errante, de Luitz-Morat, depois do romance de Eugène Sue. Artaud fazia o papel de Gringalet. Ele devia flertar com uma costureirinha francesa num cenário que representava o caramanchão de Robinson. A costureirinha, era eu: um papel mínimo, um cisco de papel, que nem aparecia na ficha técnica. Quem diria que esse falso idílio, brotando de um falso caramanchão de um falso Robinson, duraria toda a vida? Em todo caso, nossas relações começaram nessa época. Ele me acompanhava sempre até minha casa na volta dos estúdios.

Pergunta: Você viu Artaud dirigir uma cena. Você foi dirigida por ele no teatro. Como ele se comportava durante os ensaios? Como ele orientava os atores?

Resposta: Com muito método. Ele sabia exatamente o que queria. Ele explicava muito bem. Quando isso não satisfazia, ele mostrava. Ele entrava em cena e fazia ele mesmo todos os papéis como ele os imaginava. Tem-se dito e escrito que ele tinha sido sobretudo um teórico. É verdade, mas não é tudo. Ele foi também um brilhante executante.

Pergunta: Era difícil trabalhar com ele?

Resposta: Não, pois se ele era exigente, ele era também muito convincente, capaz de dar talento a aqueles que não tinham.  Seu contato era estimulante. Na maioria das vezes, ele se mostrava de uma grande cortesia com os atores. Eu jamais o tinha visto brutal, nem ouvido grosseria para com eles. Nesse meio de teatro, onde a prática do tratamento por “você” era quase sempre a regra, ele o evitava, salvo com os mais íntimos, e olhe lá! Mesmo com sua mãe, que eu conheci bem, ele alternava o tratamento de tu e senhora nas cartas que lhe endereçava. Quando ele soltava injúrias em fluxos coloridos e cheios de imagens, isso não era jamais durante os ensaios, pelo menos na época em que eu lhe assistia. Ele reservava suas explosões verbais às polêmicas, aos panfletos ou, simplesmente, quando nós brincávamos e bagunçávamos.

Pergunta: Ele então era um arruaceiro?

Resposta: E como: diz-se que discursava como um homem de humor rabugento, de temperamento lúgubre, de caráter sinistro.  Ele o foi por momentos. Suas cóleras existiam de passagem, mas elas eram breves (eu indico de passagem que ele jamais tomava álcool), às vezes, ao limite da caricatura. Ele brincava de encolerizar, de provocar pequenos escândalos, de fazer enormes brincadeiras. A lembrança que tenho dele, pelo menos nessa época e não importa se isso surpreende, é essa de um ser muito gozador, e mesmo malicioso.

Pergunta: Era um pouco também o sentimento de Roger Blin.

Resposta: Um dia, eu não sei porquê, eu lhe perguntei por acaso numa conversa se ele tinha feito latim em sua juventude. Sua reação tinha sido de uma violência completamente incompreendida: “Eu cago no latim! Eu mijo no latim!” Mas era preciso conduzir esse modo de trato? Isso não lhe arriscava dar uma falsa idéia dele?

Pergunta: Nada disso. Está extraordinariamente ligado, por exemplo, à famosa “Carta aos Reitores das Universidades Européias”. E depois, os leitores de Artaud conhecem agora sua obra e estão familiarizados com suas imprecações.

Resposta: Era um personagem de facetas múltiplas. E como ele não dizia nada pela metade, as barulheiras com ele não eram de meias-medidas. Uma noite, nós fomos detidos por algazarra noturna. As ruas estavam desertas e nós brincamos fazendo um grande barulho. Um representante da ordem nos convidou, sem brutalidade, a pensar um pouco nas pessoas que dormiam.  Artaud, sobre isso, com desdém: “E daí?! Eu por acaso estou dormindo?” Então, evidentemente, nos levou ao posto. Artaud trabalhava na “Paixão de Joana d’Arc”, de Dreyer, onde ele tinha um papel de um monge com o topo da cabeça tonsurado. Se bem que para evitar as contínuas gozações a esse sujeito, ele portava a todo tempo um chapéu que ele levava obstinadamente sobre o seu crânio. Na delegacia de polícia, o inspetor de polícia lhe ordenou que tirasse o chapéu. Decididamente. Artaud obedeceu, mostrando o topo da cabeça ao oficial de polícia e, tamborilando o polegar sobre seu crânio, se pôs a cantarolar: “Lá, lá, lá. Vedes, lá. Observeis, lá, lá, lá!” (O tomaram por um monge que recentemente deixara a batina). Em todo caso, nos libertaram sem fazer ocorrências.

Pergunta: A gente o representa como um ser colérico, sempre pronto a fulminar. Reproduz-se suas explosões, seus escândalos. Imagens anedóticas, mas sempre ligadas a esse “certo estado de furor” que lhe animava constantemente. Essa visão parece e não parece com a lembrança que você guarda dele.

Resposta: Suas cóleras não eram jamais ditadas pela maldade, mas pela revolta, a indignação. Às vezes, sem razão; quero dizer: sem outra razão que a necessidade irresistível de explodir. Era uma forma de expressão. Sem a menor perfídia nele. Era a sinceridade mesmo, a lealdade, a honestidade em pessoa.

Pergunta: Você assistiu a uma ou outra de suas conferências ou manifestações públicas? Qual era o clima?

Resposta: Havia freqüentemente uma barulheira. Por exemplo, a sua conferência sobre o filme falado. Ou bem a uma dessas que ele deu na Sorbonne; foi num anfiteatro muito pequeno, onde o público tinha acesso pela rua Saint Jacques. Eu me lembro também de sua participação num debate sobre o destino do teatro e, sobretudo, do escândalo das Ursulinas, mas a apresentação do filme La Coquille et le Clergyman que tinha realizado Germaine Dulac. Artaud não estava muito bem entendido com ela. Ele a tinha visitado no hotel particular que ela habitava no Parque Monceau, e ele tinha ficado muito impressionado de ver uma magnífica coleção de barcos-miniaturas. Diversas vezes ele me tinha falado em tom de zombaria: “Oh, os belos pequenos barcos! Gostaria de ter um daqueles pequenos barcos!”

Pergunta: Germaine Dulac e seus amigos têm sustentado que Artaud não estava nas Ursulinas aos 9 de fevereiro de 1928, o dia do famoso escândalo.

Resposta: É falso. Ele estava lá com sua mãe, e eu com a minha, todos os quatro na mesma fileira de poltronas, quase no meio da sala. Os surrealistas estavam lá também, um pouco em toda parte, alguns deles não longe de nós. Precavido o escândalo, tínhamos decidido não nos misturar. Um barulho indescritível explodiu quase junto com as primeiras imagens do filme. Face aos perturbadores malucos, um defensor de Germaine Dulac se levantou. Era um velhote, Charles de Saint-Cyr, diretor-redator em chefe do “La Semaine à Paris”. Sua voz senil quase não podia se fazer entender, abafado sob o número de pessoas. Alguém lhe gritou: “Ao cemitério, ao cemitério!” Alusão dedicada à sua avançada idade.

Pergunta: O que você pensa do filme daquela noite?

Resposta: Germaine Dulac era uma mulher de um certo talento. Ela provou em outros filmes. Mas ela não era uma diretora que convinha para levar à tela um roteiro de Antonin Artaud. Nenhum outro que ele mesmo teria podido fazer.

Pergunta: Ele interviu durante o tumulto?

Resposta: Uma só vez, e ele não pronunciou mais que uma só palavra. Ele se levantou com a rapidez de uma flecha jogada do arco para gritar: “Basta! Basta!” É tudo.

Pergunta: Ele se dirigiu aos perturbadores, ou a Germaine Dulac e ao filme?

Resposta: Eu não sei. Tinha-se dito que ele se pegava com os surrealistas. Mas ele não parecia muito afetado com o escândalo. Mais tarde, as duas mães de volta para suas casas, nos reencontramos em casa de Gavarni, como todas as noites. Ele estava bastante excitado, mas antes risonho.

Pergunta: Que importância o cinema tinha na sua vida e no seu espírito?

Resposta: No que tange ao cinema, seus sentimentos eram muito divididos. Freqüentemente, tinha-se confiado a ele papéis muito pequenos, que ele marcava apesar de sua personalidade. Eu vejo ainda o jovem boêmio que ele compôs para Tarakanova, ou o amolador de Liliom, ou aquele professor de química inventor de explosivos que ele encarnava em Koenigsmark, seu último filme. Sua melhor lembrança de filmagem era, talvez, o aprendiz de mendigo de L’Opéra de Quat’sous, ensaiando seu papel diante de um espelho.

Pergunta: Você guardou na memória suas saídas com ele, os espetáculos que ele apreciou, os amigos que vocês encontravam?

Resposta: Ele era fiel aos lugares como às pessoas. Quando ele morava na rua La Bruyère, nós íamos todas as noites aos mesmos restaurantes e aos mesmos cafés, situados entre as ruas Fontaine Blanche e a parte do bulevar compreendida entre a praça Blanche e a praça Clichy. Quando ele morava na rua de Montessuy com sua mãe, eram o Coupole e Chez Francis. O teatro: Jouvet e Baty, certamente.  Antonin tinha particularmente amado Le Dibbouk, com Marguerite Jamois, no teatro onde se apresentava Baty. Eu sei que ele também tinha visto Le Camelot de Vitrac, com Georgius. Coisa curiosa: eu não me lembro de ter ido com ele à oficina de Dullin. Os amigos: aquele que ele amava mais, sem dúvida, era Roger Vitrac. Ele jamais me disse, ele tinha o pudor de seus sentimentos, mas eu acreditava compreendê-lo. Vinham em seguida René Allendy e sua mulher. Regularmente ele ia jantar na casa deles, no domingo. Todos os domingos, ele me deixava cerca de sete horas. Eu não conhecia os Allendy e me enfurecia contra eles por causa de meus domingos abreviados. Eu soube mais tarde que eles eram pessoas encantadoras, conhecendo-lhe então de ensaios. Artaud não tinha local para ensaiar. Os Allendy lhe tinham oferecido o andar superior de seu hotel particular. Tenho também a lembrança de muitos encontros na loja de Michel Simon: ele e Artaud se conheciam bem e se apreciavam mutuamente.

Pergunta: É pena que eu não tenha jamais interrogado Michel Simon sobre Artaud. A este você aconselhava mais particularmente certos livros?

Resposta: Jude l’obscure, de Thomas Hardy, La Lettre Rouge, e também, sim, Les Hauts de Hurlevent. E muitos outros. Ele vinha também abrir os livros que estavam jogados sobre minhas mesas. Um dia, era não sei mais qual obra de Charles Maurras, que ele tinha aberto maquinalmente durante minha ausência. Quando voltei, eu disse alguma coisa. Sem me olhar nem interromper sua leitura, ele fez: “Chchtt! Chchtt!” Mais tarde, acabei falando: “O café está frio”. Urros: “Ah bem, a gente substituirá pela urina de boi. Ela é quente!” É preciso acrescentar que ele gostava muito de café…

Pergunta: E em matéria de poesia?

Resposta: Os que ele preferia: Nerval, Rollinat e Baudelaire, aos quais ele interpretava notavelmente La Mort des Amants. Eu o ouço dizer: “Nós teremos os leitos plenos de odores levianos…” Mas o poema que ele colocava acima de tudo, era este de Nerval. “Eu sou o tenebroso, o viúvo, o inconsolado…” Contrariamente a isso que se podia acreditar, Artaud não detestava o alexandrino. Quando ele escrevia, a forma harmoniosa lhe vinha naturalmente.

Pergunta: Nós estamos longe das violências de linguagem e dos gritos inarticulados que são para muitos seu emblema?

Resposta: Ele soltava gritos de animais, mas era sempre conforme a situação. Vou dar-lhe um exemplo. Vindo a ser jornalista, fiz para Comoedia um texto aproximado sobre um vernissage de pintura. Era um pouco irreverente, e eu o tinha intitulado Le Corot et le Renoir. O redator-chefe, Gabriel Boissy, tinha desaprovado, sobretudo, pelo título. À noite, eu janto com Artaud e lhe conto sobre o acontecido. Imediatamente, ele quis telefonar a Boissy e, quando este estava na linha, em lugar de falar, Artaud imitou a grasnada do corvo: “Crous, crous, crous”. Atordoamento de Boissy. Então Artaud mudou de registro e substituiu as onomatopéias pelo estilo shakespeareano: “O corno grasnante que precisa de sangue”. Em nome de Corot, o outro tinha que compreender, do outro lado da linha, de onde vinha-lhe o telefonema… Mas eu gostaria de insistir sobre esse gosto pela palavra. Artaud amava a palavra surpreendente, a palavra inesperada e rara. Ele acolhia com uma alegria divertida a nova palavra que ele não conhecia. Por exemplo, “stribord”.

Pergunta: Stribord?

Resposta: Sempre para Comoedia, eu fiz em 1933 uma entrevista de Claude Farrère, onde se tinha se colocado essa questão de terminologia marítima. E Farrère tinha me mostrado um dicionário herdado de Pierre Loti, e que ele pretendia único. Achava-se mesmo, dizia ele, a etimologia da palavra “estibordo” (“tribord”), que mesmo Littré declara desconhecida. De fato, no famoso dicionário, “tribord” (estibordo) remetia a “stribord”, e este a “dextribord” ou borda direita… Artaud leu minha entrevista e, quando nos vimos, muitos dias depois, ele gritou a plenos pulmões do mais longe que ele me viu: “Stribord! Stribord! Stribord!” Para o grande pavor dos transeuntes.

Pergunta: Nessa época seus caminhos começaram a se divergir. Para você, jornalismo, depois, romances policiais e, mais tarde, peças rádio-policiais. Suas relações com Artaud espaçaram. Talvez, porque você estivesse freqüentemente em reportagem.

Resposta: Não somente por causa de minha vida profissional. Em Paris, eu estava sempre livre quando ele me solicitava. Mas ele ficava alguns dias e mesmo algumas semanas sem telefonar. Eu jamais telefonava primeiro. Ele amava que lhe deixasse em paz. Falando dos amadores de telefone e que o abusam, ele dizia: “É uma perseguição!” ou “É uma violação de domicílio!”

Pergunta: Você assistiu a uma apresentação dos Cenci em maio de 1935?

Resposta: Evidentemente. Eu era a única crítica de teatro a meio-tempo, e tinha mesmo consagrado um artigo de três colunas aos Cenci, isso que não era dos meus hábitos.

Pergunta: O público do Folies-Wagram não era quase nada daquele que podia desejar Artaud para seu espetáculo.

Resposta: Eu não assisti a estréia. Em geral, se encontra sempre as mesmas pessoas: críticos, personalidades da “Tout-Paris”, polícias…  grupo regular cercado de uma fração variável conforme os teatros: os amigos do diretor, do autor, dos atores, dos técnicos…

Pergunta: Artaud falava com raiva dos críticos. Você era desta “panelinha”… Que pensa disso?

Resposta: Ele os tratava, segundo seu estado psicológico, de imbecis, de chocalhos às chacotas ou às bagatelas. Mas ele os lia atentamente e os comentava às vezes com veemência. Sem desdém de sua parte.

Pergunta: Todavia, ele tinha pedido a André Frank, secretário geral do Folies-Wagram, para empregar Fortunat Strowski, eminente crítico, colocando-o numa sala ao lado de onde não se via nada, sob o pretexto de que ele não tinha jamais sabido ver nada…

Resposta: André Frank era um rapaz encantador que não contradizia Artaud. Ele se contentava em desobedecer o conselho, sendo antes uma brincadeira e, Fortunat Strowski foi muito bem colocado. Durante o entre-ato, me recordo ter encontrado, no camarim de Artaud, Marcel Achard, a quem fez muitos elogios e Stève Passeur, silencioso.

Pergunta: Você tinha pessoalmente atacado a proposta dos Cenci.

Resposta: É sem importância. Houve um eco venenoso, intitulado A Conselheira, num esfregão que se pretendia um jornal humorístico. Na época, eu colava ainda nos meus “press-books” todos os recortes que me enviava Le Courrier de la Presse. Eis ai a coisa:

A senhorita… “parece desde sempre, quer dizer, desde as grandes batalhas surrealistas, dirigir o estado maior das tropas para a defesa de Antonin Artaud. O mesmo se deu nos Folies-Wagram, no ensaio geral dos Cenci, do mesmo Antonin Artaud. Ela solicitou todos os críticos especificando que era a primeira vez que ele o fazia. Quando se representou uma peça minha, disse ela, eu fiquei muda. Tem-se visto sucessivamente repreender Fortunat Strowski, Lugné-Poe, Georges Lê Cardonel, Mario Duliani, se pendurar ao pescoço de Yvon Novy, esculhambar René Richard que – de outro lugar e de acordo com seu hábito – nada tem compreendido e quer repetir a todos como uma lição aprendida: ‘Eu não solicitarei jamais a um crítico que se expresse contra seu sentimento, mas se você tem uma dúvida, eu peço que a mesma se resolva em seu favor.’ No entanto, parecia apenas se fazer de iludida sobre esta espécie de manobra, pois quando – durante o entreato – Jean-Jacques Brissac do Paris-Midi lhe disse: ‘Tu vens beber um tinto?’, ela respondeu: ‘Pensas tu que eu tenha o tempo? Eu recuso a oferta…’ E de pegar pelo braço nosso confrade dizendo sem reagir: ‘Eu te asseguro, caro padrinho, Artaud tem do gênio, para que se soubesse disso, o suficiente que tu o publiques sob tua assinatura. E o querido padrinho acaricia a garupa de sua querida afilhada’, aquiescendo com indulgência. É assim que se fazem as renomadas… Enquanto isso, as pessoas de talento esperam”. Para a pequena história, eu preciso que jamais se tenha chamado padrinho algum de meus confrades…

 Pergunta: Um dia, você soube por Roger Vitrac do internamento de Artaud e foi vê-lo no asilo de Ville-Évrard. Qual foi sua impressão?

Resposta: Atroz. Ele usava o uniforme azul dos internos, vivia no dormitório com os outros enfermos, suas condições de existência pareciam espantáveis. Se retira da sociedade esses que são – ou que crêem ser – um perigo para ela: criminosos, alienados ou simplesmente contestadores. Artaud não era um perigo para os outros. Se os psiquiatras têm acreditado que ele era um perigo para ele mesmo, os inconvenientes que ele tinha podido – eventualmente – sofrer tinham certamente sido menos graves que os desgastes pelos choques do internamento e os sofrimentos suportados durante esse período. Há os doentes que não compreendem que estão em psiquiatria. Ele tinha sempre guardado sua lucidez, à parte algumas idéias fixas, e ele falava normalmente de muitas coisas. Do hospital ele continuava a ser ciente da atualidade. Ele sabia que o exército alemão ocupava Paris e uma grande parte da França. Ele me contava que Hitler fazia essa guerra para lhe tirar das garras dos psiquiatras, e tinha me encarregado de lhe transmitir as cartas contendo muitos planos para atacar Ville-Évrard.

Pergunta: Cartas que evidentemente você não tinha transmitido. O que você fez?

Resposta: Eu as tinha dado à sua mãe.

Pergunta: Em Ville-Évrard, você encontrou outros visitantes?

Resposta: Sua mãe, que era uma mãe admirável, vinha muito regularmente cada semana. Vi também sua irmã. Igualmente Alain Cuny, que eu não conhecia e com quem me lembro de ter falado na volta do asilo. Ele segurava muito ao coração a desgraça de Artaud. Eu me recordo vagamente de uma velha comediante que mancava e se chamava Sabine ou Solange. Um homem também que devia ser Arthur Adamov. Pouco de mundo, em suma. Artaud se lamentava desse abandono. Ele me pedia para ir ver Denoël, a quem tinha escrito numerosas cartas. Eu creio que Denoël amava Artaud. E, todavia, respondeu-lhe que nada podia por ele.

Pergunta: Depois o transferiram a Rodez. Ele lhe escreveu de lá?

Resposta: Tive o sentimento de que em Rodez seu estado melhorou. Suas cartas falavam muito menos dos Iniciados e dos Boêmios. As primeiras eram dos inimigos assanhados, segundo ele, à sua perda e à minha. As segundas, eram dos protetores. Numa de suas últimas cartas, ele anunciava sua intenção de se remeter ao trabalho de escrever um livro sobre Jesus Cristo.

Pergunta: Isso não a surpreende?

Resposta: Absolutamente. Sua mãe era muito devota e ele mesmo tinha recebido uma educação religiosa com muita atenção.

Pergunta: Ele praticava mesmo assiduamente a blasfêmia e, em Rodez mesmo, declarou um pouco mais tarde que rejeitava definitivamente toda idéia de religião.

Resposta: Ele evoluía sobre uma corda rija, balançando na blasfêmia, ora no misticismo. A fronteira é tênue entre os dois, como entre o gênio e a loucura.

Pergunta: Você disse “numa de suas últimas cartas”. Ele parou de lhe escrever?

Resposta: Sim, nos últimos tempos de sua estada em Rodez.

Pergunta: Por quê?

Resposta: Ele me escreveu para pedir que eu lhe enviasse láudano. Eu me recusei em atender seu interesse e, também, com a convicção de que tais envios não lhe seriam entregues. Ele recebeu muito mal minha atitude – “eu caio do cavalo” – e me acusou de traí-lo. Ele acrescentava que, contrariamente àquilo que ele sempre acreditou, eu não era uma amiga verdadeira e que seus verdadeiros amigos lhe forneceriam aquilo da qual ele tinha necessidade. Mais tarde, ele deve ter refletido. Todo o nosso passado se opunha a isso que ele acreditava uma traição de minha parte. Então ele trouxe outra explicação à minha atitude. Ele escreveu à minha mãe: “Vossa filha está morta. A pessoa – ou mais exatamente a aparência de pessoa – que vive convosco é um demônio que tomou seu lugar”. Isso foi sua última carta, e não era para mim que ele tinha endereçado. Ele não podia suportar a idéia de que eu lhe fizesse falta.

Pergunta: Você sempre se recusou em publicar sua correspondência, apesar de diversas solicitações neste sentido.

Resposta: Procedente da Nouvelle Revue Française (Nova Revista Francesa), sim. 

Pergunta: Recusa que você nos permite deplorar. Nada disso que toca a Artaud não é desprendido de interesse. Você pode dizer de suas razões?

Resposta: As cartas que concernem nossa vida privada, o público não deve olhar. Seria odioso de jogar às viúvas gloriosas, tanto mais que o laço que nos unia era ilegítimo, e seria monstruoso fazer um negócio de dinheiro. Quanto às cartas de Ville-Évrard e de Rodez, elas não somam nada a seu prestígio. Tudo isso será destruído depois de minha morte.

Pergunta: Você reviu Artaud quando ele estava de volta a Paris, em 1946?

Resposta: Evidentemente, não: eu estava “morta” e, portanto, não existia mais a seus olhos. Eu não o vi depois de seu falecimento em seu quarto em Ivry. Minha “morte” nos tinha separado, a sua nos tinha juntado. As duas noites que precederam as exéquias, estávamos os três a velar seu cadáver: sua irmã, sua mãe e eu.

Pergunta: Qual é seu sentimento sobre a pretensa “loucura” de Artaud?

Resposta: Eu resisto à idéia de uma doença mental. Ele tinha certa necessidade de cuidados, mas não de internamentos. Fala-se de seus “delírios”. O que posso afirmar é que, mesmo nas horas mais dolorosas, ele abundava de imagens e idéias. Ele dizia sempre das coisas interessantes, imprevistas, originais. Para os psiquiatras, era de delírio patológico. Gostaria mais que se falasse de um verdadeiro delírio poético.

Pergunta: Você rejeita completamente o termo e a idéia de doença?

Resposta: Fala-se demasiadamente das doenças dos criadores. Não se devia falar na medida em que elas são uma influência sobre suas obras. Essa influência não é sempre má. Goya sofreu muito de sua surdez, ao ponto de vir a ser neurastênico. Isso lhe inspirou seus personagens monstruosos e muitos dos amantes de sua obra consideram que é o seu melhor período. Mas é um caso particular. A influência da doença é muito raramente benéfica. A propósito de Maupassant, Leon Daudet escreveu: “Havia nele um grande escritor e um grande doente. O grande doente matou o grande escritor”. Impossível dizer melhor. Artaud, a meus olhos, não cessou jamais de ser profundamente e antes de tudo poeta. Ele está admiravelmente resumido na dedicatória que me fez num de seus livros, a Correspondência com Jacques Rivière, e que você pode ver:

“Há esses que abrem as portas com sua língua. Mas a muralha espessa do mundo pesa sobre eles, e nunca é o lado da abertura. Eles não se lamentam. O mundo está cheio de agonizantes que vivem.
Antonin Artaud”

VIRMAUX, Alain et Odette. Antonin Artaud: Qui êtes-vous?, Lyon: La Manufacture, 1986. Tradução de Wilson Coêlho

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