A noção de corpo-sem-órgãos em Artaud e no Teatro da Crueldade

Artigo sobre Antonin Artaud

19 de março de 2010 Estudos

1) Um homem que inquietou os homens

Antonin Artaud empenhou sua vida para expressar uma visão acerca da “verdadeira e imortal liberdade”. Dedicou seu corpo a um fazer teatral que anunciava a amplitude de se viver livre – um teatro ritual que extraía o indivíduo dos liames que o ancorava, que chocava e proporcionava um desejo de viver. Parece-me que ele mesmo fugia do juízo como se estivesse atolado em um pântano de piche. Completamente imerso nessa armadilha viscosa, Artaud elaborou um plano de purificação para gerar um novo corpo que não era nem humano nem metafísico, e ainda, refratário e autônomo, um corpo de resistência e intensidades: o corpo sem órgãos.

Para Artaud foi o profundo mergulho e entrega em suas experiências que o ajudaram a ver a arte como resistência. Em um primeiro momento sua biografia cheia de vícios, doenças e maus tratos pode parecer penosa, pois Artaud usava seu próprio corpo como laboratório e somente através desse envolvimento é que ele dizia se sentir realizado. Seu fazer teatral, chamado de Teatro da Crueldade, exigia do ator um envolvimento visceral e ritual com a cena. O corpo do ator deveria canalizar e transmitir todas as intensidades da peça, e suas emoções deveriam ser traduzidas e comunicadas de forma precisa ao público. É por causa desse treinamento que Grotowski vai chamar seus atores de atletas afetivos. Segundo Artaud, todo trabalho de expressão, mesmo o mais sutil, pode ser treinado e expressado pelo corpo precisamente, como numa partitura física. “O ator é como um verdadeiro atleta físico, mas com a seguinte correção surpreendente, que ao organismo do atleta corresponde um organismo afetivo análogo e que é paralelo ao outro, que é como o duplo do outro, embora não atue no mesmo plano.” (ARTAUD, 1987: 162) Podemos rever de forma panorâmica o percurso das idéias de Artaud, através de seus textos, para a construção da noção de corpo sem órgãos. Sua produção literária foi vastíssima, onde ele organizou e expôs seus pensamentos através de cartas, peças, estudos e manifestos. Um salto pelos seus mais destacados textos será suficiente para compreendermos todo o processo.

“A vida desorganizada se reforma, reagindo à anarquia caótica imposta aos objetos que se vê.” disse Artaud no Manifesto de Protesto Contra o Abandono da Posição Revolucionária (1936) explicando o movimento surrealista como uma possibilidade de libertação da vida, um estímulo no qual pedras ou qualquer objeto inanimado também ganham vida e formam um mundo concreto. Parece que ele já estava buscando uma forma de afirmar o mundo como lugar da existência e da vida.

Em 1936 Artaud embarca para o México em busca de um povo aborígine que lhe iniciaria no rito do peyote. O que até então era apenas um projeto para encenar A conquista do México transforma-se numa experiência na qual Artaud foi viver esta conquista. As narrações da sua viagem fantástica para o país dos Tarahuramas mostraram todas as impressões que ele teve e que lhe ajudaram a construir sua nova visão de mundo. No capítulo A montanha dos signos temos um modelo de como Artaud busca relacionar o signo ao significado: só na natureza há uma verdadeira adequação entre signos e sentidos, a natureza tem seu discurso próprio. Vales, rochedos, precipícios e trevas, tudo é linguagem e tem significado. A intenção de Artaud, nos dois planos, da obra e da vida, era aliar-se a uma vida natural. Porém, ele se encontrava imerso no regime da sociedade moderna e nesta a cultura dos dominados era a que mais se aproximava desse discurso natural. Artaud parece ter escolhido para si o discurso do subterrâneo e reprimido, repleto de um alto potencial subversivo.

Sua luta era explicitamente contra o ideal cartesiano e o discurso racional. Baseado em sua leitura de Nietzsche, ele defende: “a definição de crueldade declara o próprio Artaud, que toda a arte personifica e acirra as brutalidades subjacentes da vida para recriar a emoção da experiência.” (JAMIELSON, 2007: 21)

Para isso o Teatro da Crueldade inaugura um teatro da não-representação e foge do conceito textocêntrico, falando diretamente ao centro dos sentidos – o sistema nervoso – e não à mente com seus filtros morais. O ator deve se expor, se desnudar da máscara que todos carregamos diariamente. Nesse processo ele fulmina as falsas verdades moralizantes. É um procedimento perigoso do teatro-ritual que se irradia para os espectadores, contaminando a platéia com a catarse demasiado brutal. O ator expõe suas entranhas, a carne e os órgãos e disseca o homem que há nele. No Teatro da Crueldade o ator se reconstrói através da sua atuação, em prol da experiência da vida, o que Grotowski chamou de ato total (GROTOWSKI, 1987:180).

Somente mais tarde, na conclusão do texto de sua peça de rádio Para acabar com o juízo de Deus, Artaud deixa claro que a “Crueldade significa extirpar pelo sangue e através do sangue a Deus, o acidente bestial da anormalidade humana inconsciente, onde quer que se encontre”. Nesta declaração é que ele executa artisticamente essa crueldade, procurando mexer com os ouvintes e gerando as questões que serão abordadas no decorrer desse trabalho:

“O Teatro da Crueldade foi criado a fim de devolver ao teatro uma apaixonada e convulsiva concepção da vida, e é neste sentido de violento rigor e de extrema condensação de elementos cênicos que a crueldade em que se baseia deve ser compreendida. Essa crueldade, que será sangrenta quando necessário, mas não de modo sistemático, pode assim ser identificada com uma espécie de pureza moral severa, que não tem medo de pagar a vida o preço que deve ser pago.” (ARTAUD 1968: 66)

Antes de escrever seu último texto, Para acabar de vez com o juízo de Deus, Artaud escreveu sua experiência e sua posição quanto à figura de Van Gogh. Ele já havia sentido na pele o terror de ser injustiçado pela sociedade – em parte por causa de sua dependência química – e de como era ser mal tratado pela psiquiatria da época, que aplicava-lhe tratamentos à base de eletrochoques, deixando-o fora de si por meses e impedindo qualquer potencial criativo. Artaud defende Van Gogh como um aliado em seu plano. Coloca-o como um mártir do que professa no Teatro da Crueldade.

“Van Gogh o buscou durante toda sua vida com uma singular energia e determinação, e ele não se suicidou num acesso de loucura, de desespero por não conseguir encontrá-lo, mas, pelo contrário, ele havia conseguido, tinha descoberto o que era e quem era quando a consciência coletiva da sociedade, para puni-lo por ter rompido as amarras, o suicidou.” (ARTAUD, 1974: 20)

Depois disto sua vida e sua obra, sempre lado a lado, o lançaram para um desafio final de despossessão do homem de tudo que é humano. Já havia dito em Van Gogh que: “Pois está na lógica anatômica do homem moderno nunca ter podido viver, nunca ter podido pensar em viver, a não ser como possuído” (ARTAUD, 1974: 20). A sua luta contra o niilismo e a misantropia culminou no projeto de Para acabar de vez com o juízo de Deus e, como não poderia ser diferente, na coerente forma como terminou os seus dias.

1.1) Paratexto

Em janeiro de 1947 Antonin Artaud, gravou a peça de rádio Para acabar de cez com o juízo de Deus para ser transmitida na Rádio Francesa a pedido de seu amigo Fernand Puey, diretor de transmissões dramáticas. Porém, esta foi censurada pelo diretor da rádio, M. Porché, no dia anterior da transmissão. Este ato de censura gerou polêmica e serviu para evidenciar ainda mais a obra de Artaud. Porché a expôs para um grupo seleto de cinquenta intelectuais franceses numa transmissão privada com o intuito de avaliá-la. Ao final, a narração gravada por Artaud foi ovacionada por pessoas como Jean Cocteau, René Clair, Paul Éluard, que unanimemente consideraram-na uma obra prima e, apesar da linguagem excêntrica e chocante para a época, era digna de ser transmitida. Porém Porché não se convenceu e manteve sua proibição. Artaud se tornou alvo da mídia, causando uma agitação de respostas e contrarrespostas publicadas por semanas em todos os jornais de Paris. Em menos de um mês Antonin Artaud foi encontrado morto sentado aos pés de sua cama, no quarto do hospital psiquiátrico no qual estava internado após ser diagnosticado com câncer nos intestinos ainda no início do ano. Porém, acredita-se que sua morte prematura tenha sido causada por overdose de cloril, ao qual Artaud se tornara dependente para livra-se de suas dores constantes. Sua peça só foi transmitida trinta anos depois pela rádio.

Artaud já havia deixado claro que sua intenção não era a de criar um objeto artístico belo, mas a de alcançar o corpo do espectador e transformá-lo. Susan Sontag diz que a única realização encenada que Artaud supervisiona pessoalmente, a transmissão radiofônica de 1948, se ajusta perfeitamente às brilhantes receitas para o teatro proposto em seus escritos. (SONTAG 1966: 194) Ele violenta um pensamento e por isso consegue repercussão na sociedade da época.

Como ele mesmo disse nas famosas correspondências com Jacques Rivière: “Nunca escrevi como se fosse para dizer que jamais havia feito nada e nada podia fazer, e que, se fazia algo, em realidade nada fazia. Toda minha obra foi construída sobre o nada e era impossível que não fosse assim…” Questionado por que, então, continuava sua obra, ele responde: “Quem nada tem a dizer, como não se esforçaria em começar a falar e expressar-se? Pois bem, minha debilidade e meu absurdo consistem em querer escrever e expressar-me a qualquer preço! Sou um homem que sofreu muito da mente e por isso tenho o direito de falar.” (ARTAUD, 1973: 37)

2) Para acabar de vez com o juízo de Deus

No dia 28 de novembro do mesmo ano da morte de Artaud, Gilles Deleuze escreveu um texto intitulado Como construir um corpo sem órgãos, estruturado sobre a noção de corpo sem órgãos usada por Artaud na sua peça de rádio. Deleuze divide a peça de Artaud em quatro pontos:

“(1)Ele começa por amaldiçoar o corpo canceroso da América, corpo de guerra e de dinheiro; (2) denuncia os estratos que ele chama de “caca”; (3)a isto opõe o verdadeiro Plano, mesmo que seja o riacho minúsculo dos Tarahumaras, peyote; (4) mas ele conhece também os perigos de uma desestratificação demasiado brutal, imprudente. Artaud não pára de enfrentar tudo isto e aí sucumbe” (DELEUZE, 1980: 202)

O corpo canceroso

kré     Tudo isso deverá            puc te
kré     ser arranjado                   puk te
pek    muito precisamente     li le
kre     numa sucessão                pec ti le
e          fulminante                        kruk
pte

Com esse poema, Artaud abre a transmissão radiofônica. As letras arranjadas ao lado do texto formulado por Artaud são representações dos grunhidos e sons emitidos. Eles exemplificam o que a sentença afirma. Crítico da organização, ele oferecia as letras soltas para que cada um as arrumasse como achasse melhor. Para ele o pensamento manifestava-se em picos e saltos, é com essa linguagem que ele pretendia falar; livre de códigos morais que reprimissem o que deveria ser comunicado. Para Deleuze, desta forma, o agenciamento da mensagem parecia alcançar diretamente o espectador em seu estado mais íntimo e proporcionava uma expressão que auxiliava, ao próprio, romper com um estado letárgico para manifestar suas idéias e desejos em plenitude fulminante. Jaques Derrida identifica essa dinâmica como parte essencial da expressão de Artaud:

“É uma experiência do corpo e da voz que passa pela ordem da linguagem e da gramática. Ele tenta rasgar o seu corpo para subtrair os ladrões, mas ele tentou arrancar a ordem lingüística e gramatical para encontrar uma outra língua que é própria e que passa pela sua garganta. Quando você ouve seus textos, é preciso deixar de lado o sentido e escutar a necessidade de fonemas que chamam uns aos outros. Às vezes, ele escreve uma palavra por causa do som, não por causa do sentido. É ao mesmo tempo tão poético quanto teatral, quanto pictórico.” (DERRIDA, 1997: 4)

Na primeira parte há um grito de protesto que não é apenas ideológico, mas é através desse gesto de revolta que ele cria seu pensamento. Todavia a noção de Artaud sobre o que estava acontecendo também passava necessariamente pelos inegáveis acontecimentos históricos de quando ele concebeu o poema. A maldição de Artaud contra os Estados Unidos da América foi motivada por uma visão de como o recente comportamento americano desenvolveria o câncer de um imperialismo americano em escala global.

Artaud ataca diretamente os acontecimentos históricos da época. O mundo testemunhava o surgimento da Doutrina Truman, a adoção desta política visava conter a expansão do socialismo não pertencente à zona sob influência da União Soviética. A ajuda americana não se limitava ao campo econômico, mas estendia-se ao campo militar, o que deu origem à Guerra Fria. No campo econômico, a Doutrina Truman foi responsável pelo chamado Plano Marshall elaborado pelos Estados Unidos e destinado à recuperação dos países da Europa Ocidental após a Segunda Guerra Mundial. Para conter o avanço soviético, paralelamente ao Plano Marshall, os americanos também investiram pesado em armamentos e artefatos nucleares. Josef Stalin contra-atacou no final do mesmo ano com o anúncio do Plano Molotov, destinado aos países do bloco oriental.

Sentindo-se violentado por essa atitude pós-guerra, Artaud articulou na primeira parte da peça uma denúncia anti-americana, como se os Estados Unidos estivessem desencadeando um processo no qual suas células cancerígenas originam metástases em todo o corpo social. Porém, este fato era apenas o aspecto histórico formal que concedia um caráter atual e consequentemente despertava interesse da mídia sobre sua obra. Dentro dela estava uma noção que não se reduzia a uma denúncia temporal, Artaud foi aos poucos oferecendo uma possibilidade de reestruturação do modo de ver o mundo. Ainda na primeira parte da peça ele identifica um sistema vigente de formação da vida que joga com a falsidade e a verdade, substituindo uma pela outra, criando um ambiente artificial do homem em relação à vida.

A primeira denúncia é sobre uma possível prática das escolas públicas norte-americanas de recolher amostras de sêmen dos alunos para futuramente serem utilizadas em gerações de proveta, a fim de construir um exército que defenda e mantenha pela força a superioridade dos “produtos” americanos. O que ele chama primeiramente de produto está associado à própria ação bizarra da inseminação artificial para substituir a natureza logo na primeira ação da vida que é a concepção. “É necessário, por todos os meios de atividade humana, substituir a natureza onde esta possa ser substituída”. A artificialidade para Artaud é um sinônimo da geração de atividades que construam todo um sistema invisível sintético que preencha todas as ações do homem. Um reino artificial que, por estar presente desde a origem e em cada momento da vida, faça o homem ceder e aceite isto como realidade. Com esta artimanha, o “esperma”, como ele chama o homem artificial, tomará para si a verdade da necessidade desta supremacia e por si só vai assumir o compromisso de produzir e defender a vida sintética através da força da guerra. Artaud deixa bem claro sua visão de uma natureza inocente que não tem condições de resistir ao poder da guerra e que tem medo dela. O segundo inimigo do esperma, do homem artificial, é a concorrência. A guerra para Artaud é um procedimento de livre concorrência e manutenção econômica dos Estados Unidos. A abertura de mais concorrência corresponde à elevação do número de inimigos. Ele cita especialmente o maior concorrente aos Estados Unidos dos anos de chumbo: a Rússia de Stalin, que da mesma forma sustenta seus braços armados na disputada concorrência global.

Outro procedimento visto por Artaud é o distanciamento dos Estados Unidos do campo de batalha. As máquinas e bombas vão sempre na frente, e sempre fora de seu território, fabricar guerras que são controladas à distância. O ônus da guerra é minimizado nos Estados Unidos e o corpo americano canonizado. A morte de um soldado americano vale mais que o extermínio de toda uma cidade. O indivíduo americano é especial, diferente do corpo coletivo inimigo.

Ao fim da primeira parte, ao dizer sua preferência, Artaud escolhe como exemplo o povo dos Taraumaras. Na sua ida ao México, Artaud viveu uma experiência intensa com o peyote – um alucinogênico de uso ritual indígena, que dentro da cerimônia conduz a uma experiência de descompromisso com as amarras do mundo e uma vivência com o que há de íntimo no ser. “Afinal, eu não viera a esse fundo de montanha dos índios Taraumaras para buscar lembranças e pinturas. Já sofrera o bastante, parece-me, para ganhar em troca um pouco de realidade” (ARTAUD, 1974: 17). Com base nessas viagens Artaud descobre a independência do corpo; a impostura da moral e da religião e como acabar com o julgamento. A partir daí ele passa a formular um teatro ritual, com o qual ele possa promover uma despossessão do juízo. Blanchot descreve este processo como uma efetiva promoção da vida:

“por meio de um aprofundamento seguro e doloroso, chega a inverter os termos desse movimento e a colocar em primeiro lugar a despossessão, e não diretamente a totalidade imediata da qual essa despossessão aparecia no começo como a simples falta. O primeiro não é a plenitude do ser, se não a fissura, a erosão e o desgarramento, intermitência e a privação corrosiva; o ser não é o ser, se não essa falta do ser, falta vivente que faz que a vida seja inacabada, inapreensível e inexpressável, a não ser pelo grito de uma feroz abstinência… Mas ao mesmo tempo, o combate é também o que Artaud quer levar a cabo, pois nessa luta não renuncia o que chama de vida (esse broto, essa vivacidade fulgurante), cuja perda não pode tolerar, que quer unir a seu pensamento; que, por uma obstinação grandiosa e terrível, se nega em absoluto a distinguir do pensamento, quando este não é outra coisa que a erosão dessa vida, a intimidade de ruptura e de perdição na qual não há vida nem pensamento, se não o suplício de uma falta fundamental pela qual se afirma já a exigência de uma negação mais decisiva.” (BLANCHOT, 1984: 9)

Os extratos da “caca”

“Onde cheira à merda/ cheira a ser”. O que parece ser uma escatologia verbal, na verdade, é o jeito de Artaud chamar atenção para as escolhas humanas. Ele distingue dois elementos básicos para o homem: o osso e a carne. A carne é merda, o osso é a liberdade do homem. O homem escolhe deixar de viver livre para existir como defecante, ou seja, como um ser distinto do resto da natureza e do mundo – o que Artaud reconhece como oposto à vida. Para Artaud, o homem escolheu separar-se do resto do mundo para formar o seu próprio mundo com base numa parte de uma idéia de mundo. Essa escolha é justificada exatamente pela perda da sensação de pertencimento do mundo e pela busca da organização perfeita do então recente ser humano. Criou-se para isso um mundo invisível que completaria a falta da vida, do mundo, do osso. Instaurou-se o juízo de Deus como organização deste mundo invisível. Mas agora ele rebela-se contra esse juízo e contra o mundo invisível. “Quero dizer que descobri a maneira de acabar com esse macaco de uma vez por todas e já que ninguém acredita mais em Deus, todos acreditam cada vez mais no homem. Assim, agora é preciso emascular o homem.” (ARTAUD, 1974: 103)

O verdadeiro plano

A tarefa demasiado dura deve ser conquistada pelo sacrifício do sentido. Baseado em Nietzsche, Artaud desconstrói tudo que é humano demasiadamente humano para construir um novo plano, um plano de imanência como diz Deleuze, um ato total que, segundo ele, guarda o poder de desvelar o mundo, mas não de forma metafísica e dialética. Artaud quer descobrir o mundo no próprio mundo, a vida na própria vida. Disse: “O homem, quando não é reprimido, é um animal erótico, há nele um frêmito inspirado, uma espécie de pulsação que produz inumeráveis animais os quais são formas que os antigos povos terrestres universalmente atribuíam a Deus.” (ARTAUD, 1974: 102) Não é a busca por um modelo a ser copiado para se viver, é o reconhecimento de que não existe um modelo e tudo que existe é singular dentro de um vasto infinito de multiplicidade de formas existentes.

A prudência

“Sob qualquer ângulo o Sr. não passa de um maluco, um doido varrido.” Diz o interlocutor fictício da peça de Artaud. Durante toda a vida, Artaud aponta para os possíveis perigos da criação em si de um corpo sem órgãos. Para desorganizar o corpo é preciso aniquilar o juízo e substituí-lo por um fluxo de consciência. Isto que seria liberdade somente o é para quem a tem, os demais, seguidores de Deus e do homem, vêem-na como uma loucura. Artaud demonstra, em suas preocupações, saber da tênue linha que separa o terreno da razão e da loucura. Mas ele não quer o órgão da razão, então o desfaz e mergulha na natureza, analizando-se e entregue aos fluxos da vida. A prudência para Artaud é caminhar no fio da navalha, acabar de vez com o juízo de Deus, acabar com o órgão, mas não com o corpo, este, enquanto parte, deve seguir seu dever cívico e ético. Participar do que ele chama de plano verdadeiro, saindo dos extratos da caca, mas retornando a este enquanto ele existir, para miná-lo por dentro. Observando a prudência, evita-se a insanidade de ser algo que não pode ser tolerado nos extratos da caca; evita-se deixar de existir em prol de “existir mais”.

3) Considerações finais

Artaud conclui em sua obra-vida um novo plano antissistema. Ele anuncia a importância da noção do corpo sem órgãos. Uma dilatação ilimitada da existência do ser. Uma forma de vida infinita num plano sem dentro nem fora. Um plano de realidade onde qualquer linguagem e todo signo é nu, deve ser vivido, presentificado e correspondente ao mundo como tal. Nas palavras de Artaud:

“Colocando-o de novo, pela última vez, na mesa de autópsia para refazer sua anatomia.
Eu digo, para refazer sua anatomia.
O homem é enfermo porque é mal construído. É preciso desnudá-lo para raspar esse animalúnculo que o corrói
mortalmente,
deus
e juntamente com deus
os seus órgãos
Pois, amarrem-me se quiserem,
mas não existe coisa mais inútil que um órgão.
Quando tiverem
Conseguido fazer um corpo sem órgãos,
então o terão libertado dos seus automatismos
e devolvido sua verdadeira liberdade.
Então o terão ensinado a dançar às avessas
como no delírio dos bailes populares
e esse avesso será
seu verdadeiro lugar.”

O que Artaud propõe ao final não segue a lógica do dominado, é uma revolução ontológica, não é o avesso da ordem, nem a simples negação da mesma. Ele identifica nas religiões – principalmente abraânicas, na codificação jurídica – principalmente na tradição de Teodósio e Justiniano, e na formação social – principalmente européia; uma formação antropocêntrica do homem não coerente, um embuste com falhas e buracos tapados para que o sistema não caia. As poucas saídas como a loucura e o ritual são marginalizadas e socialmente impedidas de se desenvolverem. Artaud desiste de buscar uma saída, um buraco de escape, ele explode, ou melhor, implode o homem, e com ele todos os seus sistemas. É pelo devir animal, devir “micróbio” – como ele diz – que os órgãos voltam a servir ao homem e não o contrário. Os órgãos existem, mas em função de suas tarefas momentâneas, adquiridas durante seus diferentes papéis em cada rito e extintos, reabsorvidos, dispersos, logo após sua utilização. Ele o exemplifica através do erotismo imanente, onde suas zonas são determinadas pelos afetos. Todas as noções de Artaud foram completamente baseadas em experiências e esse pragmatismo auxiliou-o a manter-se sempre conectado com o mundo. Segundo suas últimas cartas ele confiava ao corpo sem órgãos o prazer de viver, não por dar sentido ou valor à vida, esta já se justificava por ela mesma. Para Artaud a vida valia por ela mesma. Ainda mais, em seu processo de esclarecimento, Artaud percebeu que o mais importante é não desistir de lutar contra qualquer coisa que retire da vida este valor, depositando-o em outro lugar – num mundo ideal ou espiritual – para depois prometer ou vender a realização de alcançar a única coisa que nunca nos falta: a própria vida.

Referências bibliográficas:

ARTAUD, Antonin. Correspondance avec Jacques Rivière, in Oeuvres Completes, Tome I. Paris: Éditions Gallimard, 1973.

ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1987.

ARTAUD, Antonin Pour finir avec le jugement Dieu . In Oeuvres Completes, tomo XIII. Paris: Éditions Galimard, 1974.

ARTAUD, Antonin. Taraumaras, in Oeuvres Completes, tomo IX. Paris: Éditions Gallimard, 1974.

ARTAUD, Antonin. The Theatre of Cruelty, in The Theory of the Modern Stage. Ed. Eric Bentley. Penguin, 1968.

ARTAUD, Antonin, Van Gogh: Le Suicide de la société. In Oeuvres Completes, tomo XIII. Paris: Éditions Galimard, 1974.

BLANCHOT, Maurice. Artaud, in O livro por vir. Lisboa: Ed. Relógio D’água, 1984.

DELEUZE, Gilles. Mille Plateaux – capitalisme et schizophrénie, vol. 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.

DERRIDA, Jacques. Entretien avec Jacques Derrida par Pierre Barbancey in Regards. 27. Septembre, 1997.

GROTOWISKI, Jerzy. Em busca de um teatro pobre. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1987.

JAMIESON, Lee. Antonin Artaud: From Theory to Practice. Greenwich Exchange, 2007

SONTAG, Susan. Mahat/ Sade/ Artaud, in Against interpretation and other Essays. New York: Ed. Farrar, Straus & Giroux, 1966.

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