Autor Dinah Cesare

O real e sua esfera de criação

10 de dezembro de 2008 Críticas
Ator: Felipe Rocha. Foto: divulgação.

O teatro contemporâneo se configura cada vez mais por espetáculos que são difíceis de nomear, ou mesmo ajuizar. Ainda mais, porque pensar o contemporâneo como um desdobramento meramente cronológico do moderno implica em não reconhecer a questão de suas especificidades como, por exemplo, o fato de que rupturas formais não são mais tão evidentes como eram nas vanguardas, onde norma e desvio poderiam ser critérios mais pertinentes. Do modo como eu percebo, o espetáculo Ele precisa começar, com dramaturgia e atuação de Felipe Rocha, conversa com este pensamento na medida em que sua particularidade, ou seja, o lugar mais original no qual somos afetados é tão preciso quanto fugidio.

Fisionomia elaborada pela linguagem

10 de dezembro de 2008 Críticas

O monólogo Reino dos bichos e dos animais é o meu nome é uma experiência poética encenada. A inspiração e a dramaturgia resultam do livro organizado por Viviane Mosé sobre a obra textual de Stela do Patrocínio, interna por mais de 20 anos na Colônia psiquiátrica Juliano Moreira. Mosé elaborou uma transcrição poética das falas de Stela e a encenação parece ser a fisionomia dessas palavras, ou seja, sua transformação em criação de mundo, de imaginário lingüístico. A voz de Stela que surge em off logo no início do espetáculo, a meu ver, é elemento preciso dessa intenção da palavra como forjadora de materialidade.

A força verborrágica do texto é traduzida por uma cena desdramatizada na qual as palavras parecem compor toda a fisionomia, ou seja, estão aparentes, compõem uma tecitura que cria o imaginário do mundo de Stela na medida em que o nomeia. A direção de Haroldo Rego não propõe a construção de qualquer noção de personagem, mas cria uma zona de penumbra. Se a linguagem nos coloca no mundo (dá nome as coisas mesmo antes de sabermos delas), a abrangência de sensações no espetáculo se dá por meio de uma região de “quase luminosidade” onde existe uma medida sutil de revelação e apagamento.

A operação cênico-dramatúrgica não perde de vista o fato de que parte de uma escrita poética, de uma linguagem que é pura intermediação, onde não se pode aderir a nenhuma noção de verdade, e sim a uma percepção de possibilidades de verdades.

O trabalho da atriz Raquel Rocha está em sintonia com a inquietação em torno da noção de presença no teatro. Raquel não constrói a personagem Stela, mas dá a ver uma criatura que contém a consciência de ser observada, ao mesmo tempo em que consegue estabelecer com o espectador o acordo tácito que nos faz acreditar. Essa experiência de presença é algo que aponta, que tem característica de linguagem na medida em que nomeia Stela por meio de uma ressonância, assim como quando dizemos o nome de uma pessoa querida e acontece algo como saudade. Não vemos a loucura encenada, mas uma mulher com sua lucidez destroçada.

A cenografia também é um dizer, porque organiza o espaço de comunhão e sacrifício da mesa do altar, ou seja, projeta condições físicas e psíquicas da vida de Stela. Não se trata aqui de pensar os elementos cenográficos a partir de nenhuma semiologia que designe uma relação de signos. A simplicidade dos objetos como oferendas de comunhão criam uma zona marginal de sentido, como por exemplo, a possibilidade de um tom grotesco do fantoche e a noção de que o tempo do relógio – cronológico – quase nada tem a nos dizer. A temporalidade da cena oferece certas suspensões que são como um vão, um espaço para a participação do espectador. Voltamos à ação de comungar (cena/espectador) que a cenografia materializa. No lugar central da mesa, normalmente reservado ao cálice sagrado, alguns papéis com um apontamento biográfico de Stela. Ao final do espetáculo, os papéis lançados para o alto parecem sinalizar a condição pulverizada do próprio psiquismo que nos lembra da nossa condição de banidos, de sem-lugar, de desenturmados.

Identidade em questão

24 de novembro de 2008 Críticas
Atores: Lucas Gouvea e Leonardo Corajo. Foto: divulgação.

A particularidade do espetáculo Manifesto Ciborgue, dirigido por Joelson Gusson, parece ser a de ser constituído por uma tensão sutil entre elementos mais propriamente formais, nos quais aparecem um teor crítico, e instâncias subjetivas que desmontam as imposições dessa crítica. A meu ver, a sensação para o espectador é a de que não existe um posicionamento definido, surgindo condições de possibilidade de quebrar com sentidos pré-fixados.

Estrutura cênica estrangeira

15 de novembro de 2008 Críticas
Ator: Daniel Kristensen. Foto: divulgação.

O espetáculo Passagens, dirigido por Diego de Angeli e encenado pela Pangéia Cia. de Teatro, parece ser constituído por uma idéia própria da experiência de arte que é a de promover condições de conhecer o mundo pelo que chega a aparecer dele para nós. É claro que isto dito assim poderia ser considerado como algo bastante abstrato e que concerne a toda e qualquer iniciativa artística. Porém, o que acontece aqui, além do fato de que a visualidade é componente forte no espetáculo, é que as possibilidades de aparecer algo referente ao mundo estão explicitamente comprometidas pelas circunstâncias deste aparecimento que, por se oferecerem mais gravemente por meio de estruturas cênicas alheias, acabam por não dar conta do mundo que querem revelar.

Celebração secularizada

15 de outubro de 2008 Críticas
Ator: Daniel Schenker. Foto: divulgação.

O monólogo Pedra fria dirigido por Celina Sodré e com atuação de Daniel Schenker configura, a meu ver, um lugar bastante preciso da pesquisa cênica desenvolvida pela diretora, a partir do trabalho de Jerzy Grotowski. A ação da história é imprimir no tempo as suas tensões; portanto, o trabalho sobre os mestres do teatro não pode ser o de seguir modelos, mas de investigar suas idéias. E no caso de Grotowski, uma das mais importantes noções que iluminam a contemporaneidade parece dizer respeito ao lugar do paradoxo na experiência de arte. Acredito que em Pedra fria o trabalho que impulsiona a pesquisa de Celina Sodré esteja traduzido na materialização sutil da simultaneidade entre vida e morte.

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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