O real e sua esfera de criação

Crítica da peça Ele precisa começar

10 de dezembro de 2008 Críticas
Ator: Felipe Rocha. Foto: divulgação.

O teatro contemporâneo se configura cada vez mais por espetáculos que são difíceis de nomear, ou mesmo ajuizar. Ainda mais, porque pensar o contemporâneo como um desdobramento meramente cronológico do moderno implica em não reconhecer a questão de suas especificidades como, por exemplo, o fato de que rupturas formais não são mais tão evidentes como eram nas vanguardas, onde norma e desvio poderiam ser critérios mais pertinentes. Do modo como eu percebo, o espetáculo Ele precisa começar, com dramaturgia e atuação de Felipe Rocha, conversa com este pensamento na medida em que sua particularidade, ou seja, o lugar mais original no qual somos afetados é tão preciso quanto fugidio.

Tentarei começar pela precisão, mas é possível que minha escrita seja como a minha percepção que dança sempre entre extremos. O espetáculo coloca o espectador na própria iminência do seu título. Ficamos lá em cadeiras sobre praticáveis que sinalizam nossa condição de espectadores de uma cena que nos convida ao íntimo, porém, uma intimidade distante por meio da inspiração retrô. A primeira fala de Felipe, sobre sua demora em começar a função – o que poderia ser algo da esfera do cotidiano, quase anódina – é dita de modo bastante teatral nos remetendo novamente à condição do artificial, ou seja, a da criação.

A dramaturgia dá a ver os processos de escrita de um autor que está em um quarto de hotel barato. Felipe materializa a escritura, ao mesmo tempo em que constrói para o espectador o duplo do imaginário da cena propriamente dita. O espetáculo não é algo que simplesmente pode ser assistido, como também um livro não é apenas lido, pois escapa a uma objetividade porque se configura para cada um como uma experiência que não coincide com a experiência do outro. Deste modo, abre-se a questão da autoria da obra de arte, compreendida pelo gesto de escolha poética do artista como instaurador de sentidos que se desdobram num contexto maior de possibilidades que incluem o público, a história e o próprio mercado. Abre-se uma esfera de ressonância que inclui temporalidades distintas em simultaneidade. Nessa esfera de abertura a encenação propõe a percepção de um “entre” que o espectador começa a nomear, ou seja, se pode falar de personagem (escritor e Fátima), de ator (Felipe), de escrita (dramaturgia e romance), de ficção (teatro e literatura) e de realidade (espaço cênico). O “entre” se configura na medida em que o que nomeamos nos foi apresentado como algo que ao mesmo tempo está presente e oculto.

Essa tensão entre revelação e ocultamento está engendrada tanto na dramaturgia quanto na cena. Nessa última, o ator constrói certas partituras corporais, por assim dizer, que promovem uma mudança de nível de sentido, ou seja, a direção e a extensão do que podia ser percebido dá um salto para um lugar não programado e nos surpreende. Acredito que esse elemento seja uma particularidade do trabalho que Felipe Rocha desenvolve e que pude perceber ao longo de sua transposição da dança para o teatro. Desde o espetáculo Ensaio.Hamlet com a Companhia dos Atores, Felipe dá a ver um esmaecimento sutil da dança que parece encontrar em Ele precisa começar uma espécie de essencialização que não deixa sobras. Sua gestualidade é precisa e nos remete ao etéreo, ao impalpável que, ao mesmo tempo, é elemento do mundo.

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