Estrutura cênica estrangeira
Crítica da peça Passagens
O espetáculo Passagens, dirigido por Diego de Angeli e encenado pela Pangéia Cia. de Teatro, parece ser constituído por uma idéia própria da experiência de arte que é a de promover condições de conhecer o mundo pelo que chega a aparecer dele para nós. É claro que isto dito assim poderia ser considerado como algo bastante abstrato e que concerne a toda e qualquer iniciativa artística. Porém, o que acontece aqui, além do fato de que a visualidade é componente forte no espetáculo, é que as possibilidades de aparecer algo referente ao mundo estão explicitamente comprometidas pelas circunstâncias deste aparecimento que, por se oferecerem mais gravemente por meio de estruturas cênicas alheias, acabam por não dar conta do mundo que querem revelar.
Quando me refiro a estruturas alheias estou tentando falar a respeito da fragilidade no espetáculo de uma instância refinada da linguagem teatral, que trabalha sobre a visualidade – o teatro é o lugar de onde se vê – e, ao mesmo tempo, nos remete para uma outra cena. Equilíbrio tênue entre o visível e o invisível. Porém, o invisível precisa estar presente na materialidade visível que é composta pelos atores, cenário, figurino, luz, enfim, todos os elementos mais propriamente cênicos. Quando esta relação está fragilizada nos componentes da cena, ou seja, a potência entre o que se vê e o que não se vê (intenções, psiquismo) é problemática, temos a dificuldade de construir imagens para fora do lugar teatral. E o espectador fica mais preso à materialidade da cena propriamente dita (alienada de si, pois separada de seu virtual psiquismo) e com menos possibilidades de constituir novos sentidos.
Passagens é estruturado por quadros que mostram em movimento cenas do cotidiano da cidade. O foco é sobre os transeuntes, sobre o efêmero. Isto constitui uma materialidade que tenta suspender instantes como o de uma máquina fotográfica, dando a ver as tensões que estão em jogo nos acontecimentos simples da vida. O espetáculo é um tecido de fragmentos autônomos, “um trecho entre reticências”, que o espectador pode costurar conforme sua própria percepção. Porém, alguns desses fragmentos são narrativas que nem sempre possibilitam vôos mais altos, como é o caso daquele do chapéu ao vento ou o da moça que deixa sua mala. A cena da oriental poderia ser interessante por sua descontextualização se não fosse um tipo de comentário/lugar-comum ao qual já fomos acostumados e que só é capaz de produzir um riso de entretenimento.
Em alguns momentos, o psiquismo das tensões presentes nos acontecimentos é revelado por partituras atoriais que promovem mudanças de nível na recepção, como, por exemplo, em certas posturas de Gabriela Carneiro da Cunha que se assemelham a fotografias de posições corporais escultóricas. O que parece, a meu ver, faltar neste exemplo é uma imbricação maior entre a plasticidade do corpo e um lugar mais íntimo da atriz, pois suas partituras se pautam por um certo excesso de dramaticidade. O ator Daniel Kristensen aponta uma potência corporal que parece estar neste mesmo sentido, ou seja, promove uma experiência para o espectador a partir de sua presença e desenho espacial, porém, isso se dá ainda com um certo embaçamento. Acredito que este mesmo problema aconteça em cenas como a da coreografia com os guarda-chuvas ou a do conhecido desfile de figuras que podem ser vistas através das janelas ou de portas.
Há momentos no trabalho atorial em que a imbricações entre as ações e experiências psíquicas estão presentes. Um belo exemplo é a cena que mostra os personagens de uma tarde ou de uma noite solitária em um bar que oferece lampejos de indiferença, de morbidez e de uma espécie de mediocridade humana. Esta cena me fez lembrar dos quadros do pintor norte-americano Edward Hopper, criador de uma realidade cotidiana dilacerante na aparente calmaria das suas imagens.
Esta característica de alheio (estrangeiro, de outrem) presente no trabalho atorial parece ter origem, em certa medida, na proposta cenográfica. O cenário que toma conta do palco (fundo e chão) é inspirado na técnica do chroma key que é utilizada em vídeos quando se deseja substituir o fundo por um outro, ou mesmo por uma foto. O problema é que materialmente esta idéia não se realiza, pela falta de plena frontalidade, de distância, de dimensão e de coxias adequadas que não deixem os atores à mostra. Estas condições de realização (que tornam o chroma key elemento estrangeiro, alheio) acabam por provocar o efeito contrário ao esperado, e o que prevalece visualmente para o espectador é o aqui e agora. Neste sentido, pela dificuldade da cenografia não remeter à condição de infinito, o que poderia realizar esta demanda fica a cargo dos atores. Ficam mais explícitas as dificuldades técnicas, as frágeis referências pessoais, ao mesmo tempo em que deixa transparecer um desejo de que isto não seja assim.
Por esta mesma perspectiva, a fala do ator que se refere à materialidade, no início do espetáculo, como algo que está presente sem querer passar por outra coisa, que deve sugerir um infinito de possibilidades por meio de sua simplicidade e efeito de real, é interessante no sentido que quer provocar um estado anti-ilusionista, oposto aos mecanismos mais tradicionais de teatro, mas ao mesmo tempo aberto à imaginação. Porém, a fala é um tanto recitada e dramática e contraria o que parece ser a sua intenção, nos deixa mais pobres de sentidos desconhecidos.
A constituição material da idéia do chroma key é promissora e, do modo como entendo, este é um pensamento material que o diretor precisaria ter traduzido em outros termos para encontrar a forma que pudesse caber nas condições de produção. Isto significa pensar produção engajada nos procedimentos artísticos e, portanto, negociações que poderiam dar forma ao pensamento filosófico do espetáculo. Indicações desta possibilidade podem ser vistas na imagem da mulher de malha verde com um vestido e também no momento inicial do caleidoscópio de cores suspenso formado pelos atores, antes de propriamente se movimentarem para “passar”, na cena com a canção de Edith Piaf.