Memória sem sujeito
Crítica da peça Tentativas contra a vida dela – 17 situações para o teatro, de Martin Crimp
“Todas as mensagens foram apagadas” é o título da primeira das 17 situações para o teatro. Poucas passagens ecoam de forma tão atemorizante para a contemporaneidade como este ruído de ausência. Na era dos terabytes, das milhares de fotos domésticas arquivadas com a esperança de registrar todos os dias de nossas vidas; raros são os textos que peitam a aquiescência da narração, tal como a peça Tentativas contra a vida dela, de Martin Crimp, dirigida por Felipe Vidal, em cartaz no Espaço Cultural Municipal Sérgio Porto.
A incrível atualidade da peça está exatamente neste combate entre a necessidade de uma ligação cronológico-narrativa dos fatos e a liberdade de diferentes formas de expressão que nos levam a compor a ideia da peça. Esta é uma tensão inerente à discussão sobre o próprio fazer teatral. No texto de Crimp não há personagens, somente travessões. A forma como Felipe Vidal escolheu transportá-los para a cena não parece ter sido por apostar na força da forma e do que esta é capaz de fato, mas por como estes personagens poderiam deixar, através de seus afetos, traços na memória do espectador. São oito atores – Gabriela Carneiro da Cunha, Lucas Gouvêa, Luciana Fróes, Carol Condé, Marcela Moura, Sérgio Medeiros, Renato Carrera e José Karini – que se revezam para interpretar papéis aparentemente desconexos nas diferentes situações – aparentemente, pois por mais distintos que sejam os personagens, haverá sempre alguma conexão dada pelo fato de terem a mesma voz, o mesmo rosto, por serem encenados pelo mesmo ator. Uma relação que, mesmo sendo desconhecida, acontece, não obstante na imaginação do espectador. Referimo-nos aqui à teoria da imaginação conforme concebida por Spinoza, como um gênero de conhecimento que articula os traços, marcas ou afetos produzidos pela percepção do indivíduo no presente, ou seja, levando em conta a memória como hábito fundador de ações futuras.
É assim que a peça vai se compondo em nossas cabeças, como marcas, mas não como lembranças. Afinal, como é possível preservar a lembrança de algo sempre ausente? A efemeridade dos atos compõe um corpo afetivo para a peça, corpo vivo. Sem centro das atenções, as dezessete situações estão protegidas de um juízo de valor histórico. Elas não valem nada para além delas, cada cena vale por si mesma. “Não é uma imagem justa, é justo uma imagem” (GODARD: 1962). No sistema construído pelas situações, os traços que perseveram são provenientes da existência de relações finitas das cenas com forças internas que as afetam.
Nenhuma dessa forças, no entanto, se torna hegemônica a ponto de tomar para si um lugar de identidade. Ponto delicado da formação deste corpus dramatis, a ausência de identidade não é uma falta, senão condição de sua existência. Fixando uma identidade, encontrando a tal Any, todo um mundo de possibilidades se reduziria; neste caso, a identificação não traria nada de novo. A ausência dela é o que, justamente, força nossa atenção a vasculhar cada destroço de sua múltipla personalidade demolida, buscando uma pista que só nos leva a mais outra falsária. Cada situação deixa no palco seu material cênico como rastro, que supostamente nos levaria a uma resposta, peças desconexas de um quebra cabeça sem figura e insolúvel.
A ausência, na peça, é um devir-falsário. Mas é conveniente lembrar que este devir não é uma identidade ou representação. Gilles Deleuze define, em Mil Platôs, que o devir está dentro de uma zona de indiscernibilidade, na qual podemos sentir, mas não encontrar a personagem, segundo o filósofo é um avizinhamento. O devir-falsário é diferente da identidade falsa, é uma zona sem discernimento entre a personagem presente e sua ausência total.
Assim, temos um eixo sobre o qual podemos deslocar nossa atenção, mas sem fixar nossa certeza em nenhum porto seguro. Qualquer possível identidade que dá as caras na peça é logo posta em suspeição: quer seja pelo artifício do cenário de Aurora dos Campos – que, composto de longas faixas de papel branco, estendidas verticalmente, recebem a projeção de imagens (de Joaquim Castro e Beto Aguirra) das possíveis pistas que, pela disposição das telas, aparecem sempre com uma distorção, uma quebra, uma ruptura, que inviabiliza a definição da solidez ou da veracidade daquela pista –; quer seja pela sobreposição de diálogos – que passam as afirmações de uma boca à outra rompendo com a individualidade, tornando as frases coletivas e, mais do que isso, sem dono. É o caso da situação 16 (Pornô), na qual aquela que temos quase certeza de ser a protagonista tem sua imagem capturada por uma câmera no palco e logo transmitida para este sistema de telas de papel, verdadeiros platôs desestratificantes. A certeza se esvai e com ela qualquer possibilidade do encontro fatal. Essa parece ser mais uma crítica feroz da dramaturgia ao discurso sólido de quem se pretende bem resolvido e assertivo na vida tão esquizofrênica dos nossos tempos. Um drama-da-vida, segundo Sarrazac:
“O drama-da-vida não se limita àquilo que Sófocles chama de “um dia fatal”, ele arruína as unidades de tempo, de lugar, e mesmo de ação e sua extensão cobre toda uma vida. Para abarcar uma existência inteira, o drama-da-vida recorre à retrospecção – até agora privilégio do épico – e a processos de montagem. De fato, o drama-da-vida marca uma mudança profunda na medida do drama, ou seja, na sua extensão, mas também no seu ritmo interno.” (SARRAZAC: 2008)
Sendo assim, a personagem não tem uma identidade verídica, ela é essencialmente falsa. São as potências do falso que alimentam a existência da personagem. Trabalhando com sua própria força, cada situação é autônoma e determina sua própria potência. Para Any, como falsária, não há uma única verdade possível, existem infinitas forças que se relacionam e todas podem vir à tona a qualquer momento para apresentá-la – essa é a potência do falso.
Mesmo as situações, aparentemente fechadas, são polivalentes. Elas desempenham diferentes funções. No percurso da peça, elas se entrecruzam, sendo suas intercessões vórtices de forças. Cada linha de pensamento que surge de uma situação se conecta e reconecta com tantas outras que existem em seu caminho. Cada ponto de encontro é uma possibilidade. As situações são apenas determinações de um conjunto de pontos nas linhas que as perpassam. A situação é um parêntese na relação das forças. “( )”. A cada momento é uma força que se sobressai e redireciona as relações dentro da situação, recriando-a. Uma situação é sempre múltipla por possuir múltiplas situações. Por isso as situações não possuem uma identidade em si. É a força da relação do conjunto que determina o papel que elas assumem a cada instante. As tentativas são, pois, relações. O fato de as relações serem transitórias permite que as tentativas não fiquem aprisionadas, determinadas ou apegadas a uma única relação.
Estar em relação, no entanto, deixa de subjugar a situação à narração, preserva a personagem sem identidade fixa, mas ainda como uma personagem. Sendo, justamente, o fluxo do determinado ao indeterminado o que pressupõe a possibilidade de mover-se e de agir dessa personagem.
Nesse âmbito, Felipe Vidal lançou mão de mais um dispositivo que nos dá uma falsa pista de quem seja Any. A atriz Gabriela Carneiro da Cunha é quem mais está ligada à representação da personagem ausente, sendo escalada para o papel nas situações 2, 5, 6 (em off), 7, 9, 11, 14, 16 e 17, mesmo que sua conexão com Any seja sempre em um discurso na terceira pessoa. Esta escolha do diretor mantém uma referência ao sistema narrativo, cria uma leve protagonista e preserva um grau de lógica linear – no nível mais sutil – para que o sistema não se desmantele. Um sujeito livre de sujeição. “Talvez esteja aí o segredo: fazer existir, não julgar” (DELEUZE, 1997: 153). Alargando o núcleo do ser-personagem para o todo, o ser-peça. A prudência que mantém coesas todas as situações está justamente na perseverança desse ser. A liberdade de escolhas temperadas pela prudência preserva as dezessetes situações como fonte de potência de agir da personagem.
Para amarrar todas as situações, Felipe Vidal conserva um ritmo que rege a peça através do humor, este particular ao seu estilo. O humor cáustico, crítico, devasso, rude, delicado instaura em todas as situações, ainda nas mais tensas, uma sensação comum, um resquício de sentimento que vai se reconectando e produzindo uma coerência. A prudência retorna como a manutenção desse ritmo que se realiza pela tomada da consciência, uma consciência transitiva para alcançarmos o espaço mais largo da peça.
Tentativas contra a vida dela, como um todo que nos afeta, num nível que não é o do tempo e, deixando seu acúmulo de rastros na memória, forma uma impressão unívoca: este é o protagonista, personagem-peça sem identidade e ausente.
Referências bibliográficas
DELEUZE, G. A imagem tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2005.
DELEUZE, Gilles. Mille Plateaux – capitalisme et schizophrénie, vol. 2. Paris: Les Éditions de Minuit, 1980.
GODARD, J-L. Cahiers du Cinéma n° 138, décembre 1962.
SARRAZAC, Jean- Pierre. A reprise (resposta ao pós-dramático); tradução de Humberto Giancristofaro, in Questão de Crítica – março de 2010. Disponível em http://www.questaodecritica.com.br/2010/03/a-reprise-resposta-ao-pos-dramatico/
SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte. Ed. Autentica: 2009
Leia também o estudo de Daniele Avila sobre Tentativas contra a vida dela: http://www.questaodecritica.com.br/2010/09/tracos-por-toda-parte/
Informações sobre a temporada no blog da peça: http://tentativascontravidadela.wordpress.com/