Intraduzível

Crítica de Duplo Crimp, que reúne as peças O campo e A cidade, de Martin Crimp

22 de fevereiro de 2012 Críticas
Nicole Cordery. Foto: Tatiana Farache.

O diretor Felipe Vidal, que já havia montado a peça Tentativas contra a vida dela, de Martin Crimp, continua sua relação com o autor inglês montando Duplo Crimp. Este é um projeto composto de duas peças, O campo e A cidade, ambas traduzidas por Daniele Avila Small, e que estiveram em cartaz no Teatro Gláucio Gill de 13 de janeiro a 13 de fevereiro.

É inevitável estabelecer, primeiramente, a ordem destas em relação a Tentativas. Sendo um marco na carreira e no estilo de Crimp, Tentativas fundamentou elementos dramatúrgicos que podem ser vistos em iminência na peça O campo e já bem explorados em A cidade. Vamos nos ater especialmente na construção das identidades de seus personagens e das questões postas aos atores para interpretá-los.

Em O campo há uma dinâmica na qual aparecem apenas dois personagens de cada vez para falar de um terceiro ausente, ou por estar dormindo, ou do outro lado da linha telefônica, etc. Com isso, é no interior da cena que vão se formando as identidades dos que estão de fora. Cada cena violenta o personagem, por lhe roubar o direito de se definir por si. A trama aponta para esse velamento das identidades, expondo como Corinne (Flavia Pucci) e Richard (Adriano Saboya), um casal que acaba de se mudar para o campo, não têm certeza do comportamento um do outro. A aparição inquietante de uma desconhecida nesse ambiente inicia um jogo de gato e rato em busca de elementos que possam ajudar cada um deles a entender o que está acontecendo.

Rebecca (Gabriela Carneiro da Cunha), esta personagem enigmática, traz um símbolo caro ao ocidente. A historiadora, em certa altura, põe em jogo a definição de História como unilateral, logo autoritária, e assim, valida o seu lado como o verídico. Sua opinião é de que a identidade impressa por ela para os demais personagens não pode ser ignorada, com o risco de a narrativa ficar incompleta. Ela diz: “O contrário da História é a ignorância”. Relega, porém, a subjetividade dos demais, que, recortando suas memórias, fazem suas escolhas e compõem suas histórias. Identidades afetivas montáveis, desmontáveis e remontáveis.

Gabriela Carneiro da Cunha, Adriano Saboia e Flavia Pucci. Foto: Tatiana Farache.

Os atores, para isso, expressam uma aprendizagem que seus personagens vão obtendo em relação aos seus parceiros, o que resulta numa curva que se acentua em velocidade e força, num processo de construção dos personagens em cena, porém, no âmbito de suas emoções e reações, não na linha da história. Eles somam as intensidades de cada cena para formar a tensão subsequente, numa progressão que não é aritmética, mas uma progressão no caos, para formar uma unidade complexa. Esta identidade é atravessada por tudo o que a afeta.

O tom de violência é sublinhado por diversas atitudes, como as falas que se sobrepõem para tomar a palavra – um artifício de Crimp que exacerba a naturalidade com que isso acontece em diálogos – comprometendo um pouco a inteligibilidade. Uma violência à compreensão que dá origem a ambiguidades e a interpretações particulares do que está sendo contado, como é normal acontecer em qualquer conversa. Outro elemento violento é o manuseio de uma tesoura usada por Corinne para recortar fotos que, sustentada em punho ao acaso, confere um cunho pontiagudo às inferências que faz aos outros. Essa acidez, no entanto, não é pessimista, antes, é predicativa das relações que se tecem. Isto aponta para a fragilidade do discurso defensor de uma identidade rígida, disposição que cerceia as possibilidades de existência do indivíduo.

Em A cidade, o problema da formação identitária leva a ambiguidade para um outro nível. Como uma fantasia estoica, as informações que surgem sobre cada personagem, armazenam-se como impressões na imaginação do espectador. Novos estímulos imaginativos são oferecidos pelos mesmos personagens, causando um estranhamento por não se encaixarem com o formulado pelas impressões anteriores. Obrigam, assim, um alargamento de suas “definições”, de tal forma que cada uma se torna intraduzível.

Lucas Gouvêa e Cris Larin. Foto Tatiana Farache.

Assim como em O campo, é também a profissão de um personagem que aponta para o que está em jogo na peça. Clair (Cris Larin) é tradutora, um ofício que tem na sua lida diária a tarefa de procurar correlatos, os mais próximos possíveis, de uma cultura em outra, o que nem sempre é alcançado com eficiência. É comum na filosofia da linguagem a anedota sobre a distinção entre a palavra inglesa, cheese, e sua correlata em francês, fromage. Diz-se que, para um estadounidense, cheese é algo processado para ser utilizado em sanduíches; enquanto para um francês existem 365 tipos de fromages, um para cada ocasião, em geral para serem servidos após as refeições. Pois bem, não parece se tratar do mesmo objeto, mas convenciona-se que sim.

Este tipo de convenção é o que mantém as diferentes características de cada personagem resumidas em uma mesma identidade. Por mais que possa acontecer um estranhamento, a inadequação, vista por exemplo na troca de profissão de Chirs (Lucas Gouvêa), marido de Clair, que passa de businessman a assistente de açougueiro, é perfeitamente consistente quando se quer chamar a atenção para o que pode um personagem (e não para o que ele deve fazer).

Através desses personagens é que o território de A cidade se manifesta; ainda por meio deles é que acontece uma desterritorialização, libertando a imaginação para fantasiar, e uma reterritorialização, agora, acentuadamente mais topológica, ou seja, interessada na superfície e nos traços nela marcados. Nessa intrincada teia, o plano da peça é construído, sem nunca se definir, pois a cada novo traço, uma nova possível realidade se ergue com ele e o influencia. É no desenrolar desses traços, com a vitalidade que os atores impingem a seus personagens, que eles adquirem força enquanto devir, como condição de uma imanência sempre por vir.

Foto: Chico Lima.

O cenário de Aurora dos Campos agencia essa violência ao expor os diferentes atributos possíveis para um mesmo espaço. Tanto O campo como A cidade utilizam a mesma base cenográfica: uma casa composta por tubos que definem apenas as arestas da edificação. Enxuta, remete ao arquétipo da casa, um quadrado com um triângulo em cima. Por ser apenas um esqueleto, ela pode se desdobrar na casa de ambas as peças de acordo com suas economias. A arquitetura invisível se abre à imaginação na medida em que os personagens precisam assentar mais elementos em suas identidades. Nas duas peças, fica evidente que a espacialidade dentro das casas é particular. De arquetípico sobra pouco. Entre uma peça e outra, essa estrutura deixa de remeter a uma só casa ideal. Ela é uma analogia que está sempre lá, como se quisesse lembrar que a identidade pode ser sólida, mas sem muros.

Clair declara, por fim, que mesmo sua filha (Beatriz Bertú) e sua vizinha (Nicole Cordery) são inventadas por sua imaginação. Uma experimentação autoral da tradutora, que se confunde com a sua própria personalidade. Eles, no entanto, nunca estiveram esvaziados por serem fractais, contrariamente, possuíam uma potência criadora, doadora de realidade à subjetividade de Clair. Chris pergunta se ele também é inventado e ela conclui: ”Não mais do que eu”. Esta é mais uma violência do processo de constituição da identidade, a necessidade de se redefinir a cada momento e, por causa disso, jamais conhecer o outro. A presença desses personagens, portanto, não se restringe a figuras de diálogo: eles erigem o plano de imanência, formulando uma realidade possível. Essa vivência é comum ao exercício da tradução e A cidade é uma experiência do intraduzível.

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, pesquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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