Meios que encarnam a fala

Crítica da peça Matamoros, texto de Hilda Hirst, com direção de Bel Garcia

17 de julho de 2012 Críticas
Foto: Dalton Valerio.

A peça Matamoros, idealizada por Maíra Gerstner e dirigida por Bel Garcia, encena o conto de Hilda Hilst Matamoros (da fantasia), que conta a história de uma menina pelo viés da sua sexualidade em confronto com a porção familiar, a herança dos modos de ser e agir em tudo aquilo que acaba dando um contorno para o vivido. As trajetórias de mãe e filha se entrelaçam por acontecimentos da relação de afeto das duas, ainda na infância, que tenta reposicionar a sexualidade da menina. Mais tarde, ambas se verão na disputa por um mesmo homem. Isso faz com que apareça uma experiência que transita entre o desejo e um florescimento da vida e a inevitável sensação de morte que acompanha o novo quando faz desabar aquilo que parece nos prender. A morte surge como elemento inevitável de todas as promessas daquilo que é vivo. Dá-se uma espécie de encarnação da maternidade e da finitude pelo lado da apreensão da filha, ao mesmo tempo em que sua criação de fantasia propõe um falseamento que renova os significados da relação entre as duas.

Matamoros, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, integra o projeto Peças em Galeria, que é formado por dois trabalhos dirigidos por Bel Garcia, e com a perspectiva de relacionar o espaço da galeria com o acontecimento cênico. O outro trabalho será Inglaterra – versão brasileira de autoria de Tim Crouch, baseado justamente nessa relação. Em Matamoros essa integração acontece juntamente com a exposição do artista plástico Cafi que ainda pode ser vista nos horários da galeria. É importante perceber como a dramaturgia tecida sobre o conto se mostra como plataforma das ações artísticas interdisciplinares. O conto é uma narrativa focalizada em que emerge um efeito. Sua fórmula breve é justamente um significativo elemento que dá força aos meios.

Uma das repercussões do autor como produtor para Walter Benjamin é a capacidade nova de aproximar seus procedimentos com os do proletariado, em que o progresso técnico se transforma numa das bases da estrutura política. A ideia de progresso não está solidária com a noção de uma direção unívoca dada pela causalidade, mas se integra mais com a relevância dos procedimentos. Isso sugere a investida des-territorializante do trabalho de arte na superação das contradições que impedem o “trabalho produtivo da inteligência”. Esse mecanismo torna-se mais eficaz na medida em que consegue transformar os receptores em produtores, ou seja, transformar leitores e espectadores em colaboradores. O pensamento de Benjamin implica o homem como centro da experiência que a forma narrativa realça. Em Matamoros, isto está na pregnante subjetividade da narradora que cria as condições para o trabalho da imaginação se realizar juntamente com a sala em instalação. Acontece um novo movimento para a expressiva mixórdia em que se encontra a experiência moderna porque integra um vivido nos meios empregados, nos objetos reconhecíveis investidos de outros valores como são os que nos remetem ao campo – o aroma de capim-limão, o copo de leite (ainda mais branco pela importância da sexualidade e da maternidade), as projeções de imagens da natureza nas superfícies que compõem a mesa da instalação de Cafi.

Diante destes elementos a sala da galeria se mostra como uma possibilidade de ser terra, duplicando o que vemos na ante-sala criada pelo artista. O tamanho da sala da apresentação se faz em perfeita sintonia com algo que nos constrange – somos como estrangeiros em relação aos ambientes naturais, assim como das revelações íntimas do texto de Hilda Hilst. Premidos pelo espaço e pela dimensão da mesa ao centro é que podemos suportar o narrado. Os vídeos elaborados por Joaquim Castro não cumprem funções ilustrativas, são mais como objetos dramatúrgicos que criam significações superpostas ao texto. A característica de “ao vivo” do teatro nos coloca num terreno próprio da linguagem que é o da sua criação enunciativa, veiculadora de estados do ser e promovendo a composição estética. Os videoartistas dos anos 80 e 90 voltaram uma boa parte de seus trabalhos para as narrativas pessoais que indicavam a busca da identidade, a revelação dos atos complexos da memória e uma visualidade que não encontrava barreiras entre o sensível e o metafísico. Não à parte deste caminho já trilhado, Joaquim Castro coloca suas imagens ao lado do texto, provocando seu alargamento, perfomando um campo visual, recortando possibilidades de pontos de fuga. A intervenção do vídeo nas laterais da mesa central, por exemplo, permite ao espectador um olhar de objetiva que inventa outros índices para o espaço da cena – reflexo da sofisticação dos sistemas digitais que aproximou o vídeo do efeito do cinema.

Foto: Dalton Valerio.

O trabalho da atriz Maíra Gerstner faz aparecer, por meio de teores físicos, as sensações e emoções da personagem-narradora do conto. Seu percurso vocal diferenciado em blocos de sentido, imbricados à expressão de sua corporeidade, difundem significados que impedem as reduções do que é dito. Não é de imediato que o espectador pode receber esse conjunto. No início, o conjunto intensivo causa um estranhamento que se desdobra em um constante jogo imaginativo sem encontrar decodificação possível de ser adequada aos padrões, a não ser, levando em conta situações em que limites são impostos. Mas a sexualidade e o amor impõem a ida até o precipício e é isso que aparece na espessura de sua voz, que cria ao mesmo tempo a presença corporal da atriz em um registro expressivo que demanda um trabalho efetivo também da recepção. Não é um elemento dado, é um procedimento construído por tempos-ritmos, intensidades e melodias que compõem uma fala que é sua, mas que ao mesmo tempo, agrega a ficcionalidade do discurso soprado de um outro.

Suas partituras físicas expressam o contexto do conto sentido no corpo. Sem dúvida, não é uma sensação confortável a associação da transgressão da sexualidade e sua experiência na infância e adolescência e, portanto, a direção e a atriz não buscam uma mimese psicológica para sua tradução. Trata-se mais de um confronto com as sensações que acompanham uma percepção. A participação em vídeo de Luciana Fróes como a interlocutora-mãe realça o elemento da fantasia. O trabalho de Luciana apresenta a delicadeza da condição do tempo vivido, que exaspera ainda mais e torna premente o presente da encenação de Maíra. Esse duplo causa um ruído para estabelecimento de verdades ou de um único lugar de onde se pode ver – a personagem-filha quase nunca está sozinha, outras vozes estrangulam seu discurso.

Foto: Dalton Valerio.

A meu ver, Matamoros é um trabalho que revela a sensibilidade particular de nossos estados de leitura pela revelação da força da visualidade e a encarnação corporal da fala. A direção de Bel Garcia aponta uma qualidade de trânsito por estes elementos e articula uma forma de conhecimento nesta complexidade. Eu gostaria de usar a expressão conhecimento sensível. É aqui que é possível voltar para a noção de morte. A personagem-filha tem seus limites arrebentados na relação conflituosa com a mãe fundamentada pelas questões da sexualidade, da imprecisão da figura do pai e sua inclusão como objeto de amor carnal das duas. A morte é materializada na encenação pela cisão dos elementos físicos, visuais e dramatúrgicos como meios inteligíveis do sensório. O espaço, os objetos, a atriz e os vídeos perfazem um constante de forças centrípetas e centrífugas que implicam o pensamento e as sensações com a mesma intensidade de forças. Algo da beleza da experiência acontece. Talvez a peça aponte para o teor de beleza do conhecimento de si, justamente pela dificuldade de precisar estados de apreensão separados do sensível.

Referências Bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor” in Obras escolhidas vol.I. Tradução: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.

Leia também a crítica de Inglaterra, que integra o projeto Peças em galeria: http://www.questaodecritica.com.br/2012/08/vida-e-arte-em-suspeicao/

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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