Criaturas portadoras de discurso

Artigo sobre as personagens das peças de Philippe Minyana

18 de janeiro de 2011 Estudos
Espetáculo André, de Philippe Minyana, direção de Christianne Jatahy. Na foto, Marcela Moura.

“Antes de vê-lo por inteiro eu vi primeiro suas costas”

André, de Philippe Minyana


No meu primeiro encontro com André, ele se apresentou de costas, como um bloco sólido de palavras sem pontuação, com alguns espaços entre certos parágrafos. Bloco de palavras estrangeiras, francesas, com seu fluxo alucinante. Ao tentar me aproximar delas, me ludibriavam dando voltas num labirinto, produzindo uma música que desviava minha atenção e faziam com que imagens viessem dançar em meus olhos.

Comecei a ler o texto em voz alta, de forma lúdica, pronunciando as palavras em francês. Prestei atenção no volume de ar necessário para falar o maior número possível de palavras por período. Quando não conseguia terminar um bloco de texto sem pontuação na mesma respiração, percebia as nuances de sentido que apareciam em cada pausa respiratória diferente. Dependendo do fluxo de ar nos pulmões, uma nova musicalidade do texto aparecia e novos sentidos se desenhavam.

ANNE-LAURE – Antes de vê-lo por inteiro André eu vi primeiro suas costas houve o ‘dia das costas’ como houve o dia do desembarque o dia do senhor! Era a primeira vez que via costas como estas pelo menos costas assim tão famosas […] (MINYANA: 1993, 69)

Assim começa o texto André, de Minyana. Não temos nenhuma espécie de rubrica, nenhuma indicação. Só podemos saber o nome da personagem, melhor dizendo, da criatura portadora do discurso, da emissora das palavras, porque vemos o nome dela escrito uma vez antes do texto como mostrado acima. Outras informações sobre a personagem ou a intriga estão colocadas de forma quase acidental na narrativa desenhada pelas palavras.

Anne-Laure vive sozinha numa casa de granito na região agrária do Haute Loire, na França. São poucos os vizinhos. De manhã, costuma abrir as janelas e tomar seu café. Suas atividades diárias consistem em cuidar das cabras, das ovelhas e cultivar trigo e girassol. Um dia ela abre sua janela e vê as costas nuas de um homem, o André.

No dia seguinte, vê as mesmas costas nuas. Uma xícara se quebra, os corpos se encontram, eles se casam e depois se distanciam; se é que podemos dizer que foram próximos algum dia. André começa a mudar e essa mudança é descrita através de detalhes físicos externos: ele era branco e ficou vermelho, e se no início do casamento ele se ocupava das ovelhas, depois começou a trabalhar com produtos farmacêuticos: “ele me disse vou trabalhar com produtos farmacêuticos”. Anne-Laure viaja para o velório de sua mãe, sem que isso a afete profundamente: “a gente bebeu muito eu não chorei a minha mãe eu voltei pra minha casa em Haute-Loire”. Quando ela volta, descobre que André adotou um garoto de 14 anos, o Lionel, “foi o serviço social que lhe entregou o garoto”. André continua se modificando: “Ele estava gordo ganhou quinze quilos em muito pouco tempo”, ou : “ele mudou de voz era uma voz alta uma voz que se habituou a gritar Lionel o dia inteiro a casa é grande”. Quando seu irmão morre e ela volta do velório, encontra André transtornado com a fuga do pequeno Lionel com a mobilete que ganhara de aniversário. Uma noite, ao voltar da casa de vizinhos, ela toma um vinho, sozinha, na sua casa de granito e vai dormir. De manhã descobre que André está morto: “ O médico legista disse que ele não tinha sofrido o enterro vai ser amanhã”. Todos estes fatos são narrados por Anne-Laure, em saltos temporais seguindo o fluxo de seu pensamento, construindo um labirinto em espiral. De tempos em tempos ela anuncia que uma coisa muito ruim vai acontecer e logo retoma sua narrativa cíclica, avançando um pouco a cada vez.

Pela leitura do texto, é impossível dar uma característica identitária ao personagem André e nem saber de fato o que aconteceu a ele, o mesmo se pode dizer da personagem Anne-Laure, que narra sua história.

Anne-Laure é a mulher que fala o texto André. Ela só pode se configurar como “personagem” a partir das particularidades específicas da voz, do corpo e do temperamento da atriz-performer que lhe servir de altofalante. O espectador não pode saber seu nome, que só é mencionado no texto impresso uma vez, conforme consta no trecho acima, como indicador de quem fala. Em nenhum outro momento este nome aparece, o que se pode supor que, numa encenação, o público não saberá o nome do emissor do discurso, pois nenhum outro personagem a chama ou fala dela, e ela não se dirige a ela mesma. Portanto Anne-Laure é uma identidade sem nome, um sujeito sem identificação. Não existe qualquer rubrica dando indicações sobre a personagem. Ela não chega a ser uma personagem no sentido tradicional, mas uma fala, uma colagem de indícios de identidade, reflexões, imagens, ritmo e palavras. Anne-Laure é exclusivamente aquilo que fala e sua fala flui como um fluxo de imagens e afetos dissonantes, sua fala é uma confissão. Ela é, acima de tudo, um ser portador de palavras, sem contorno pré-definido ou motivações psicológicas ou sociais estabelecidas. O interessante não é somente o que ela diz, mas principalmente o que deixa de dizer, deixando lacunas no texto e enriquecendo as possibilidades da escrita cênica.

A arquitetura visual e sonora das palavras de Anne-Laure é caracterizada por um fluxo contínuo e não hierárquico, com uma urgência que iguala os afetos e dá a impressão de que ela não domina seu discurso, mas o constrói enquanto pensa, dando autonomia à palavra. A impressão é que a palavra vai sendo construída no momento presente, numa confissão autobiográfica de alguém que se expõe em público para falar de si mesmo. A fala se torna então um ato performático de auto-exposição, como em algumas performances que segundo Pavis (2001, 284) se constituem em uma apresentação autobiográfica em que o artista fala de acontecimentos reais de sua vida. Anne-Laure é também a performer que encontra André e quer vê-lo de frente. E através da produção de um discurso ela tenta dar conta de seus afetos e de sua vivência, tenta dar um sentido à sua prática e conviver com seus fantasmas, seus “outros”, para conhecê-los e se ver melhor.

A noção de personagem em Minyana é diluída, ele as transforma em silhuetas, palavras a serem ditas pelo ator. Segundo Fréderic Maragani (CORVIN: 2000, 81-87), Philippe Minyana escreve partituras para a cena e ele não acredita em personagens, mas em seres que falam, esfinges, emblemas , que compõem uma vasta alegoria do mundo contemporâneo. Nas peças mais antigas, apesar de terem nomes, as personagens de Minyana frequentemente se figuram como criaturas ou designações genéricas que as universalizam em suas qualidades (Phedre, a jovem, Wolf, o lobo, Jérémie, o profeta, a mulher gorda, o assassino, a mãe morta, a dama pipi, Chris criança, o empregado municipal) ou os reduzem a uma característica forte que os tornam quase emblemas (A puta em chamas, a jovem terrificada, o desconhecido, a morte, a mãe, o homem, o vulcão, o homem da echarpe).

Nas peças mais recentes, a indicação da personagem se restringe ao seu nome no início dos monólogos ou nem mesmo isso, como nas últimas peças citadas. A motivação psicológica das personagens é nula. Como no drama barroco, elas estão sujeitas à natureza e não são motivadas por fatores éticos, mas por forças naturais. Sem motivações para seu comportamento, as criaturas são meros instrumentos do destino, fantoches manipulados pela história-natureza, desprovida de fins. (1)

Um interessante estudo sobre a personagem criatura é apresentado por Jean-Pierre Sarrazac (2002, 97) na obra O futuro do drama. Ele aborda as diferentes possibilidades de relacionamento de um escritor com sua personagem: apagando-se diante delas (teatro dramático), falando através delas ou, numa terceira via, sendo um dramaturgo-rapsodo que cria uma personagem de um antropomorfismo incerto, aproximando-se de uma criatura. A personagem criatura sai do nada e volta ao nada no final. É o que acontece com as personagens de Minyana, que existem como portadores de um discurso quase lírico. A criatura é a essência monstruosa da personagem e tem antepassados na tradição teatral, como os anti-heróis, os oprimidos sociais: camponeses obrigados a abandonar suas terras, emigrantes, marginais. Para ele, “A criatura é, na infinita plasticidade do seu corpo, o lugar de uma metamorfose latente, de contornos imprecisos, de uma metamorfose inocente”, como também é o caso da personagem-criatura André, que é descrito de forma plástica no início, figura humana em pedaços, e que vai se metamorfoseando e se deteriorando, mudando de cor, até chegar à morte. Minyana acentua a corporalidade ao mesmo tempo que abdica de uma unidade biográfica e psicológica, dificultando a identificação por parte do espectador. Ao mesmo tempo, a fala é distanciada do corpo. A fala de Anne-Laure é uma palavra socialmente proscrita, uma fala de quem vive isolado da humanidade e de si mesmo.

Christophe Huysman (CORVIN: 2000, 95-100) afirma que podemos quase dizer que não existe mais ficção na obra de Minyana, mas trabalho sobre a palavra no teatro. O ator não deve mais representar, mas dar lugar à palavra, citar, “Ele não deve encarnar um personagem, buscar uma voz, uma máscara, sob pena de cair no ridículo”. Para ele, o ator deve dar conta de uma forma de presença, uma respiração, um ritmo. Mais do que contar o que está escrito, ele deve dar a noção do estilo, do gênero da peça. O trabalho de criação do ator não começa com uma imagem pré-existente que é preciso atingir, como uma personagem, mas parte do concreto de sua voz, seu fôlego e suas próprias impossibilidades. Para ele, a escrita de Minyana participa de um movimento que muda radicalmente a postura do ator e do encenador diante do texto.

Existem pessoas reais ao redor de você. A gente percebe que são histórias verídicas. Efetivamente, não se trata do personagem de teatro, é a pessoa no teatro sobre o palco. Eu achei que este encontro seria simpático. Esta famosa noção de personagem, a idéia seria talvez desestabilizar um pouco esta definição, ampliá-la um pouco. Se elas estão no palco, são personagens, simples assim. Mas na medida em que estão em um palco, são antes de tudo atores. A ficção é o ator e a língua. (MINYANA apud CORVIN: 2000, 115-116)

O encontro com o texto André, de Minyana, possibilita a investigação a respeito das identidades pouco claras e da diluição da noção de personagem, sendo que esta é abordada de uma forma não psicológica, emergindo através de um trabalho lingüístico, como resultado de um efeito discursivo, como instância da palavra e do lugar do discurso.

Espetáculo André, de Philippe Minyana, direção de Christianne Jatahy. Na foto, Marcela Moura e Eduardo Moscovis.

Os autores teatrais dos últimos trinta anos, herdeiros de um século de renovações literárias e cênicas, gozam da palavra em toda liberdade e só obedecem a regra criada por sua poética própria. Esta emancipação da escrita teatral traz conseqüências para a personagem teatral que pode ser reduzida à sua essência mínima, a um simples emissor de palavras, e em vez de despertar o tradicional processo de identificação, elas incitam um jogo lúdico com a platéia, valorizando a performance e o engajamento pessoal do ator. Mesmo quando se trata de personagens mais verossimilhantes, eles se encontram como que contaminados pelo funcionamento insólito do universo ao qual eles pertencem. Nestes casos, a recepção do espetáculo deixa de ser de reconhecimento para uma disponibilidade ao imprevisto, um consentimento ao imaginário, em que a percepção do personagem pelo espectador deve partir de uma escuta sensível e uma atenção lúdica.

Ao falar sobre a personagem, em seu dicionário de teatro, Patrice Pavis (2001, 285-288) faz um levantamento histórico de suas metamoforses. Em sua abordagem, ele chama a atenção para a definição inicial de personagem ou “persona” como sendo, não o esboço criado pelo autor dramático, mas exatamente a máscara ou o papel assumido pelo ator em cena, sendo evidente a nítida separação entre ator e personagem. Para ele, toda a sequência do teatro ocidental será marcada pela inversão desta perspectiva: força passional em Shakespeare, ação exemplar na era clássica, forma codificada na comédia dell’arte, a personagem vai se identificando cada vez mais com o ator que a encarna para se transmutar em entidade psicológica e moral, semelhante aos outros homens, produzindo no espectador o efeito de identificação (2) e atingindo seu auge na dramaturgia burguesa e no naturalismo. Com o advento da encenação, esta tendência se inverte e a personagem começa a dissolver-se no drama simbolista, estilhaça-se na dramaturgia épica dos expressionistas e de Bertold Brecht, ganhando algum recentramento na dramaturgia surrealista com os jogos de teatro dentro do teatro e personagem dentro da personagem, como em Luigi Pirandello e Jean Genet. Depois ela é despersonalizada e transformada num jogo da máquina linguística no teatro do pós-guerra (Samuel Beckett, Eugène Ionesco) .

As primeiras peças de Minyana se passam na província, seu meio social de origem, com temas familiares. Entre elas : Fin d’eté à Baccarat ( Fim de verão em Baccarat), Premier trimestre (Primeiro trimestre), etc. Elas ainda possuem alguns traços clássicos como a fábula mais desenhada e personagens mais individualizados, mas já mostram certos traços de ambiguidade quanto à forma dramática, lacunas no texto ou excessos de palavras e problematizações do tempo.

Num segundo momento, ele começa a afirmar alguns traços próprios mais radicais na sua dramaturgia, renunciando a uma visão global e sistemática do mundo, deixando entrever um quadro fragmentário, com forte presença de monólogos, imagens e esboços de personagens. Mesmo quando encontramos alguma espécie de diálogo, ele se apresenta como uma troca intersubjetiva, mas com aspectos épicos e forte lirismo. Ele é estabelecido por personagens que parecem estar falando sozinhos ou que não se escutam, sendo na maioria das vezes pequenos monólogos intercalados. A comunicação com o “outro” aparece como um problema, uma dificuldade.

Segundo uma tipologia dos monólogos apresentada por Patrice Pavis (2001, 247-248), podemos aproximar os textos de Minyana do monólogo interior, em que o recitante emite de qualquer maneira, sem preocupação com lógica ou censura, os fragmentos de frases que lhe passam pela cabeça e também do monólogo lírico, como um momento de reflexão e de emoção de uma personagem que se deixa levar por confidências.

As peças Chambres (Quartos), Inventaires (inventários) e André; publicadas no mesmo volume pela Éditions Théâtrales, têm como característica comum a presença de monólogos construídos pela memória e ditos diretamente ao receptor numa ânsia de confissão íntima: monólogos intercalados sem interação entre personagens no caso de Chambres ou Inventaires, ou um só monólogo como no caso de André.

Estas peças são povoadas por seres solitários que se mostram através de um fluxo ininterrupto e desordenado de palavras direcionadas a um auditório que as escute. O sentido nasce justamente deste desfile de palavras banais à imagem das vidas que elas restituem.

Na peça Chambres, seis habitantes de uma cidade industrial chamada Sochaux (mesma cidade onde o pai e os tios de Minyana trabalhavam na Peugeot) tentam desesperadamente, como Anne-Laure, entender que detalhe fatal fizera com que tudo desse errado.

O texto é formado por seis monólogos justapostos, cinco mulheres e um homem, cada um em um quarto de Sochaux. Cada monólogo não tem nada em comum com o outro, do ponto de vista da narrativa, além da solidão traduzida pelo isolamento que é representado espacialmente pelo quarto, chambre, de cada um. O mesmo isolamento é transfigurado espacialmente na casa de granito de Anne-Laure, onde vive sozinha na região quase deserta do Haute-Loire, na França.

Em cada quarto, encontramos uma pessoa diferente: Kos, que narra a procura por seu irmão Boris, morto num hangar da fábrica Peugeot; Elisabeth, que queria se tornar miss para concorrer com as misses América; Arlette conta que se tornou infanticida porque queriam tomar-lhe seu Lulu; Suzelle fala de sua filha, que não era sua filha mesmo, e Tita narra os abusos sexuais sofridos por ela. Assim estas pessoas vão narrando, uma de cada vez, sua pequena tragédia íntima.

TITA – E ele já tinha começado pouco a pouco a colocar seu sexo lá onde devia mamãe tinha pobres bochechas ela tinha curiosamente perdido as bochechas de uma só vez era uma mulher que tinha sido loira com as formas charmosas e com bochechas. (MINYANA: 1993, 13)

A peça Inventaires (3), é uma espécie de reality show ou programa de auditório, onde as três mulheres, Jacqueline, Angele e Barbara, diante de um microfone ou câmera de TV, participam de um “duelo da palavra”, numa série de monólogos intercalados.

Um casal de apresentadores, Eve e Igor, conduzem o programa e determinam o fluxo e a ordem da narração das três mulheres de Inventaires. As interrupções são uma prova para desestabilizar as candidatas ou uma forma de censura, quando os detalhes começam a ficar muito íntimos ou escabrosos. Na rubrica é informada somente a existência de diferentes sinais sonoros e luminosos que dão a palavra às candidatas e o semi-círculo onde as candidatas se apresentam. Estas poucas rubricas representam uma exceção nas peças de Minyana. Ele não usa rubricas em quase nenhuma peça e quando as usa é só para indicar a quem a ‘personagem’ está se dirigindo, quando das raras vezes em que se dirige a alguém, porque na maior parte do tempo, ela fala para o público.

Portanto, as regras da maratona são simples: falar sob o comando, sem interrupção, evocando lembranças e momentos importantes, sem perder o fio da narrativa com as interrupções e sem hesitação.

JACQUELINE- Boa noite eu nunca me separei desta bacia foi nela que eu cuspi meus pulmões e minha vida mudou porque eu cuspi nela e não em outro lugar no banheiro ou na pia porque é minha bacia preferida na qual lavava meus legumes […] (MINYANA: 1993, 45)

Diante do microfone e da televisão, nenhuma das mulheres de Inventaires têm qualquer tipo de relação com a outra, a palavra é egocêntrica, fundada no desejo de expressão e auto-ficção.

Além de monólogos, Minyana trabalha muito com textos-partitura que ele chama de livros de ópera – Gang, Leone, Anne-Laure et les fantômes (Anne-Laure e os fantasmas). Outras peças – Habitations (Habitações), Portraits, (Retratos), Description (Descrição) – são quase que simplesmente comentários de fotos, leituras de cartas ou descrição de documentos. O lugar acordado à presença do livro, das fotos, das cartas ou qualquer objeto de comentário sustenta a memória e funciona como elemento mediador do sofrimento.

Suas últimas peças foram editadas num mesmo volume pela editora L’Arche em 2008 e são : Voilá (Eis aqui), Tu devrais venir plus souvent (Você deveria vir mais vezes) e J’ai remonté la rue et j’ai croisé des fantômes (Subi a rua e cruzei com fantasmas).

Em Voilá não temos a presença de monólogos e os diálogos são construídos como uma partitura de palavras cotidianas ligadas ao ritual das visitas. A peça foi escrita em cinco capítulos em que quatro personagens evoluem ao longo das visitas sucessivas que constituem a peça. Nela, o autor utiliza a fragmentação e trabalha um jogo de temporalidade, pois a cada visita existe uma mudança na vida dos personagens causada pela passagem do tempo. Já as outras duas peças são constituídas por uma espécie de monólogo muito especial.

A peça Tu devrais venir plus souvent (4), fala da volta de alguém que foi morar em outro país. Fala do retorno do emigrante ao país natal e do reencontro com a paisagem, a família, as pessoas queridas e os conhecidos: “Retornando a meu país eu me digo ah é meu país e o tempo começa a escoar […]”. O texto fala da relativização do tempo, que se torna lento na volta à terra natal, que passa rápido quando estamos longe, fala da memória, das mudanças. Este texto começa sem nenhuma rubrica ou indicação de personagem e se apresenta assim até o final. Se não estivesse editado junto a outros textos dramáticos poderíamos pensar em uma poesia ou prosa poética. A única indicação encontrada, está quase no final da peça: o título ‘‘carta da mãe” e vemos a seguir uma carta de uma mãe para sua filha, Francine, que está distante, falando da relação difícil das duas, falando da morte do pai dela e pedindo que ela telefone frequentemente: “porque quando você desliga me resta a sua presença”.

Em outros momentos do texto, temos uma seqüência de falas parecidas que se repetem girando ao redor do tema do reencontro, da passagem do tempo, como se fossem frases girando no pensamento, constituindo um monólogo com frases da memória:

– Ah você eu te reconheço

– E eu você me reconhece

– Sim sim eu reconheço[…]

– Você podia vir mais vezes

– Escuta faz quanto tempo que você

– Oh nem me fale, […]

– Eu também venho de vez em quando

– Eu também é preciso que eu retorne (eu venho de tempos em tempos

– É preciso se reconciliar (é isso que me digo é isso que me digo) (MINYANA : 2008, 87)

São frases soltas que se repetem com pequenas diferenças, como se fossem frases que são ouvidas em todos os reencontros, todas as visitas à família, da qual o emigrante está afastado. O resto do texto é um monólogo em forma de estrofes, em que podemos notar a repetição de algumas estrofes como se fosse o refrão de uma música, só que com algumas pequenas diferenças a cada vez. Por exemplo, a estrofe que começa com a frase “Voltando ao meu país”, é repetida a cada vez com um desenvolvimento diferente. Outras frases que se repetem no início das estrofes são: “Era uma manhã” ou a frase: “o tempo começou a parar”.

Este texto se apresenta graficamente como um “corpo” lírico, dividido em estrofes e refrões com forte musicalidade, poderia muito bem se passar por um poema épico, mas ao nos aproximarmos de seu corpo de palavras, percebemos a construção dramatúrgica retorcida no interior de cada estrofe e uma voz monológica que se dirige a um “outro”, leitor, ou a “outros” dentro de sua própria ficção. Em determinado momento do texto percebemos que se refere a um monólogo de mulher, que não precisa necessariamente ser a mesma do texto inteiro, visto o alto grau de fragmentação: “[…] eu chorei eles disseram oh ela chora eu já tinha bebido três copos nós comemos […]”. Outro dado do texto sobre uma possível identidade deste emigrante narrador como sendo a mulher Francine é a carta dirigida a ela, como sendo alguém que está distante de seu país, mas esta opção é escolha do leitor, pois a carta da mãe e as frases de reencontro funcionam também como citação poética dentro do próprio texto, em meio à pluralidade e indefinição das vozes.

A peça J’ai remonté la rue et j’ai croisé des fantômes (Subi a rua e cruzei com fantasmas) também não tem rubrica ou qualquer indicação de personagem. O texto se mostra sem nenhuma apresentação prévia e sem indicações, dificultando a identificação da voz do narrador em meio à diversidade de “outros” que vão cruzando o caminho deste narrador, ou que ele vai visitando. Temos que nos aproximar destes textos da mesma forma como se aproxima de textos místicos ou de enigmas ou charadas, onde se deve desvendar um mistério a partir das pistas oferecidas e dos pequenos sinais que podem passar despercebidos. Este narrador presente no texto vai subindo esta determinada rua, vai passando na frente ou entrando em vários lugares metafóricos ou alegóricos, como a “Casa da doença”, “A casa do louco”, “A casa da solidão”, “A casa do amigo Titou”, “ A casa da infelicidade”, “A casa da viúva” e termina as visitas, na casa de sua mãe morta. O texto vem construído em capítulos ou visitas que são narradas por uma voz, alternando o discurso direto, quando a voz narradora é mais implicada no tempo, e indireto, com idas e vindas no tempo: “eu já estava no meu futuro esta cena ela já está na minha lembrança”.

O dramaturgo Philippe Minyana, cujo nome verdadeiro é Philippe Miñana, nasceu em Besançon, na França, em 1946. Ele tem mais de 30 peças editadas por Éditions Théâtrales, L’Ávant-Scène ou por Actes Sud-papiers e, a partir de 2008, passou a ser publicado pela editora l’Arche. A maioria dessas peças já foi encenada. A obra de Minyana foi bastante influenciada pelo dramaturgo e encenador Michel Vinaver, com quem já trabalhou como ator. Vinaver repensa o lugar da palavra na cena contemporânea e tenta apreender o presente, sob a forma de fragmentos de conversas, através de um fluxo de linguagem ininterrupto e encadeado.

Uma etapa importante de seu percurso artístico foi a parceria com Robert Cantarella, que encenou, em geral em colaboração com Minyana, muitas de suas peças, dentre elas Inventaires, que ganhou o prêmio SACD 1988 (Sociedade dos autores e compositores dramáticos) e foi indicada ao prêmio Molière, na categoria de melhor autor, contribuindo para o reconhecimento de sua dramaturgia.

No Brasil, Minyana ainda não é muito conhecido. Só tivemos duas montagens de textos seus: André em 2008, traduzido por mim e apresentado no Oi Futuro em 2009 sob a direção de Christiane Jatahy e Suite 1, apresentado em 2005 no espaço SESC Copacabana, sob a direção de Márcio Abreu, da Companhia Brasileira de Teatro, de Curitiba, com tradução de Giovana Soar, atriz da companhia. Suite 1 foi publicado na coleção bilíngue Palco sur Scène pela Imprensa Oficial de São Paulo, com o apoio do Consulado Geral da França e da Aliança Francesa.

O texto André foi editado pela Editions Théâtrales em 1993, junto às peças Chambres e Inventaires e foi traduzido para o Alemão por Frank Heibert. Foi filmado por Jacques Renard, com atuação de Hanna Schygulla e difundido na Arte. Foi também encenado como opereta por Marin Favre, com o Quatuor Maria Braun para o Festival de Musiques D’Ailleurs.

Notas:

(1) Apresentação de Sergio Paulo Rouanet (Benjamim: 1984,34). Nisto consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca , mundana, da história como história mundial do sofrimento. (Benjamin:1984,39)

(2) O espectador tem a ilusão de ver a personagem real à sua frente, identificando-se com ela e imaginando-se como ela. Segundo Nietzsche (1872, 44) o prazer da identificação com a personagem é um fenômeno dramático fundamental : “ver-se a si mesmo metamorfoseado diante de si e agir agora como se se houvesse entrado num outro corpo, num outro caráter”. Uma teoria que propõe uma tipologia das interações com o herpoi foi proposta por R.H. Hauss (1977, 220) . Os modelos são: Identificação associativa ( pôr-se no lugar dos papéis de todos os participantes), admirativa (admiração ao herói perfeito), simpática (piedade para com o herói imperfeito), catártica (emoção trágica diante do herói que sofre ou zombaria diante do herói oprimido).

(3) Esta peça foi encenada em outubro de 1987 no Théâtre de la Bastille, em Paris, sob a direção de Robert Cantarella. Em 1990, este texto foi adaptado para a tv sob a direção de Jacques Renard, uma espécie de documentário ficcional, com as atrizes Florence Giorgetti, Judith Magre e Edith Scob. As atrizes participavam desta encenação de Cantarella, só que num supermercado, como se fosse um programa ao vivo, com os consumidores do supermercado sendo transformados em atores improvisados que participavam do programa. Este material está disponível no consulado françês, dentro da coleção ‘Du théâtre à l’écran’.

(4) Esta peça foi encomendada por Marie Steen (Compagnie Théâtrale) no Théâtre de la Madeleine, em 2004, e encenada no Festival Frictions à Dijon, em 2005, com as atrizes Elisabeth Hölzle, Laure Mathis, Aline Reviraud. Foi lida pela atriz Christiane Cohendy na radio France Culture em 2006.

Bibliografia :

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AUMONT, Jacques. O olho interminável. (cinema e pintura). Tradução de Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo:Cosac Naify, 2004.

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GOLDBERG, Roselee. A arte da performance. Tradução de Jefferson Luiz camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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__________. Drames brefs (1). Paris: Éditions Théâtrales, 1995.

__________. Anne-Laure et les fantômes. Paris: Éditions Théâtrales, 1999.

__________. Le Couloir. Paris: Èditons Théâtrales, 2004.

__________. Histoire de Roberta, Ça va . Paris: Éditions Théâtrales, 2006.

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PALLOTTINI, Renata. Construção do personagem. São Paulo: Editora Ática S.A, 1989.

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UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução de José Simões. São Paulo: Perspectiva, 2005.

UNIRIO – PPGT – O percevejo, Revista de teatro, crítica e estética. Ano 8 n. 9 – “Teatro Contemporâneo e Narrativas”. Rio de Janeiro, 2000.

Outras fontes:

DESCHAMPS, Jérôme, realização. La secrète architecture du paragraphe: rencontre avec Philippe Minyana. Documentário produzido por La pellicule ensorcelée, thecif. 26’- 2002

Marcela Moura é atriz e doutoranda em Artes Cênicas  pela UniRio.

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