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Ensaio de descolonização do pensamento
“Bem te conheço, voz dispersa
nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apêlo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?”
Carlos Drummond de Andrade,
“As palavras e a terra”
- A mesura e o infamiliar
Ao entrar em sala de aula, o professor faz uma mesura exagerada. Dobra o corpo e leva o peito quase até o chão, como um bailarino. Ou uma garça. Já vi esse gesto em algum lugar, mas ele parece totalmente deslocado naquela situação prosaica. Eu próprio sou professor. Em vinte anos de profissão, não me lembro de alguma vez ter feito uma mesura dessas diante dos meus alunos. Tampouco me lembro de qualquer professor, dentre as dezenas ou centenas que já tive, fazendo uma mesura dessas. Se o cenário – uma sala de aula com um quadro negro ao fundo, uma cadeira e uma pequena mesa em primeiro plano – era a princípio de todos o mais familiar (Freud diria: heimlich), com uma leve torção (do corpo!) ele se torna imediatamente estranho, infamiliar (unheimlich). Lembra daquele travelling penetrando na grama perfeitamente verde de uma pequena e organizada cidade do interior no início de Veludo azul, do David Lynch? Lembra que ele termina com a imagem de uma orelha humana decepada? Lembra dessa orelha sendo invadida por uma gigantesca e a princípio invisível colônia de insetos?
Identidade, tradição e o agora
Decidi rever no celular as fotografias tiradas durante o Festival de Curitiba em março deste ano. Há alguns dias relia as anotações do festival escritas num caderno e era como se faltasse uma memória que iluminaria um rastro atravessando tantas páginas sobre espetáculos, debates, encontros, cafés.
Escrever sobre um festival com tanto tempo passado tem suas especificidades. É minha segunda experiência com esta proposição (a primeira foi no FIAC 2015) e agora algumas operações tornam-se mais definidas. Destaco aqui uma: na primeira vez, a ideia foi reunir o máximo de anotações e documentos possíveis – uma tentativa de prevenção ao esquecimento. Desta espécie de fichamento um olhar sobre a curadoria do festival emergiu, e a escrita se desdobrou nesta perspectiva de admitir o todo do evento como objeto da crítica.
O Festival de Curitiba e o teatro da cidade

A proposta deste breve artigo é fazer uma reflexão sobre a edição de 2016 do Festival de Curitiba. A partir da atividade Encontros de Crítica que a Questão de Crítica e o Horizonte da Cena realizaram a convite do festival, quatro textos são publicados, cada um com um olhar diferente. A ideia de publicar os textos alguns meses depois do festival responde a uma necessidade diversa daquela que muitas vezes orienta a produção textual sobre teatro, a da resposta imediata. Com essa demora, permitimos que a mediação do tempo atue sobre a memória e nos permita pensar sobre o festival sem as implicações do calor da hora.
A atividade principal dos Encontros de Crítica foi uma série de debates feitos depois das peças. A cada dia, quatro críticos se dividiam em dois espetáculos para conversar com artistas e espectadores depois das apresentações. A ideia era propor uma aproximação entre artistas e espectadores. Pela dimensão do festival, que sempre prima por uma grande quantidade de espetáculos de toda sorte, fica muito presente a sensação do teatro como evento. O gesto de chamar para a conversa propõe outro tipo de relação espectador e obra, uma relação de escuta e de partilha, uma relação que se demora e cria vínculo. O convite para permanecer no teatro depois da peça enfatiza a importância da presença e da atenção do espectador no acontecimento do teatro, da necessidade real da troca entre artistas e espectadores.
Teatro de grupo em primeiro plano

FESTIVAL DE CURITIBA
A programação do Festival de Curitiba vem passando por uma bem-vinda transição que ficou mais evidente nessa edição devido, principalmente, à consistente seleção de espetáculos para a Mostra Oficial, que privilegiou o teatro de grupo. Celso Curi, Lúcia Camargo e Tania Brandão, responsáveis pela curadoria, selecionaram trabalhos das companhias Armazém (A marca da água), Atores de Laura (Absurdo), Teatro da Queda (Breve), Brasileira (Esta criança), Hiato (Ficção), Club Noir (Haikai), Clowns de Shakespeare (Hamlet), Opovoempé (O espelho), Esplendor (O homem travesseiro), Espanca! (O líquido tátil), Lume (Os bem-intencionados), Parlapatões (Parlapatões revisitam Angeli), Luna Lunera (Prazer) e Balagan (Recusa).