Tag: vinícius arneiro
Ensaio de descolonização do pensamento
“Bem te conheço, voz dispersa
nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apêlo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?”
Carlos Drummond de Andrade,
“As palavras e a terra”
- A mesura e o infamiliar
Ao entrar em sala de aula, o professor faz uma mesura exagerada. Dobra o corpo e leva o peito quase até o chão, como um bailarino. Ou uma garça. Já vi esse gesto em algum lugar, mas ele parece totalmente deslocado naquela situação prosaica. Eu próprio sou professor. Em vinte anos de profissão, não me lembro de alguma vez ter feito uma mesura dessas diante dos meus alunos. Tampouco me lembro de qualquer professor, dentre as dezenas ou centenas que já tive, fazendo uma mesura dessas. Se o cenário – uma sala de aula com um quadro negro ao fundo, uma cadeira e uma pequena mesa em primeiro plano – era a princípio de todos o mais familiar (Freud diria: heimlich), com uma leve torção (do corpo!) ele se torna imediatamente estranho, infamiliar (unheimlich). Lembra daquele travelling penetrando na grama perfeitamente verde de uma pequena e organizada cidade do interior no início de Veludo azul, do David Lynch? Lembra que ele termina com a imagem de uma orelha humana decepada? Lembra dessa orelha sendo invadida por uma gigantesca e a princípio invisível colônia de insetos?
Ser ou não ser Nelson Rodrigues
O espetáculo Cachorro! coloca em evidência dois problemas: o estereótipo rodrigueano e a questão da autoria de textos, quando estes são feitos a partir de um universo de determinado autor. No caso, a peça é livremente inspirada no universo de Nelson Rodrigues. A trama busca uma semelhança com seus textos, os nomes dos personagens são familiares aos seus, o texto tenta imitar uma construção de diálogos característica de suas peças, mas a peça não é de Nelson Rodrigues. A autoria é de Jô Bilac.
Aqui se faz necessário pensar o que é o universo de um autor e se é possível pensar este universo separadamente da sua escrita. Existe um universo de Nelson Rodrigues que prescinde de seus textos, que é autônomo, de domínio público? O que tem de importante e particular num texto deste autor: os jargões, as situações, o impacto sobre as questões morais do público, os desfechos trágicos, as gírias da época? Será que extrair do universo de um autor a sua própria escrita não é como retirar as bases da sua construção? Há um risco nesta escolha, o risco de não conseguir sair de uma espécie de clichê, de uma imagem convencionada pelo senso comum. Mesmo que as intenções sejam as mais sérias.
Fluidez e estranheza
É incrível o potencial de mobilizar multidões que as encenações de textos de Nelson Rodrigues alcançam no panorama teatral carioca. O público não só comparece em peso como parece acompanhar atentíssimo o desenrolar do texto falado, respondendo prontamente em coro a cada comentário inusitado proposto pelo dramaturgo, com risos de quem recebe com prazer, compreendendo plenamente o humor ali embutido. O casal assistindo Cachorro! ao meu lado, no teatro Maria Clara Machado, no Planetário, comentava animado o desenrolar do enredo trágico, aguardando pacientemente o desfecho, e saindo do teatro ao fim da apresentação num estado que pela aparência julgo ser o de satisfação.
Conversa com Vinícius Arneiro
A conversa com Vinícius Arneiro, diretor do espetáculo Cachorro!, foi realizada em março de 2008 por Henrique Gusmão.
HENRIQUE: Vinícius, Cachorro! é o trabalho de uma companhia que vocês formaram?
VINÍCIUS: É um grupo.
HENRIQUE: Você pode contar um pouco da história do grupo?
VINÍCIUS: Eu, Paulo Verlings e Felipe Abib nos formamos juntos na Martins Pena no primeiro semestre de 2006. Mas desde que a gente entrou na Martins Pena, eu e o Paulo tínhamos uma afinidade muito grande, então nos juntamos logo. Na verdade, o primeiro trabalho que a gente fez foi na época em que entramos na escola, em 2004, e se chamava Deus danado. Era um esquete. A gente participou do Circuito Carioca de Esquetes e o Paulo ganhou o prêmio de ator. Depois entramos em cartaz no Planetário e no Sérgio Porto. Logo depois, a gente circulou muito, fomos em todos os festivais de esquete. E num destes festivais a gente conheceu a Carolina Pismel. Um tempo depois, em 2006, o Paulo e a Carol pediram um texto ao Jô Bilac. O Jô tinha acabado de adaptar uma cena do filme Traição, que tinha o roteiro da Patrícia Melo, um segmento chamado Cachorro!.