Por um adágio adiante

Crítica de O museu dos meninos – Arqueologias do Futuro, solo de Mauricio Lima

1 de maio de 2023 Críticas

A apresentação de Arqueologias do Futuro, a que assistimos na primeira semana do Festival de Curitiba nos últimos dias de março de 2023, é uma das entradas possíveis para um projeto mais amplo, o Museu dos Meninos, “uma obra-museu composta por uma série de ações nos campos do audiovisual, das artes cênicas e visuais, com a premissa de mapear, preservar e criar memórias, como exercício contínuo e coletivo de futuridades impossíveis para o povo preto e favelado”, como consta no espaço online em que esse museu virtual pode ser visitado. Realizado por Mauricio Lima, artista da dança e do teatro do Rio de Janeiro, com direção e dramaturgia sampleada em parceria com Fabiano (Dadado) de Freitas, o projeto se coloca como uma reação aos dados divulgados no Mapa da Violência no Brasil em 2016. Uma reação propositiva, que subverte o imaginário impresso nas imagens de jovens rapazes negros, cujas vidas são o alvo mais comum da truculência policial na cidade. O espetáculo subverte também a expectativa de quem vai ver uma obra que parte – pelo menos parcialmente – da premissa da violência. O que se vê em cena é um derramamento de delicadeza.

A peça se divide em “artefatos” do museu, que são apresentados como composições cênicas ao mesmo tempo autônomas e intimamente entrelaçadas. Cada uma dessas partes, a despeito da duração e da concisão de cada uma, poderia render um texto diferente, dada a complexidade dramatúrgica do trabalho e o apuro nas filigranas da atuação de Mauricio Lima. Assistir ao espetáculo é como fazer uma visita guiada a uma exposição, tendo como guia o próprio artista, que performa na medida mesma em que faz a mediação. Uma das coisas que me interessa em solos – e a peça integra a Mostra de Solos do festival – é a oportunidade que essa modalidade oferece para que um artista compartilhe sua poética íntima, seu modo singular de se colocar em cena: um pensamento, uma ideia, uma pesquisa colocada à prova pelo corpo, com o corpo.

É até difícil escrever sobre a peça sem mencionar os outros espetáculos que se apresentaram logo antes ou logo depois no fluxo do festival. Depois de assistir a O grande dia, por exemplo, a suavidade de Mauricio Lima parece ainda mais politicamente efetiva que a atitude impositiva da outra peça. Depois de Experimento Concreto, as partituras coreográficas de Arqueologias do Futuro parecem irmãs da desenvoltura intelectual de Laís Machado: ambos os corpos estão intrinsecamente implicados pelo pensamento. Sem falar na ideia de “aparição”, deixada por Larissa Siqueira como um legado para a nossa sensibilidade desde Reencarnação Ao Vivo.

A peça tem muito a dizer sobre os “meninos” do museu, mas ao vermos as primeiras imagens projetadas no espaço, logo se conclui: já não são mais meninos. A questão é que não simplesmente cresceram. Sobreviveram. E se alguns desses homens empunham navalhas, é porque têm na barbearia um ofício que é bem mais que um ofício, como se vê no filme Deixa na régua, de Emílio Domingues, por exemplo. Não à toa, a navalha, primeiro artefato dessa visita guiada exclusiva, recebe tratamento de relíquia, com pedestal e redoma – porque esse espaço expositivo é ao mesmo tempo museu histórico e museu de arte, lugar de memória e lugar de criação. A dramaturgia multimodal deste Museu dos Meninos opera como a navalha na criação do solo Arqueologias do Futuro: se abre com um gesto aparentemente mínimo, devolve ao entorno a luz que a ilumina, ameaça quem se sente ameaçado, corta o que está em excesso, molda com precisão milimétrica as rotas que inscrevem identidades – tanto as compartilhadas como as singulares – e avança talhando beleza na visualidade da escrita de si.

Mauricio Lima. Foto Dayana Jacqueline.
Mauricio Lima. Foto Dayana Jacqueline.

Depois, outro artefato (não vou falar de todos!), a Rota de Fuga, também tem múltiplas leituras. Na contramão do que se esperaria da imagem de um percurso por essa rota, com o peso da história do Brasil, o artista não corre. Ele dança. A fuga, como diz Beatriz Nascimento em entrevista concedida a Januário Garcia em 1988, na qual ela propõe uma reflexão sobre o quilombo, a fuga pode ter um sentido quase musical: “o momento em que você se sente com total controle, que você não precisa fugir para um outro espaço, foge dentro daquele espaço, para entrar talvez, vamos dizer, num allegro adiante, num adágio adiante.”

Estilo polifônico de composição, a fuga (no meu entendimento precário e leigo) começa com uma voz isolada. Em seguida, aparece uma outra voz, que canta o mesmo tema, mas não em uníssono. O acompanhamento se dá no contraponto e outras vozes vão entrando, cada uma no seu tempo. Quando Mauricio Lima dança, ele não só escreve memória, mas abre o seu próprio caminho, sendo ao mesmo tempo uma voz que inicia um movimento para outras vozes, que vão entrar na música num próximo compasso, e uma voz que entra em cena porque outras tantas entraram antes. Recomeçar não é do zero.

E quando ele sampleia o conhecido poema de Victoria Santa Cruz, Me gritaron negra, não é apenas a artista afroperuana que está sendo referenciada, mas as meninas e mulheres que polinizaram a internet com esses versos, e talvez muito especialmente a atriz Tainah Longras, que aparece para quem tem na memória esse momento do teatro recente do Rio. Como aparece, para os espectadores de Favela Rouge, a coreografia final do espetáculo, reperformada no segredo da exposição em que nem tudo é literalmente exposto. Todo artefato desta exposição tem uma infinidade de história – e de projeção de futuro. Essa trama espessa de temporalidades forja uma cena preenchida de afetos tão inomináveis quanto reconhecíveis.

Para finalizar esse texto, ainda podemos lembrar do homem-bola, o Omolu de plástico, que nos move pela lembrança que salta em cada pessoa que, quando criança, ficava encantada (e irremediavelmente ainda fica) com aquela figura exuberante de cores e formas para além da estatura humana – seja nas vias da Alvorada ou nas praias de Copacabana. Assim, de quebra, ainda ganhamos na saída essa aparição que atravessa territórios e nos faz querer sair correndo na direção de uma felicidade silenciada pelo mundo dos adultos. A viatura da polícia, poluindo a paisagem do Largo da Ordem, veio marcar a presença do racismo, como se quisesse, mais uma vez, interromper e silenciar felicidades. Apesar dessa irrupção da realidade, parece que depois dessa aventura, saímos do teatro tendo desenterrado algum fóssil precioso de nossas sensibilidades. Saímos um pouco mais meninas, menines, meninos.

 

Para visitar o Museu dos meninoshttps://www.museudosmeninos.com.br/

A entrevista de Beatriz Nascimento, no canal da CULTNE no YouTube: https://youtu.be/6VmPjhOTozI

*Esta crítica foi publicada pela primeira vez no site do Festival de Curitiba.

Daniele Avila Small (Rio de Janeiro, 1976) é artista de teatro, crítica e curadora. É Doutora em Artes Cênicas pela UNIRIO e realiza seus projetos artísticos com o coletivo Complexo Duplo. Idealizadora e editora da Questão de Crítica desde 2008, é presidenta da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IATC).

Vol. XV nº 74, outubro a dezembro de 2023.

Foto em destaque: Dayana Jacqueline.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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