As breves aparições de beleza que levo comigo

Crítica de Reencarnação Ao Vivo, de Larissa Siqueira

1 de maio de 2023 Críticas

Pode até parecer muito distante, mas não é. A vivência traumática da pandemia de covid-19 foi logo ali e, certamente, ainda estamos lidando com suas marcas, embora o desejo seja o de esquecer aqueles dias de confinamento, dor, revolta e luto. Naquele março de 2020, o tempo parecia suspenso e era muito difícil imaginar um futuro, era como se de repente nos tivessem roubado todo o horizonte. Eu tive medo da morte, talvez você tenha tido e a artista Larissa Siqueira também teve. Como visitar o amanhã era assustador, muitas vezes, tudo o que tínhamos era a possibilidade de andar livremente por nossas memórias e, nelas, reencontrar afetos, momentos marcantes, paisagens e tocar, de algum modo, esse rastro de vida que cada pessoa leva atrás de si. Foi também isso que Larissa fez no processo de criação de sua obra Aparição (2020), criada no contexto dos editais públicos emergenciais voltados ao campo da cultura. Foi ali que, confrontada com o desafio de nomear o que criava (Live? Cinema? Teatro?), batizou de Aparição.  No ano seguinte, a artista cria Reencarnação (2021) a convite da curadoria da Plataforma Sul em sua edição dedicada às criações interessadas na linguagem da palestra-performance e realizada de modo totalmente on-line, em função das medidas de distanciamento social. Imagine uma mulher numa cozinha repleta de objetos, livros panelas geladeira refletor plantas fogão e suas histórias. Corta!

Estamos agora na última quarta-feira de março de 2023, na mostra de solos da 31ª edição do Festival de Curitiba. Entramos na Casa Hoffmann. Diante de nós estão a artista, uma mesa, cadeira, samambaia, fios, frutas, livros, verduras e refletores pelo chão. Enquanto vamos tomando nossos lugares, trechos em vídeo da obra Aparição e da versão on-line de Reencarnação são projetados numa tela ao fundo do palco, já inscrevendo as muitas camadas temporais do trabalho, abrindo o tempo e fazendo conviver espaços distintos. Tudo já começou e você mal percebe. Procedimento usual na palestra-performance, a atriz se apresenta e compartilha com o público informações sobre o contexto de criação do trabalho Reencarnação ao vivo (2023), configurando-o como uma desmontagem de sua criação anterior (Aparição). Um aspecto relevante nesse percurso é que essas criações colocadas em diálogo, lado a lado, compõem um tríptico com duas obras on-line e uma presencial:   Aparição (2020) – Reencarnação (2021) – Reencarnação ao vivo (2023).

De posse dessas informações, temos um primeiro movimento de alcance pedagógico em cena. A palestrante-performer opera como espécie de mediadora na aproximação dos espectadores com o projeto artístico, suas motivações, contexto histórico, procedimentos. O seu enunciado é preciso ao explicar que irá “mostrar as partes” que constituem a obra anterior, embora não tenha a expectativa de que as mesmas formem um todo. É nesse momento que também explicita algumas premissas, aquilo que, talvez, configure o triângulo de potência e risco dessa forma que emerge do atrito entre a palestra, a performance e o teatro: “o trabalho pode ser frio como uma palestra, pode ser mimético como o teatro e poder ser estranho como a performance”. Essa nova pista parece nos advertir de que não há um compromisso com a ideia de obra pronta e acabada e com a noção de eficácia.  Larissa assume em cena e em primeira pessoa o processo como obra, a cena como tempo-espaço da produção de pensamento da própria artista sobre a criação. Corta!

É a partir deste ponto que a atriz passa a compartilhar com os espectadores, uma a uma, as aparições que deram forma e sentido à sua obra Aparição: uma música de Gilberto Gil; a máquina fotográfica congelada do artista visual Marssares; a intervenção de outro artista da mesma geração, Ducha, que colocou uma cama de casal com Lara e seu marido à época dormindo na faixa de pedestres de uma grande avenida do centro do Rio de Janeiro; o impacto ao ver a atriz Janaína Leite e sua mãe Amália Fontes Leite no espetáculo Stabat Mater; o filme e o espetáculo Vaga Carne da atriz, dramaturga e diretora Grace Passô entre outras aparições. Uma delas é dedicada a um filme do cineasta Jonas Mekas, em que o artista registra o seu cotidiano, coisas aparentemente banais como um gato brincando. A atriz traduz o título do filme de Mekas, “As I Was Moving Ahead Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty”, por “eu vi breves aparições de beleza”, assim justificando o título do primeiro trabalho de sua trilogia.

Nessa verdadeira dança de suas aparições, conhecemos obras e artistas e também adentramos intimidades da história de vida de Larissa Siqueira, como no belo momento em que traça com os braços diagonais para explicar as direções das rodovias brasileiras e destacar a BR 101 cortando a cidade de Cariacica (ES), onde viveu parte da infância, pousando as mãos sobre o peito, porque na gente também vivem as estradas e os lugares. Conhecer essas aparições me fez lembrar de uma fala da cineasta Agnès Varda: “se você abrir uma pessoa, irá achar paisagens. Se me abrir, encontrará praias” (As Praias de Agnès, 2008). Reencarnação ao vivo é um abrir-se de Larissa e podemos encontrar pessoas, como o Manuelzinho que adorava vestidos com bico, muitas criações artísticas, paisagens, artistas e a menina que ela mesma foi, ali, diante de uma cama repleta de objetos variados esquecidos no motel de sua mãe, em que morou em sua infância, como quem vê uma exposição pela primeira vez. Corta!

Larissa Siqueira. Foto: Humberto Araújo.
Larissa Siqueira. Foto: Humberto Araújo.

Apresentar e expor essa espécie de coleção emerge como dispositivo que articula a Reencarnação ao vivo. Para além das possíveis leituras religiosas ou espiritualistas da palavra reencarnação, podemos tomá-la aqui de modo mais metafórico como um regressar à vida. É como se as aparições que marcaram a vida dessa mulher que está diante de nós pudessem ganhar nova forma e fôlego ao serem expostas nesse ato coletivo que é o teatro. O seu exercício expositivo dependeu, então, no processo criativo dessa palestra-performance, de movimentos como lembrar, rever, recordar, em que a memória foi acionada de muitos modos numa espiral de tempos sem hierarquias. A memória como motor da criação. Ou, se retomarmos o contexto em que Aparição foi criada, o ato de lembrar como pulsão de vida naqueles dias em que a morte parecia abraçar o mundo.

Todavia, o nosso jogo com o lembrar e o esquecer constituem procedimentos composicionais da memória, há escolhas, edições, sobreposições nesse processo que é também curatorial. Do que me lembro ou esqueço? O que escolho compartilhar? Como compartilhar? É dessas operações que resulta o seu reencarnar das aparições. Na minha apreciação do trabalho, suspeito de que os limites entre palestra, teatro e performance podem ser ainda mais escavados, subvertendo as premissas apontadas no início da peça. Como uma palestra pode ganhar mais calor? Como o teatro pode se permitir ser mais informal? Como a performance pode mobilizar esse corpo que carrega e narra suas aparições formadoras e transformadoras? São questões que me mobilizam a refletir sobre linhas de força apontadas na encenação e que podem ser potencializadas nesse exercício de transcriação de uma obra originalmente pensada para o ambiente virtual e que agora começa a ganhar outros espaços e o encontro presencial. Um exemplo desses possíveis desdobramentos poderia ser o de explorar formas de tirar maior proveito das camadas de tempo que seu tríptico oferece. São apontamentos que certamente não assustam essa artista que segue pensando junto e a partir de sua própria criação, em permanente movimento, como ficou evidente no debate realizado após a apresentação.  Corta!

Pode até parecer óbvio, mas não é. Reencarnação ao vivo, pode ser – também – uma aparição que nos leve a percorrer as redes que desenham um processo criativo, como nos propõe Cecilia Almeida Salles no seu livro Redes da criação: construção da obra de arte (Editora Horizonte, 2006). Uma compreensão de que cada artista vivencia um percurso construtivo entre o vir a ser e o dar-se a ver de uma obra. A ideia de rede procura enfatizar que se trata de um processo sem início ou fim precisos, dinâmico, não-linear e que está em permanente transformação porque se alimenta das interações e associações que cada artista estabelece entre suas próprias aparições.

Na minha experiência como espectador da peça, também não existe delimitação precisa de quando o espetáculo inicia ou termina, ele é movimento das águas sempre a correr, como o próprio projeto poético de uma artista ao longo da vida. O encontro com Larissa foi uma oportunidade de refletir sobre a criação, não exatamente folheando cadernos de artista, rascunhos de livros e pinturas ou outros documentos do processo. Larissa é, ao mesmo tempo, esse caderno que se abre e a performadora desse arquivo com suas breves aparições de beleza.  Belezas que ela decidiu não carregar mais sozinha, começou dividindo com Camilo Pellegrini, Daniele Avilla Small e Zaba Azevedo, colaboradores artísticos no projeto e que, agora, dividiu conosco.

*Esta crítica foi publicada pela primeira vez no site do Festival de Curitiba.

Francis Wilker é diretor teatral, professor efetivo do curso de Teatro da Universidade Federal do Ceará. Fundador e diretor artístico do grupo brasiliense Teatro do Concreto. Mestre e Doutor em Artes Cênicas pela ECA-USP. 

Vol. XV nº 74, outubro a dezembro de 2023.

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