Ensaio de descolonização do pensamento

3 de setembro de 2018 Críticas

“Bem te conheço, voz dispersa
nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apêlo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?”

Carlos Drummond de Andrade,
“As palavras e a terra”

  1. A mesura e o infamiliar

Ao entrar em sala de aula, o professor faz uma mesura exagerada. Dobra o corpo e leva o peito quase até o chão, como um bailarino. Ou uma garça. Já vi esse gesto em algum lugar, mas ele parece totalmente deslocado naquela situação prosaica. Eu próprio sou professor. Em vinte anos de profissão, não me lembro de alguma vez ter feito uma mesura dessas diante dos meus alunos. Tampouco me lembro de qualquer professor, dentre as dezenas ou centenas que já tive, fazendo uma mesura dessas. Se o cenário – uma sala de aula com um quadro negro ao fundo, uma cadeira e uma pequena mesa em primeiro plano – era a princípio de todos o mais familiar (Freud diria: heimlich), com uma leve torção (do corpo!) ele se torna imediatamente estranho, infamiliar (unheimlich). Lembra daquele travelling penetrando na grama perfeitamente verde de uma pequena e organizada cidade do interior no início de Veludo azul, do David Lynch? Lembra que ele termina com a imagem de uma orelha humana decepada? Lembra dessa orelha sendo invadida por uma gigantesca e a princípio invisível colônia de insetos?

  1. A sede e os silêncios

O professor enche o seu copo de água. Um gesto trivial. Uma ação meramente utilitária. As palavras, como as flores, também sentem sede. A língua, sem a devida lubrificação, murcha. A língua é um órgão sexual importante. A fala só é possível quando algumas condições materiais mínimas são satisfeitas. E, sempre o souberam os poderosos de todos os tempos, não é tão difícil assim insatisfazê-las. Na ausência dessas condições, reina (ou resta) o silêncio. Não o silêncio do elogio de Mallarmé à página em branco, não o silêncio meditabundo dos retiros espirituais da moda. Mas o silêncio do trauma. O silêncio das máscaras de Flandres. O silêncio dos choques. O silêncio eloquente dos silenciados. O silêncio dos suicidados pela sociedade, como o Van Gogh de Artaud.

O professor dirá, muito mais tarde, já em tom de conclusão: “Falar é existir. Isso aqui é uma maneira de existir. Se me silenciarem de novo, eu vou deixar de existir. Como fizeram todos eles.”

  1. Antes de Babel

Está lá no Evangelho de João: “No princípio era o verbo. E o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.” São João escrevia em grego: chamava o verbo de lógos. Lógos: o nome da palavra em ação. O nome do verbo. O nome do nome. Sim, no princípio era a palavra. E a palavra era Deus. E Deus, único ser cuja essência inclui a existência, e que por isso não pode morrer, nem nascer, mas só ser, como numa canção de Gilberto Gil, Deus, esse actus purus, estava em todas as coisas. E falava uma língua familiar. Tudo, aliás, falava uma língua familiar, uma língua que Eva e Adão, na sua nudez, na sua mudez, compreendiam perfeitamente. A gente faz amor por telepatia.

Mas isso foi no princípio. Antes da vergonha. Antes da Queda. Antes de Babel. Antes da expulsão do paraíso e da explosão das línguas. Antes do surgimento do problema da comunicação. Antes das intermináveis DRs.

Depois de Babel, a natureza deixou de ser Deus, ou língua materna, e tornou-se enigma. Instrumento (ou excremento) de comunicação.

A definição mesma da dor de ser moderno em uma frase: “A natureza é o hieróglifo da divindade cuja chave se perdeu.”

“Aquilo que sonhamos é qualquer coisa que já tivemos”, diz o professor.

  1. A (re)volta (im)possível

Mas é possível voltar?
Digamos que seja.
As religiões todas acreditam nisso.
Mas o que temos nós a ver com religiões?
Nossa pergunta não é essa.
Não pode ser.
Formulemos melhor.
É desejável voltar?
Se sim, desejável para quem?
E voltar como?
“Olha para a frente, menino”, diz o professor.
Então a tarefa é voltar olhando para a frente?
Seria esse o sentido de re-voltar?

  1. O transbordamento

O professor enche o seu copo de água. Estamos em um teatro, logo o professor deve ser um ator. Mesmo que não estivéssemos em um teatro, todo professor não tem um quê de ator? Não importa. Trata-se de um homem barbudo, com uma camisa social que logo estará molhada de suor, um paletó que é o figurino universal do professor europeu – todo professor não tem um quê de europeu? –, a camisa para dentro da calça, um sapato social. Os signos não poderiam ser mais claros. Do meu lado, Roland Barthes boceja. Qualquer um reconheceria de imediato esse personagem, ele me cochicha. Não, eu retruco. A mesura exagerada me perturba. Ela estabelece uma zona de indiscernibilidade entre o professor e o ator, o personagem e o performer, o jogo da ficção e o jogo da realidade. Em poucos segundos, a máquina de decifrar signos que alguns preferem chamar de “eu” começa a se aquecer. O suor do professor-ator me afeta. Sinto sede.

O professor enche o seu copo de água. Estou em casa, também costumo fazer isso antes de começar as aulas. Só que… Espera aí. O gesto é novamente infamiliar. A distância entre a jarra com a água que ele vai derramando dentro do copo e o próprio copo é muito maior do que seria necessário sob um ponto de vista meramente utilitário. Parece aquela performance da Eleonora Fabião, que passa a água de um jarro para o outro até ela evaporar. Mas aqui a mágica é outra. A ênfase está menos no gesto visível do que no som. O som da água lentamente enchendo o copo é amplificado pela distância artificial entre a origem e o destino do líquido que flui. Caberia aqui uma onomatopeia. Onomatopeia. (Onoma em grego é “nome”. Topeia eu não sei.)

O som da água enchendo o copo preenche a sala. O corpo todo do ator é uma só tensão. Mas o copo é uma medida ineficaz. O professor ignora o limite estabelecido por ele. A água começa a transbordar. O copo sua, a mesa sua, minha axila sua. Antes que tudo fique inundado, o performer interrompe o gesto. Deposita a jarra sobre a mesa, do lado do copo. Mas o som continua. Amplificado pelas caixas do teatro, instaura-se uma dissonância entre o que se vê e o que se ouve. O som continua. O copo segue transbordando. Onomatopeia. Neste momento em que escrevo, evocando o que vi dois meses atrás no Festival de Curitiba, ainda ouço o som da água transbordando. Sinto e sei que o som dessa água fluindo e escapando do recipiente que deveria contê-la é a metáfora central do espetáculo.

  1. Filosofia da linguagem

Colônia é um nome que não cabe em si. Nenhum nome, aliás, cabe em si. Nesta universalização, que parte de um nome específico para revelar a essência do nome em geral, resume-se toda a filosofia da linguagem do espetáculo. Os resumos são enganosos, eu sei, mas o medo do erro é o medo da verdade. Errar é, desde os gregos, a ação de percorrer labirintos.

Eu, que esperava ver uma peça de teatro, e logo me surpreendi assistindo à preparação de uma aula, que ainda poderia caber nesse copo com o rótulo “peça-palestra”, de repente ouço esse copo e esse corpo transbordarem – ainda está para ser escrita a metafísica do suor no teatro… Mais que uma peça, mais do que uma aula, mais do que uma peça-aula, Colônia é para mim, a despeito da ineficácia dos inevitáveis rótulos, uma peça musical. Variações em torno de um mesmo tema, de uma palavra – “colônia” – tornada mote inspirador.

Não o triunfo da vontade. Não o triunfo da lei e da ordem. Não o triunfo da metrópole. Não o triunfo da ciência e da lógica. Mas um triunfo outro. O triunfo do inconsciente. O triunfo do significante, do som que sempre transborda para além dos significados usuais. A apologia da metáfora como origem da linguagem.

  1. Verdade e mentira no sentido extra-moral: excurso nietzscheano  

“O que é uma palavra? A transposição sonora de uma excitação nervosa. Mas derivar de uma excitação nervosa uma causa primeira exterior a nós, isso já é uma aplicação falsa e injustificável do princípio da razão. Se a verdade tivesse sido o único fator determinante na gênese da linguagem e se a certeza fosse a fonte dos nomes, como teríamos então o direito de dizer, por exemplo, que esta pedra é dura, como se conhecêssemos o sentido de duro de outro modo que não fosse apenas por meio de uma excitação totalmente subjetiva? Classificamos as coisas segundo os gêneros, designamos o céu como masculino e a planta como feminino: que transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone da certeza! Falamos de uma serpente: a designação alcança somente o fato de se contorcer, o que poderia convir igualmente ao verme. Que delimitações arbitrárias, que parcialidade é preferir ora uma ora outra propriedade de uma coisa! As diferentes línguas, quando comparadas, mostram que as palavras nunca alcançam a verdade, nem uma expressão adequada; se fosse assim, não haveria efetivamente um número tão grande de línguas.

A coisa em si, enquanto objeto para aquele que cria uma linguagem, permanece totalmente incompreensível e absolutamente indigna de seus esforços. A linguagem designa somente as relações entre os homens e as coisas e, para exprimi-las, ela pede o auxílio das metáforas mais audaciosas. Transpor uma excitação nervosa numa imagem! Primeira metáfora. A imagem por sua vez é transformada num som! Segunda metáfora. A cada vez, um salto completo de uma esfera para outra completamente diferente e nova.

Acreditamos possuir algum saber sobre as coisas propriamente, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas não temos entretanto aí mais do que metáforas das coisas, as quais não correspondem absolutamente às entidades originais. O x enigmático da coisa em si é primeiramente captado como excitação nervosa, depois como imagem, afinal como som articulado. A gênese da linguagem não segue em todos os casos uma via lógica, e o conjunto de materiais que é, por conseguinte, a base a partir da qual o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, se não provém de Sírius, jamais provém em todo caso da essência das coisas.

Pensemos ainda uma vez, particularmente, na formação dos conceitos: toda palavra se torna imediatamente conceito, não na medida em que ela tem necessariamente de dar de algum modo a ideia da experiência original única e absolutamente singular a que deve o seu surgimento, mas quando lhe é necessário aplicar-se simultaneamente a um sem-número de casos mais ou menos semelhantes, ou seja, a casos que jamais são idênticos estritamente falando, portanto a casos totalmente diferentes. Todo conceito surge da postulação da identidade do não-idêntico. Assim como é evidente que uma folha não é nunca completamente idêntica à outra, é também bastante evidente que o conceito de folha foi formado a partir do abandono arbitrário destas características particulares e do esquecimento daquilo que diferencia um objeto de outro. (…)

O que é, portanto, a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são metáforas gastas que perderam a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas apenas como metal.

Enquanto toda metáfora da intuição é particular e sem igual, escapando sempre portanto a qualquer classificação, o grande edifício dos conceitos apresenta a estrita regularidade de um columbário romano, edifício de onde emana aquele rigor e frieza da lógica que são próprios das matemáticas. Aquele que estivesse impregnado desta frieza hesitaria em crer que mesmo o conceito duro como o osso e cúbico como um dado e como ele intercambiável acabasse por ser somente o resíduo de uma metáfora e que a ilusão própria a uma transposição estética de uma excitação nervosa em imagens, se não era a mãe, era entretanto a avó de tal conceito. (…) O homem conseguiu erigir uma catedral conceitual infinitamente complicada sobre fundações movediças, de qualquer maneira sobre água corrente. Na verdade, para encontrar um ponto de apoio em tais fundações, precisa-se de uma construção semelhante às teias de aranha, tão fina que possa seguir a corrente da onda que a empurra, tão resistente que não se deixe despedaçar à mercê dos ventos. Enquanto gênio da arquitetura, o homem supera em muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar com seus próprios meios. (…)

Foi somente o esquecimento desse mundo primitivo das metáforas, foi apenas a cristalização e a esclerose de um mar de imagens que surgiu originariamente como uma torrente escaldante da capacidade original da imaginação humana, foi unicamente a crença invencível em que este sol, esta janela, esta mesa são verdades em si, em suma, foi exclusivamente pelo fato de que o homem esqueceu que ele próprio é um sujeito e certamente um sujeito atuante criador e artista, foi isto que lhe permitiu viver beneficiado com alguma paz, com alguma segurança e com alguma lógica. (…)

Mas o próprio homem tem uma invencível tendência para se deixar enganar e fica como que enfeitiçado de felicidade quando o rapsodo lhe recita, como se fossem verdades, os contos épicos, ou quando um ator desempenhando o papel de um rei se mostra mais nobre no palco do que um rei na realidade. O intelecto, esse mestre da dissimulação, está aí tão livre e dispensado do trabalho de escravo que ordinariamente executou durante tanto tempo, que pode agora enganar sem trazer prejuízo; ele festeja então suas saturnais e não é mais exuberante, mais rico, mais soberbo, mais lesto e mais ambicioso senão aí. Com um prazer de criador, lança as metáforas desordenadamente e desloca os limites da abstração a tal ponto que pode designar o rio como o caminho que leva o homem aonde ele geralmente vai. Ele está livre então do sinal da servidão: empenhado habitualmente na sombria tarefa de indicar a um pobre indivíduo que aspira à existência o caminho e os meios de alcançá-lo, extorquindo para o seu senhor a presa e o produto do saque, ele agora tornou-se o senhor e pode então apagar do rosto a expressão da indigência. Tudo o que faz daí por diante, comparado com a maneira como agia antes, envolve a dissimulação, assim como o que fazia antes envolvia a distorção. Ele imita a vida do homem, mas a toma por uma boa coisa e parece estar com isso verdadeiramente satisfeito. Esta armadura e este chão gigantesco dos conceitos, aos quais o homem necessitado se agarra durante a vida para assim se salvar, não é para o intelecto liberado senão um andaime e um joguete para suas obras de arte mais audaciosas; e quando ele o quebra, o parte em pedaços e o reconstrói juntando ironicamente as peças mais disparatadas e separando as peças que se encaixam melhor, isto revela que ele não precisa mais daquele expediente da indigência e que não se encontra mais guiado pelos conceitos, mas pelas intuições. Nenhum caminho regular leva dessas intuições ao país dos esquemas fantasmagóricos, ao país das abstrações: para aquelas, a palavra ainda não foi forjada; o homem fica mudo quando as vê, ou só fala por metáforas proibidas e por encadeamentos conceituais até então inauditos, para responder de maneira criativa, pelo menos pelo escárnio e pela destruição das velhas barreiras conceituais, à impressão que dá o poder da intuição atual.”

Renato Livera em Colônia. Foto: renatolivera.com/colonia
Renato Livera em Colônia. Foto: renatolivera.com/colonia
  1. Metacrítica

Sei que abuso da paciência do leitor com uma citação tão longa. Poderia me justificar dizendo que, às vezes, as citações funcionam como ready-mades. Ou, no caso deste ensaio em particular, como os recortes de jornal ou pedaços da vida real que Braque e Picasso começaram a utilizar em suas colagens, início da ruptura da bidimensionalidade do quadro. Mas essas justificativas pedantes não seriam sinceras. Por mais que eu defenda uma estética aplicada que se recusa a reduzir o novo ao velho, o outro ao mesmo, uma experiência artística singular a mero simulacro de uma filosofia canônica, ainda assim preciso confessar que, assistindo à peça Colônia, o parentesco radical entre o experimento realizado pelo trio Renato Livera-Vinicius Arneiro-Gustavo Colombini e a filosofia da linguagem do jovem Nietzsche me apareceu como um fato (ou um fado) incontornável – e, claro, pouco importa se os autores tinham consciência disso ou não.

Para quem precisa de provas da legitimidade de uma associação livre, eis uma prova. O professor diz, possivelmente depois de ter lido o fragmento de Nietzsche citado acima, ou quiçá de ter ouvido uma palestra do dramaturgo argentino Rafael Spregelburd num Ted Talk: “O fim do mundo não é o fim do tempo. O fim do mundo é o fim das metáforas. Ao passo que atribuímos significado a todas as coisas, chegará o instante em que todas as coisas terão um significado. Quando todas as coisas tiverem um significado e o ser humano não puder mais treinar o seu pensamento para as metáforas, então ele se esvaziará. O fim do mundo não é o fim da humanidade. O fim do mundo é o fim das metáforas.”

  1. Pedagoginga

Por mais que eu tenha sentido o prazer de reconhecer um velho conhecido na obra desses três artistas, a verdade é que nunca tinha sentido no teatro um prazer semelhante ao que me tomou com o timbre e a velocidade da dicção encontrada pelo Renato, com seu tom virtualmente intraduzível na prosa deste ensaio. É preciso ver para crer. Ou crer para ver, na bela inversão da poetisa Simone Brantes.

Renato Livera, o professor-ator-performer dos fragmentos anteriores, dizia cada palavra literalmente saboreando-a. Dizia as palavras lentamente, mas sem morosidade ou monotonia, num ritmo distante de qualquer naturalismo, mas também de qualquer solenidade. Desde que ele abriu a boca ainda tendo ao fundo o som da água a transbordar, até o fim do espetáculo, era como se ele estivesse dizendo aquelas palavras pela primeira vez. Como se aquelas palavras nunca tivessem sido ditas. No teatro e fora dele. Ao contrário do que diz o texto de Gustavo Colombini, no caso de sua atuação, aliás indissociável da direção de Vinicius Arneiro, “o homem é sim uma medida eficaz”. Me pareceu como se ali, em cena, ele estivesse descobrindo um jeito novo de traduzir em sons articulados uma experiência até então inominável. A primeira e a segunda metáfora de que fala Nietzsche em Verdade e mentira no sentido extra-moral. Era como se, em sua boca, Renato ainda mastigasse o fruto proibido, antes da irrupção do Deus castrador. O saber como sabor em estado bruto. O prazer de descobrir uma articulação onde antes havia apenas balbucios. A dignidade de não temer o caos, o absurdo, a ausência de sentido. A confiança em uma totalidade jamais dada a priori, mas a ser descoberta. A poesia como registro da realidade in statu nascendi, como na pintura de Cézanne aos olhos de Merleau-Ponty. Assisti a uma peça teatral, ou musical, em que o texto parecia nascer junto, em absoluta simultaneidade pulsativa, pulsional, com a realidade nomeada. O conhecimento em sua manifestação mais radical, fiel à própria etimologia latina da palavra: conhecimento como co-nascimento.

O fluxo e a dança das palavras não se materializavam apenas em sua dicção, mas no modo como ele usava o quadro-negro no fundo da cena. “É preciso ter ainda caos dentro de si para poder dar à luz uma estrela dançante”. Professor-dançarino, o que talvez justifique a minha interpretação da sua mesura excessiva logo ao entrar em cena, ele ia riscando sobre o quadro fragmentos de palavras e imagens do que dizia, numa arquitetura aparentemente caótica, mas ciosamente orgânica, que traduzia também em letra o que tentava transpor sonoramente, em voz. A letra como imagem. Como marca. Rastro, vestígio, ruína. Imagem nascendo ali, diante de nós. Imagem nascendo ali, sem a coerção da lei, do sentido prévio, do ensinamento prescritivo, da mensagem, do dogma. Uma pedagogia toda feita de gesto e voz, sudorenta e transbordante. Por mais que os temas abordados fossem graves – o espetáculo parte do desejo de abordar a normalização e a aniquilação dos corpos nas colônias manicomiais e penais, como a Colônia de Barbacena ou a Colônia Juliano Moreira, e amplia essa reflexão para uma descrição da Cultura como Colonial – o “como” da dicção se sobrepunha ao “quê” tematicamente visado. A invenção de metáforas como puro movimento, como afirmação radical de que o percurso trans-positivo é tudo o que importa, para além dessas duas abstrações que são o ponto de partida (o original, o texto, o tema) e o produto (a tradução, a performance, a obra).

Em suma: a peça Colônia é a imagem mesmo da pedagoginga, na bela expressão do poeta e dramaturgo Allan da Rosa.

  1. Associação livre

Dramaturgicamente, é interessante evocar no fim deste ensaio o nome que aparece em seu fragmento inicial: Sigmund Freud. Para além da estranheza (Unheimlichkeit), característica das experiências estéticas dignas deste nome, provocada pela desnaturalização na articulação de cada palavra dita ao longo da peça e pelo imperativo de salvar a linguagem de seu rebaixamento a mero “instrumento de comunicação”, de normalização do sentido, de transmissão de conteúdos ou mensagens, o pai da psicanálise aparece também como muso inspirador na construção da dramaturgia.

O texto de Gustavo Colombini obedece estritamente ao princípio da associação livre: guiado pela sonoridade de algumas palavras recorrentes, sendo colônia o significante-mestre, ele costura os fragmentos de seu texto privilegiando a necessidade de construir massas sonoras e semânticas articuladas por associações a princípio disparatadas – os insetos sociais, a pornografia, os alpinistas, os loucos, os mortos, a cultura, a lei do copy right, os silenciados, os poetas, os amantes. Ao deixar de lado critérios impostos socialmente, o autor faz emergir algo outro. Se, a princípio, como Freud recomenda a seus analisandos, ele diz (1) o que vem à cabeça a partir da sonoridade das palavras que mobiliza e de suas infinitas possíveis associações; (2) o que não parece importante; (3) o que não parece fazer sentido; (4) e o que é vergonhoso, ao fim da sessão tudo tende a se articular. Não sabemos bem como, não somos capazes de linearizar a ordem dos fatores – o quadro-negro que restaria como vestígio é ao fim apagado pelo professor, legando-nos o gostoso exercício de reconstruí-lo por conta própria, mantendo as palavras e as coisas naquele estado de latência anterior à sua fixação em conceitos apaziguadores –, mas sabemos que há alguma promessa de felicidade neste trabalho que nos é legado: o trabalho de associarmos livremente nossas próprias impressões e associações com o fito de, quem sabe, produzirmos nós próprios algum tipo de alter-ação – em nós, é certo, mas mediatamente também no mundo. (A aceitação deste convite para trabalhar num sentido menos normal, aliás, responde pela estrutura descontínua deste texto, que talvez nem se pareça com uma crítica, embora o seja.)

A pedagoginga do espetáculo como um todo encontra nessa confiança no espectador, típica da poesia que merece este nome, a sua vocação política mais importante. A liberdade é algo que só se ensina, e se aprende, por contaminação. Para além dos padrões ditos normais de composição de uma “obra teatral”, há infinitas possibilidades outras. Para além dos padrões ditos normais de comportamento social, há toda uma vida a desbravar. Novas metáforas a inventar. Assim, o que se realiza no plano da forma do espetáculo, apresentado em flashes até aqui, culmina forçosamente em evidente posicionamento político: a busca por um pensamento não colonizado, por uma descolonização de nossos hábitos mentais e sociais, tão em voga nos dias de hoje, tende a ser mais eficaz no plano da contaminação pelo gesto e da aceitação do fluxo caótico da vida do que no plano, ao fim e ao cabo normalizador, dos discursos politicamente corretos.

A revolta como fluxo, ginga do corpo, movimento imparável, transbordamento, e, por que não, alegria. Ou, nas palavras derradeiras do “professor”:

“Três mil toneladas de palavra morta, silenciada.
A memória.
Eu nunca vou esquecer, ele disse.
Olha pra frente, menino.
Quem olha pra frente não sabe a sorte que tem.
O amor faz o seu trabalho.
O amor.
O amor, ele disse.
O amor.” 

Apêndice. Prova de múltipla escolha

Na hora de sair da sala de espetáculo, o professor me entregou o seguinte questionário:

“Sabendo que a chave para a decifração do hieróglifo da divindade, a chave com a maiúsculo, está definitivamente perdida, o que fazer?
(A) Mentir e fingir que a chave não se perdeu, que Deus não morreu.
(B) Choramingar e viver como um moderno nostálgico do absoluto.
(C) Dar uma risada dos diabos e viver como um pós-moderno bem resolvido.
(D) Inventar metáforas.
(E) Nenhuma das opções acima.
(F) Todas as opções acima.
(G) Outras.”

Patrick Pessoa é professor de filosofia da UFF, crítico de teatro e dramaturgo.

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