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Ensaio de descolonização do pensamento
“Bem te conheço, voz dispersa
nas quebradas,
manténs vivas as coisas
nomeadas.
Que seria delas sem o apêlo
à existência,
e quantas feneceram em sigilo
se a essência
é o nome, segredo que recolho
para gerir o mundo no meu verso?
para viver eu mesmo de palavra?
para vos ressuscitar a todos, mortos
esvaídos no espaço, nos compêndios?”
Carlos Drummond de Andrade,
“As palavras e a terra”
- A mesura e o infamiliar
Ao entrar em sala de aula, o professor faz uma mesura exagerada. Dobra o corpo e leva o peito quase até o chão, como um bailarino. Ou uma garça. Já vi esse gesto em algum lugar, mas ele parece totalmente deslocado naquela situação prosaica. Eu próprio sou professor. Em vinte anos de profissão, não me lembro de alguma vez ter feito uma mesura dessas diante dos meus alunos. Tampouco me lembro de qualquer professor, dentre as dezenas ou centenas que já tive, fazendo uma mesura dessas. Se o cenário – uma sala de aula com um quadro negro ao fundo, uma cadeira e uma pequena mesa em primeiro plano – era a princípio de todos o mais familiar (Freud diria: heimlich), com uma leve torção (do corpo!) ele se torna imediatamente estranho, infamiliar (unheimlich). Lembra daquele travelling penetrando na grama perfeitamente verde de uma pequena e organizada cidade do interior no início de Veludo azul, do David Lynch? Lembra que ele termina com a imagem de uma orelha humana decepada? Lembra dessa orelha sendo invadida por uma gigantesca e a princípio invisível colônia de insetos?