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CEAK: Formação, pesquisa e resistência
A atriz Tainah Longras conversa com a atriz e diretora Ana Kfouri sobre o CEAK – Centro de Estudos Ana Kfouri, espaço aberto em 2017 no Cosme Velho, no Rio de Janeiro.
TAINAH LONGRAS: O CEAK não é o primeiro espaço de pesquisa cênica que esteve sob sua orientação. Antes dele, você coordenou o CEAE – Centro de Estudo Artístico Experimental, no SESC Tijuca, por 9 anos. Como essa experiência ajudou a concretizar o projeto de um espaço próprio?
ANA KFOURI: São épocas e projetos muito distintos, mas penso que interligados pelo desejo e pela determinação de serem voltados à investigação artística. O CEAE tinha a parceria valiosa do Sesc Rio e, assim sendo, pudemos realizar eventos e projetos na maioria das vezes gratuitos, ou a preço popular, como espetáculos, leituras, debates, oficinas, solos e seminários. O CEAE fomentou a pesquisa artística e integrou atores, estudantes e espectadores com projetos como Cotidiano na Ribalta, Quartas Cênicas, Solos, Seminários, Conversando com… sobre…, Mostra Universitária, Mostra Novíssimas Pesquisas Cênicas, Palco de experimentação. Foram lindos tempos nos quais pudemos atender a diversas tendências artísticas nas áreas de teatro, dança, música e poesia, contribuindo para a formação e para o aumento de um público interessado em participar de atividades artísticas que fugiam do padrão convencional no bairro da Tijuca. Que beleza! Outros tempos…
Duo Beckett
O Projeto Beckett, idealizado por Ana Kfouri, põe em cena duas concepções de espetáculo, explorando o universo ficcional do autor de Godot.
A relação de Ana Kfouri e Isabel Cavalcanti com Beckett não é nova. Em meio à diversidade de projetos e atividades ao longo da carreira (as duas alternam as funções de atriz, diretora e pesquisadora) Samuel Beckett figura, na produção das artistas, de forma expressiva e recorrente.
Ana Kfouri, em 1989, estreou Ponto Limite, sua primeira, de muitas incursões, no universo beckettiano. O texto, escrito em parceria com Lu Grimaldi, contava com a direção de Paulo José e dialogava com a peça que tornou o autor conhecido mundialmente, Esperando Godot. Em 2000, foi a vez da encenação de O Gordo e O Magro Vão Para O Céu, de Paul Auster, autor americano, cujos trabalhos têm, como referência declarada, a obra de Samuel Beckett.
Eu, ele, e o conflito
“Aí está uma das razões pelas quais evito falar tanto quanto possível. Porque sempre falo demais ou de menos, o que sempre me faz sofrer […]”.
Samuel Beckett, em Molloy
Falar de Beckett é deixar ver suas lacunas. Moi Lui, adaptação de Isabel Cavalcanti do romance Molloy, está em cartaz no Poeirinha, como parte do “Projeto Beckett”, no qual a atriz Ana Kfouri encena duas peças a partir de obras do autor; a dramaturgia Primeiro Amor, e a adaptação em questão.
Lugar-memória, corpo-solidão
Entrar no teatro Poeirinha e mais uma vez ser recebida por um espaço modificado, por outra concepção cênica, que provoca aquela sensação rápida de lugar desconhecido, e que em poucos segundos a memória se organiza e reconhece. O Poeirinha (assim como as salas ditas alternativas) coloca o artista em contato com um espaço totalmente amorfo, e por isso, está sempre apresentando ao público um “lugar” novo. As criações que se apresentam neste espaço parecem surgir, ou se aventurar, por um lugar não definido, não caraterístico e sem similitude com outros espaços de representação. Escrito isto, penso que o espetáculo Primeiro amor, de Samuel Beckett, dirigido por Antonio Guedes, assim como o espaço cênico, nos coloca estes dois pontos para a percepção: o esforço da memória para se lembrar dos fatos vividos e a narrativa construída sobre o chão de um lugar qualquer.
Pulsões de morte transbordam na Guanabara
A presença do mar, que se impõe como personagem em Senhora dos Afogados, norteou a diretora Ana Kfouri na escolha do espaço para encenar sua versão da peça de Nelson Rodrigues: o restaurante Albamar, de frente para a Baía de Guanabara. A diretora afasta o espaço de sua utilidade cotidiana. O Albamar não é evocado como restaurante. Seu amplo salão é aproveitado para reconstituir a casa da família Drummond.
Ana Kfouri caminha em sentido contrário ao da abordagem de um grupo como o Teatro da Vertigem, conduzido por Antonio Araujo, que dialoga em níveis variados com a literalidade dos espaços não-convencionais escolhidos para apresentar seus espetáculos. A carga inerente a cada um dos espaços – a igreja em O paraíso perdido, o hospital em O livro de Jó e o presídio em Apocalipse 1,11, montagens que formam a Trilogia Bíblica – torna-se texto (enquanto portador de significado), elemento determinante à apreciação da plateia, assim como o Rio Tietê (ou a Baía de Guanabara, na temporada carioca) de BR 3, encenação em que o Vertigem abordava o espaço não-convencional mais como metáfora (das mazelas brasileiras) do que pela via do literal. Uma perspectiva também diferente dessa nova leitura de Senhora dos Afogados, que não interage com a utilização cotidiana do espaço, restringindo a esfera literal às cenas ambientadas no cais, particularmente a das prostitutas, que encerra o espetáculo.