CEAK: Formação, pesquisa e resistência

Conversa com Ana Kfouri

28 de abril de 2018 Conversas e

A atriz Tainah Longras conversa com a atriz e diretora Ana Kfouri sobre o CEAK – Centro de Estudos Ana Kfouri, espaço aberto em 2017 no Cosme Velho, no Rio de Janeiro.

TAINAH LONGRAS: O CEAK não é o primeiro espaço de pesquisa cênica que esteve sob sua orientação. Antes dele, você coordenou o CEAE – Centro de Estudo Artístico Experimental, no SESC Tijuca, por 9 anos. Como essa experiência ajudou a concretizar o projeto de um espaço próprio?

ANA KFOURI: São épocas e projetos muito distintos, mas penso que interligados pelo desejo e pela determinação de serem voltados à investigação artística. O CEAE tinha a parceria valiosa do Sesc Rio e, assim sendo, pudemos realizar eventos e projetos na maioria das vezes gratuitos, ou a preço popular, como espetáculos, leituras, debates, oficinas, solos e seminários. O CEAE fomentou a pesquisa artística e integrou atores, estudantes e espectadores com projetos como Cotidiano na Ribalta, Quartas Cênicas, Solos, Seminários, Conversando com… sobre…, Mostra Universitária, Mostra Novíssimas Pesquisas Cênicas, Palco de experimentação. Foram lindos tempos nos quais pudemos atender a diversas tendências artísticas nas áreas de teatro, dança, música e poesia, contribuindo para a formação e para o aumento de um público interessado em participar de atividades artísticas que fugiam do padrão convencional no bairro da Tijuca. Que beleza! Outros tempos… Imagina, e a Escola Livre de Artes, que integrava o projeto, contou durante os 9 anos que durou o projeto, com aproximadamente 300 alunos, formando e transformando a vida de muitas crianças, adolescentes e jovens, e muitos deles hoje cursam ou cursaram com êxito faculdades de teatro como as da UNIRIO, da UFRJ e da PUC. Falo um pouquinho porque me alegro em ver a repercussão, ainda hoje, de muitos artistas e estudantes que passaram pelo CEAE. Acho que o projeto foi referência no Rio pela qualidade da programação oferecida e por seu caráter democrático e experimental. Os artistas (jovens e veteranos) tinham espaço, e o público, programação de qualidade garantida. Lógico que a experiência com o CEAE repercute na minha trajetória e me atravessa com toda a sua potência. Lindamente. Mas com o CEAK os papéis se invertem. Inaugurei um espaço particular, pela minha determinação, dedicação e empenho sempre em prol do estímulo e da valorização da pesquisa de linguagem artística. Então, preciso começar devagar para ir dando conta aos poucos do que poderemos realizar no CEAK. O projeto é um investimento e um ato de amor e de resistência em tempos tão difíceis. Quem sabe, tendo um espaço e uma trajetória longa dedicada à investigação artística e à formação, algum órgão institucional, quando os fascistas forem embora, possa ter a visão e o interesse de uma parceria? Este é só um pensamento, e uma possibilidade que pode se dar ou não mais para a frente. Neste início do CEAK pretendo, além de ministrar oficinas, convidar artistas, pesquisadores e intelectuais para workshops, como fizemos em fevereiro com a Maíra Gerstner, artista, pesquisadora, educadora e terapeuta. Ela deu um intensivo no CEAK – O corpo como território do sensível & Curadoria de si – antes de ir para o doutorado fora do país. Pretendemos também fazer grupos de estudos e abrir o espaço para processos. Em março, tivemos a Cristina Mayrink com a A dama do mar em processo, livremente inspirado na obra de Ibsen, com direção de Isabel Cavalcanti. Fico muito feliz destas mulheres artistas que tanto admiro inaugurarem o espaço de processos do CEAK. Lembrando que a Cris foi uma das artistas que ganhou o Fomento em 2016 para montagem e não levou! Como todos os vencedores que tiveram o desgosto de vivenciar esta situação vergonhosa que a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro protagonizou. É surreal a situação política em que vivemos atualmente e no Rio de Janeiro, então, é catastrófica, do âmbito, digamos, religioso-abismal. Os artistas levam muito tempo criando seus projetos, com muita dedicação, entram nos editais, e quando ganham, não ganham? Enfim, fora a indignação, me alegro que o CEAK possa vir a ser também um espaço para receber processos de trabalhos artísticos investigativos. Desta forma estaremos promovendo a interlocução com pessoas interessadas em assistir experiências processuais, em debater questões dos nossos tempos e interagir com a arte, e a partir da arte, criando um ambiente de convivência e de reflexão conjunta, muito saudável e importante para todos, artistas e espectadores. Pensar junto, fazer junto, prazer junto, discutir, conversar, falar, ouvir.

TAINAH: Você descreve o CEAK como um espaço dedicado à experimentação e à pesquisa de linguagem artística, que tem o intuito de entrecruzar saberes prático-teóricos dos campos das artes cênicas, das artes visuais, da literatura e da filosofia. Essa descrição me parece refletida na sua própria experiência como artista e professora. De que maneira esse espaço é extensão da sua pesquisa artística?

ANA: É isso, o CEAK é uma extensão, uma continuidade, um pedaço de mim, um braço, uma perna, um dorso, corpos ganhando espaço, dando espaço para invenções, estudos, projetos, alegrias, aprofundamentos. Os estudos e práticas se entrelaçam, se atravessam, quero aproximar pessoas das áreas da filosofia, da literatura, da dança, da música, áreas que sempre me impulsionaram para a cena e para uma compreensão mais profunda do meu ser artista. Desejo lançar meus livros no CEAK, a minha tese de doutorado, Forças de um corpo vazado, e um outro livro sobre a minha técnica, que venho desenvolvendo e aplicando há anos, Focos móveis, com a conceituação, imagens e descrição dos exercícios e dinâmicas. E também realizar lançamentos de outros artistas e intelectuais, como fizemos na inauguração do CEAK, em 11 de novembro de 2017, uma noite com sarau e lançamento dos livros de Angela Leite Lopes, Marcelo Jacques de Moraes e Silvana Garcia, pensadores que tanto admiro.

TAINAH: Você considera o CEAK um espaço de formação? E acha que o Rio de Janeiro carece de espaços de formação mais voltados à pesquisa e experimentação?

ANA: Sim, em sua latência pulsam pesquisa de linguagem, experimentação e formação. Precisamos de tempo, lógico, além de dedicação e determinação para o espaço se tornar realmente um espaço de formação. Enquanto não temos ainda parcerias que viabilizem, por exemplo, oficinas gratuitas dedicadas a pessoas com baixo poder aquisitivo, a nossa proposta é sempre ter uma cota para bolsistas, para o CEAK receber estudantes e artistas que não teriam acesso ao espaço e às oficinas. Sim, o Rio carece de espaços de formação voltados à pesquisa de linguagem. A arte por si só é um espaço político, que faz pensar, questionar, estranhar. E quando você fala em espaço de formação e acesso à pesquisa de linguagem artística, em suas variadas e múltiplas formas, o assunto parece desinteressante, não mobiliza terceiros no sentido político, ou seja, não há vontade política para fomentar a pesquisa artística e muito menos a formação em artes. É só ver o que está acontecendo com as universidades públicas. Imagina então o descaso com a pesquisa artística. De toda forma, um espaço voltado à formação e à investigação artística potencializa o outro, o indivíduo e o coletivo, estimula as pessoas a desenvolverem pensamento próprio, a trilharem e a criarem seus próprios projetos e percursos. Quem está interessado nisso? Para que isso aconteça é preciso um governo com visão e compreensão da importância do investimento no universo simbólico das pessoas (todas) com projetos contínuos de arte. Mas como pensar isso hoje? Se vivemos o disparate de um governo golpista, que atua na ilegitimidade, e estamos sofrendo uma indecorosa ação de desmonte de todos os programas sociais e culturais construídos na última década? Espaço de formação para pesquisa de linguagem artística? Para quê? Se agora o lema é terceirizar, perder o que é nosso, despotencializar as áreas da saúde, da cultura e da educação. Vergonha! Mas a arte é potência, estimula o pensamento próprio, a autoestima e a geração jovem, que está aí, dará seu recado. E nós continuaremos a fazer a nossa parte, a nossa micropolítica, dando a ver um pouco de afirmatividade em tempos tão obscuros. A diversidade artística existente no Rio de Janeiro ainda vigora nos dias de hoje devido à resistência de artistas que atuam mesmo com o desmonte abismal imposto pelo atual (des)governo. Resistência de artistas e de espectadores, pois não fazemos arte sozinhos, muito menos para o outro, e sim com o outro, e muitas vezes com e contra o outro. Acho importante, neste momento, realizar ações “menores”, pensar o sucesso como algo “menor”, cada vez menos espetacular, cada vez menos global, e sim como focos de força e de resistência, aqui e lá, acolá, campos de afirmação e de afeto, revelando em cada ação o poder de transformação e de conscientização que a arte provoca e gera no mundo.

TAINAH: Ainda na descrição do espaço, você afirma que “compreende a experiência artística como um lugar de potência e, portanto, de interferência diferenciada no mundo de hoje.” Qual é a relevância de um espaço de experimentação artística no Brasil atualmente?

ANA: Acho que iniciei brevemente este assunto na pergunta anterior. A arte deveria ser um direito sinequanon de todo cidadão. Porque as pessoas deveriam ter a oportunidade da convivência com a arte em seu dia a dia, de experimentar vivências, práticas e estudos artísticos. Isso não resultaria necessariamente em se tornarem artistas, lógico que não, mas seriam pessoas mais arejadas, mais alegres, mais conscientes, mais críticas, estimuladas a produzir pensamento próprio, seriam também excelentes interlocutores nas questões que abrangem a sociedade, além do contato com a arte poder estimular a autoestima e o contato consigo mesmo e com o outro no cotidiano de cada um. Mas as pessoas precisam ter acesso a isso! A abertura de um espaço dedicado à experimentação hoje é um ato de alto risco e fundamental. A experimentação artística abre brechas no pensamento-corpo, pensamento-ação, nos potencializa sensorialmente, cognitivamente, afetivamente. Este é um grande diferencial no percurso do nosso autoconhecimento, no conhecimento e na escuta do outro, que é o que mais urge atualmente em nosso país. A arte sempre será uma força potencializadora de atuação e de interferência diferenciada na sociedade. Resistiremos! Artistas e espectadores. Presencialmente.

Ana Kfouri no CEAK. Foto: Dalton Valério.
Ana Kfouri no CEAK. Foto: Dalton Valerio.

Ana Kfouri é diretora teatral, atriz e pesquisadora. Mestre em Teatro pela Unirio, doutora em Artes Visuais pela UFRJ, e atualmente professora e coordenadora do Curso de Artes Cênicas da PUC Rio.

CEAK – CENTRO DE ESTUDOS ANA KFOURI
Endereço: Rua Filinto de Almeida 109 / 101 – Cosme Velho
https://www.facebook.com/centrodeestudosanakfouri/

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores