Duo Beckett

Conversa com Ana Kfouri e Isabel Cavalcanti sobre o Projeto Beckett

31 de março de 2014 Conversas
Cena de Moi Lui, do Projeto Beckett. Foto: Dalton Valerio.

O Projeto Beckett, idealizado por Ana Kfouri, põe em cena duas concepções de espetáculo, explorando o universo ficcional do autor de Godot.

A relação de Ana Kfouri e Isabel Cavalcanti com Beckett não é nova. Em meio à diversidade de projetos e atividades ao longo da carreira (as duas alternam as funções de atriz, diretora e pesquisadora) Samuel Beckett figura, na produção das artistas, de forma expressiva e recorrente.

Ana Kfouri, em 1989, estreou Ponto Limite, sua primeira, de muitas incursões, no universo beckettiano. O texto, escrito em parceria com Lu Grimaldi, contava com a direção de Paulo José e dialogava com a peça que tornou o autor conhecido mundialmente, Esperando Godot. Em 2000, foi a vez da encenação de O Gordo e O Magro Vão Para O Céu, de Paul Auster, autor americano, cujos trabalhos têm, como referência declarada, a obra de Samuel Beckett.

Mais tarde, como professora da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), dirigiu Como passa o tempo quando a gente se diverte, que também dialogava com o universo do escritor irlandês. Agora, Ana Kfouri está novamente com o autor, em um projeto idealizado por ela. De volta ao trabalho de atriz, desde a encenação de Valère Novarina, em 2009, protagoniza as duas peças do Projeto Beckett: Primeiro Amor e Moi Lui.

Já Isabel Cavalcanti se detém sobre a obra de Beckett há quase quinze anos. Além de pesquisadora de suas peças, já atuou e dirigiu diversos espetáculos do autor. Isabel é autora do livro Eu Que Não estou Aí Onde Estou: O Teatro de Samuel Beckett (1), publicado pela 7 Letras. Foi também co-curadora e idealizadora do Festival Beckett 100 Anos, realizado no Oi Futuro e no CCBB/Rio em 2006; além de intérprete do personagem Clov na peça Fim de Partida, que cumpriu temporada de êxito em 2007, no Espaço SESC no Rio de Janeiro.

Em 2009, Isabel dirigiu Sérgio Britto em Ato Sem Palavras 1 e A última gravação de Krapp (2), que conferiu ao ator o Prêmio Shell por sua atuação, naquele mesmo ano.

Primeiro Amor e Moi Lui, que já tiveram temporada no Rio de Janeiro, no Teatro Poeirinha, seguiram para solo paulista. De 14 a 30 de março, a peça Primeiro Amor fica em cartaz no Sesc Pompeia. Do dia 04 a 20 de abril será a vez de Moi Lui, no mesmo espaço. Depois disso, outra temporada no CIT – Ecum, também em São Paulo, na qual as duas peças serão encenadas, de 26 de abril a 01 de Junho, aos sábados e domingos. Assina a direção de Primeiro Amor, Antonio Guedes; e Moi Lui, Isabel Cavalcanti, que, além da direção, é responsável pela dramaturgia da peça. A entrevista que segue é uma conversa com as artistas sobre a concepção dos dois espetáculos, a partir da perspectiva da atriz – no caso de Ana Kfouri – e da diretora e dramaturga, Isabel Cavalcanti.

ANA KFOURI

CASSIANA: Fale-nos um pouco do Projeto Beckett, que agora está em cartaz em São Paulo.

ANA: Pensei, desde o começo, não em uma peça, ou duas peças, mas em um projeto Beckett. No desafio e no desejo de realizar um projeto Beckett. E um fator determinante foi a parceria com os diretores Antonio Guedes e Isabel Cavalcanti. Cada qual a seu modo criou e pensou a cena beckettiana em duas montagens completamente distintas.

CASSIANA: Por que a escolha de textos narrativos e não textos escritos para o teatro?

ANA: Primeiramente, isso tem a ver com minha trajetória. Beckett sempre foi um chamamento, só que, agora, é como atriz que estou com vontade de falar isso. Na verdade, eu sempre trabalhei com textos narrativos e se você olhar minha trajetória é possível observar que quase só trabalhei com textos que apresentam essa característica. A Hilda Hilst me indagava: “Por que você não encena também meus textos para o teatro?” Na verdade não tenho nada contra textos teatrais, já encenei alguns, lógico, mas posso dizer, sendo um pouco radical, que minha preferência sempre se deu por textos narrativos, por esse tipo de discurso. Eu dirigi durante anos e voltei a atuar quando encenei Valère Novarina (3), que possuía um discurso muito difícil, diferente de Beckett, mas também dessa corrente não psicológica, que me agrada muito, na qual “a fala fala por si”. Então, quando eu quis fazer o Beckett, desta vez, muito movida por esse espírito da atriz que voltou, eu pensei direto nos textos narrativos dele.

CASSIANA: Primeiro Amor não foi um texto escrito para o teatro, é uma novela. O foco narrativo é em primeira pessoa, o que, em outras circunstâncias, talvez fosse uma vantagem para a construção de um monólogo. No entanto, sabemos que em Beckett isso não facilita nada, já que o personagem vai se desconstruindo, não fixa nenhuma máscara. Como é, para o ator, lidar com texto como esse?

ANA: O Primeiro amor é de uma aridez absoluta e é incrível como o personagem vai ganhando humanidade à medida que sua incompetência, frente ao abismo de conhecer e vivenciar o amor, vai sendo tecida. Mas nunca se falou em “personagem” ao longo dos ensaios. Essa palavra nunca foi dita. Para nós o que existe é uma fala, um discurso que vai se construindo ao falar. Tem uma coisa que é falada na peça – é óbvio que estou dizendo isso agora, porque na hora que você está fazendo ou você fala ou não fala, mas a frase é: “eu só devo ter compreendido o sentido dessas palavras ou mesmo do pequeno ruído que elas produziram alguns segundos depois de pronunciá-las”. E acho que é isso mesmo: os sentidos vêm a posteriori, ou quase, é um limite muito tênue. E é muito difícil por um lado, e desafiador por outro, porque as coisas acontecem ou não. A peça é isso: ela se apoia em uma narração e em uma atriz que está falando. É o desejo de falar associado ao desejo do espectador de ouvir. É esse o jogo da cena. Existe, do nosso lado, a compreensão do texto e do universo de Beckett como potência, a fala entendida como corpo, pulsação, ritmo, e o corpo contido, presente pela respiração e tensão, enfim, uma interlocução com o outro pontuada pela fala e pelo olhar. O diretor Antonio Guedes concentrou todas as forças da cena no jogo seco e direto entre o texto, a atriz e o espectador. E a fala vai construindo sentidos, a fala como potência, na qual se abrem sentidos, espraiados ao longo da encenação. É lógico que há um personagem ali, nesse discurso masculino, mas isso não foi pensado, não houve uma intenção prévia na construção desse personagem. Nada prepara aquele falar discursivo, ele se dá no desenrolar e na fluência sonoros, no âmbito seguinte de sua enunciação. Mas claro que há uma preparação prévia, muito anterior ao momento cênico. O que inexiste, em ambos os casos, tanto na parte dos ensaios quanto no momento da atuação, é uma condução psicológica. O que de fato prepara o nada que antecede a fala em cena é a experiência do corpo, no sentido de que aquele corpo, o do ator, já está todo atravessado por aquele texto, as palavras estão circunscritas nele, vazando por seus poros, pele, buracos e, a partir daí, ele pode jogar e propor jogar com o outro corpo, o do espectador.

Ana Kfouri em Primeiro Amor. Foto: Dalton Valerio.

CASSIANA: Eu me lembro de um momento da peça em que você se levanta. É um corte violento, parece que você vai sair andando, não sei… (risos)

ANA: Sim. A platéia parece que sente medo de mim nessa hora. (risos) Houve uma longa discussão entre o Antonio Guedes e eu a respeito dessa levantada. Na verdade, eu não queria me levantar, de jeito nenhum (risos), mas para cada argumento que eu tinha, o diretor acabava por me dar outro ainda mais convincente de que eu deveria fazer desse modo. Ele estava totalmente convicto de que eu deveria me levantar. Ficou assim e as pessoas parecem gostar, sempre mencionam esse momento e eu fico feliz que funcione.

CASSIANA: Qual a diferença na composição da dramaturgia em cada uma das peças?

ANA: A diferença é que Primeiro Amor é a novela do Beckett. Sem tirar nem por. E ela deve ser montada dessa maneira, pois é a única narrativa de Beckett em que não há problemas na hora de obter os direitos, porque é curta. Ela é montada no mundo inteiro, embora haja restrições, pois ele não permitem “cena”, e sim “leitura”. A dramaturgia é o texto do Beckett na íntegra. E a dramaturgia de Moi Lui já é outra coisa. A Bebel [Isabel Cavalcanti] que escreveu, inspirada no Molloy. Eu gosto muito da maneira como ela concebeu a dramaturgia (os recortes que ela elegeu do Molloy) e também de como ela conduziu a cena. Uma conquista que foi se dando aos poucos, durante os ensaios, e resultou em algo muito singular. O universo de Beckett está ali, dialogando ao mesmo tempo com toda a experiência dela e com a nossa. E adoro o nome, Moi Lui, porque traz esse jogo sonoro; traz o nome do Molloy e brinca com a primeira e a terceira pessoa como se dá no francês.

CASSIANA: E como foi fazer trabalhos concebidos de maneira tão diferentes, no que diz respeito à dramaturgia?

ANA: É muito legal estar fazendo essas duas peças. Primeiro eu fiquei muito assustada. Mas tinha que dar conta dessa minha invenção. Quando comecei ensaiar Moi Lui, eu já tinha estreado Primeiro Amor, estava em cartaz, foi difícil, pois são textos muitos intensos, que exigem muito do ator. Mas aí eu comecei a entender cada um e percebi que são corpos totalmente diferentes. São duas peças em que me sinto totalmente no universo de Beckett e, que, entretanto, são completamente distintas. Enquanto em Primeiro Amor tem um espaço me apertando, como o Antonio Guedes concebeu, e que é muito legal, com aquelas arquibancadas quase me encurralando; em Moi Lui há a criação de um isolamento, de um certo abandono no espaço, um alargamento do espaço, que é muito interessante. Em Primeiro Amor, eu fico sentada direto falando, sinto muito essa coisa da contenção, desse enfrentamento, dessa aridez, ainda que tenha humor também ali. No Moi Lui eu ando, fico sentada de costas, deito, tomo água, e há também uma coisa muito forte dessa questão corpórea, que eu fui compreendendo aos poucos, que é um corpo abandonado.

CASSIANA: Ana, você poderia falar, como atriz, sobre a concepção do espaço em Moi Lui?

ANA: O espaçamento, da maneira que a Bebel concebeu desde o começo, parece que intensifica a solidão do personagem. Eu me sinto totalmente isolada e ao mesmo tempo é tão poético, não é uma coisa pesada, acho interessante a criação desse tipo de isolamento. E o corpo é um corpo abandonado. A certa altura, no processo, eu pude dizer “agora estou entendo o que é estar em atividade para nada”, como Deleuze fala naquele ensaio O Esgotado. E é bonito assim, porque eu realmente comecei a entender isso, “o que é estar em atividade para nada.” É um outro corpo, completamente diferente do corpo de Primeiro Amor, mas muito importante também, para mim, como atriz, de compreender. Só que aquele começo, em que eu fico ali, tudo é tão buraco… Beckett é difícil, você sozinha no palco, o texto, tudo muito difícil; então, esse estado corpóreo que a gente achou, também pela condução da Bebel, devido à importância do modo como ela pensa a cena e o espaço, a maneira de por a música e ficar improvisando – improvisando, não –, criando coisas… Então, tudo isso, foi dando uma estrutura, uma elaboração para a cena, que para mim, como atriz, foi muito importante. Primeiro Amor tem uma narrativa, e eu tenho que ter muito folêgo para dar conta dela, já no Moi Lui há uma construção dramatúrgica da Bebel, na qual ela fez recortes precisos, que eu adoro, focados na busca da mãe, nos encontros com o guarda… São momentos, não tem uma sequência. É um abismo: você está ali, às vezes a palavra quase morre na tua boca e, de repente, ela é muito violenta.

CASSIANA: E como era lidar com os objetos em cena?

ANA: Olha, eu nem vou poder mentir porque a diretora está do meu lado. (risos) Foi muito difícil. Isso tudo é culpa da Bebel, a invenção dessas coisas… Eu fazia tão mal, que ela foi tirando… (risos) (Isabel Cavalcanti nega com as mãos) Era muito difícil… Ao mesmo tempo, o que está lá, o que ficou, a maletinha, o caixote, eu adoro. Mas é isso: lidar com os objetos foi uma coisa do ensaio, de eu ter também uma compreensão da concepção, que sempre foi tranquila e clara para mim. Enfim, a dificuldade foi mesmo minha como atriz, em fazer essas coisas. Coisas normais, como acender velas, que eu fui experimentando e conseguindo uma forma de fazer no processo.

CASSIANA: E esse encontro de vozes: Molloy e o narrador A. Como foi encenar esse diálogo em Moi Lui?

ANA: Eu acho muito legal a construção da dramaturgia da Bebel e a criação desse personagem A com o Molloy, porque possibilitou um diálogo que coube inteiramente ali, que não perturba nem quem conhece o Beckett, nem quem não o conhece. Esse personagem vai se misturando sem parecer que é um personagem, é uma construção dramatúrgica pequena e precisa.

ISABEL CAVALCANTI

CASSIANA: Por que convocar Molloy, e não outro personagem de Beckett, para esse diálogo com o narrador A., de Moi Lui?

ISABEL: Tenho achado um pouco desconfortável falar sobre as peças que dirijo ou em que atuo. Sempre acho que já está tudo lá e as coisas se explicam por si, ou não se explicam e é isso mesmo… mas sei que é importante responder, você está perguntando, então, é importante. Quando me chamam para dirigir um texto de Beckett ou qualquer espetáculo, eu nunca me aproximo do texto de forma intelectual, porque o teatro não é uma tese acadêmica. Se eu for escrever uma tese acadêmica, a minha pegada em cima do Beckett vai ser de outra natureza, muito mais racional. Evidentemente que na tese acadêmica também estão os afetos e as paixões e toda uma subjetividade do autor daquela tese, mas é um trabalho acadêmico. O teatro não é nada acadêmico; o teatro é o lugar dos afetos, dos encontros. Beckett é um dos meus autores preferidos. Gosto especialmente da primeira trilogia – Molloy, Malone Morre e O Inominável . Acho uma das coisas mais espetaculares, dentro do que ele escreveu.

CASSIANA: Então, Moi Lui não é uma adaptação de Molloy para o teatro? Como é a dramaturgia da peça?

ISABEL: Primeiro eu escolhi um percurso de narrativa a partir da primeira parte da novela Molloy. Eu fiz uma opção de trajeto para o narrador. O percurso dele até a casa da mãe é enorme no livro. Eu fiz muitos cortes, privilegiando determinadas cenas e tomando como fio condutor a ida à casa da mãe. Mas Molloy faz parte de uma trilogia na qual Beckett destrói a figura de narrador. No Moi Lui eu posso dizer que eu tenho um personagem. Eu fiz uma escolha para que fosse assim. Eu poderia ter me prendido às experimentações de linguagem que esse romance representa, mas eu fiz essa escolha. A partir das interferências que eu fiz no texto da novela, entraram no espetáculo reminiscências de outras experiências minhas com a obra do Beckett, especialmente um pensamento da cena a partir da luz (pensar a cena a partir de jogos de luz e escuridão), memórias de infância, sonhos meus recorrentes. A peça é um devaneio meu sobre o texto. Devaneio a que vim juntar o que a Ana, Tomás, Rui e Tato trouxeram. Por exemplo, uma das imagens que me perseguiam, desde o começo, era a praia (que também está muito presente no Beckett). É uma imagem que me diz muito, porque eu nasci na Urca (RJ), perto da praia e estar perto do mar, sentir o cheiro do mar e da areia me traz muitas lembranças. São memórias que me fazem ser como sou hoje. Já sonhei muito com o mar, tive pesadelos com o mar, com ressacas, ondas… sinto uma falta danada quando viajo para um lugar distante do mar, da praia, do litoral. Daquela abertura para a solitária imensidão azul do infinito.

CASSIANA: Como foi o processo de ensaio de Moi Lui?

ISABEL: Quando eu entrei na sala de ensaio, na ocasião que a Ana me fez esse convite para dirigir a peça, foi muito bacana, não só pelo envolvimento, pela paixão que eu tenho por Beckett, mas por ter como parceira de trabalho a Ana. Eu conheci a Ana em cena, quando eu estava saindo da escola (no espetáculo Os Gigantes da Montanha, dirigido por Moacyr Góes). Aí eu trabalhei dez anos na Companhia Teatral do Movimento, que ela dirigiu. Depois eu saí, mas a gente continuou trabalhando junto. Nesses meus vinte dois anos de carreira, a gente nunca se afastou completamente. É uma grande parceira, uma pessoa com que tenho muita intimidade. É bom entrar em uma sala de ensaio com uma pessoa que é tão sua parceira.

CASSIANA: No princípio dos ensaios, havia uma definição a respeito da concepção do espetáculo?

ISABEL: Eu procuro entrar na sala de ensaio disponível para o acaso. A dramaturgia estava bem adiantada, mas o desenho da encenação não. Porque, para mim, dentro do espetáculo, a figura mais importante é o ator. Você pode tirar tudo (luz, cenário, figurino), mas o que eu acho mais bonito, mais emocionante, é o ator, a figura humana ali, com todas as fragilidades, as vulnerabilidades, as instabilidades, que fazem um ser humano. O ator está completamente vulnerável na sala de ensaio. Então, embora eu já tenha lido muito do Beckett, tenha feito a tese e escrito o livro, interpretado personagem de peça, quando eu entro na sala de ensaio, gosto de deixar-me afetar por aquele ator com suas peculiaridades. Na sala de ensaio, o conhecimento que tenho sobre Beckett está ali, mas ele não determina os caminhos que a peça irá tomar. Aquele espetáculo só vai acontecer por causa daquele ator. O que é imprescindível é deixar o jogo correr, deixando tudo aberto ao imprevisível. Tatear nesse terreno beckettiano da incerteza, da inconstância, que, afinal, é como vejo a vida.

Ana Kfouri em Moi Lui. Foto: Dalton Valerio.

CASSIANA: A Ana ressaltou que, desde o começo, havia uma preocupação muito grande, de sua parte, com o espaço, com a concepção de espaço da peça. Você pode falar um pouco sobre isso?

ISABEL: Eu sabia que o espaço era aberto e fechado ao mesmo tempo, circular, uma cabeça, um palco e uma praia. A praia, em especial, é um espaço recorrente em Beckett. Tanto na prosa, no teatro ou na poesia, a imagem da praia é freqüente. Em Fin, por exemplo, há um personagem que some no mar, o que traz essa imagem do oceano como um lugar do desconhecido, do inconsciente, da imensidão e da solidão. Desde o início, foram muito fortes as imagens da areia e da escada para mim. Eu sabia que haveria uma escada – essa imagem permanecia comigo nos ensaios – e que a cadeira tinha que ter uma roda, porque a Ana ia ficar sentada nessa cadeira, imóvel, e a roda de bicicleta (que era a bicicleta do Molloy), apontava para uma mobilidade. Esse objeto híbrido evocava esse movimento híbrido de mobilidade e imobilidade. Algo móvel que não sai do lugar. Foi isso que eu apontei para o Rui (cenógrafo), porque o teatro é também o lugar dos encontros. Em cada espetáculo o trabalho de direção vai dar um sentido que aquela peça pede, ou que a situação impõe, as circunstâncias… Minha direção, neste caso, foi também orquestrar esses encontros todos. Não me interessa dizer “essa é minha concepção de Molloy, vou pegar a Ana e encaixar aqui”… Eu não sou assim, não parto de ideias pré-concebidas. Então tem o meu encontro com a Ana, meu com o cenógrafo (Rui Cortez), do cenógrafo com o iluminador (Tomás Ribas), meu com o Tato (músico), da Ana com eles, da Ana com o texto e das idéias que ela já tem do Beckett; e também do Primeiro Amor, que acaba invadindo… Você não controla a criação. E o bonito de você chegar na sala de ensaio é você se confrontar com essa coisa avassaladora e indeterminada da criação. Foi a partir desse tipo de processo que o Rui concebeu a cadeira do espetáculo. Uma cadeira fina, quase sem corpo, um esqueleto, que se tornou muito importante na composição poética da cena.

CASSIANA: E a questão de sua infância, que o programa menciona?

ISABEL: Minha infância foi muito lúdica e bastante caótica. Sou de uma família de oito irmãos, então há sempre um certo abandono, porque você realmente não tem o pai e a mãe para você. Minha casa não tinha televisão, meu pai não gostava. Então, eu brincava e lia, o tempo todo. Com oito anos eu tinha lido todo o Monteiro Lobato. Não havia tempo ocioso. As relações eram intensas, fraternas, mas ao mesmo tempo de guerra… (risos). Cada um tinha que se virar pra se achar naquela multidão… Brincávamos muito de teatro e íamos muito ao cinema. Eu morava na Urca, numa casa bem grande, o que dava a entender que éramos ricos, mas como eram várias bocas pra alimentar, meu pai e minha mãe tinham que trabalhar muito para dar conta de toda a família. Havia um certo sentimento de escassez material, ao lado da abundância intelectual.

CASSIANA: A Ana possui uma fisicalidade muito forte. Como foi lidar com esse corpo, durante o processo?

ISABEL: Atuei de forma parecida como quando dirigi o Sérgio Britto, na montagem de Beckett. Ou seja, com coisas que sabia que eram próprias da Ana, de sua corporeidade. O corpo dela é vigoroso. Expressivo. Eu caminhei no sentido de esvaziar a força desse corpo. A força dele viria pela impotência, por uma expressão de não-sentido, oposto a uma fala ininterrupta, a uma cabeça que não pára nunca de funcionar. Porque em Molloy o que temos é uma fala muito intensa e um corpo que vai se deteriorando. Eu queria, nessa encenação, um corpo quase morto, um corpo expressivo pela inexpressividade, presente pela ausência. Foi exaustivo, difícil, mas muito interessante, ao mesmo tempo. A Ana mexia muito a mão, não podia mexer a mão… Até ir encontrando isso… E aí eu entendo o desconforto dela com os objetos, não dá vontade mesmo de mexer em nada, só dá vontade de falar, pois havia todo esse trabalho de retirar a expressividade do corpo, daí o incômodo que ela sentia. Dentro daquele espaço, que era tudo: o espaço do teatro, assumido; o espaço que era o incógnito; o desconhecido. E eu tinha os olhos da Ana, maravilhosos, que são como dois faróis em cena. Eles já falavam por si. Soltei a Ana naquele espaço, propus jogos com o texto, depois fui trabalhando uma “naturalidade” na fala, jogando fora toda a teatralidade. Eu queria uma fala bem intimista.

CASSIANA: E a questão dos objetos em cena? Como foi dirigi-la nesse sentido?

ISABEL: Pois é, a Ana disse que ela fazia mal… (risos) Não foi nada disso. Apenas testamos coisas que às vezes funcionavam, às vezes não. E isso é natural, faz parte do processo. Mas os objetos são importantes para a poética do espetáculo. Com o Rui Cortez, que é um grande parceiro meu, encontramos essa textura em que a personagem se confunde com o espaço e com os poucos objetos: a cadeira, o caixote, a escada de pano, as luminárias da Bahia, os fósforos riscados, a malinha que o Fernando Mello da Costa emprestou. Aliás, é importante falar sobre essa mala. O Fernando já havia feito a cenografia da peça do Sérgio e o espetáculo que dirigi sobre o Rimbaud. No Rimbaud, ele queria usar essa malinha, que é uma malinha dele, que já esteve em peças do Aderbal… Eu me apaixonei pela mala. Essa mala é vertical, com várias gavetinhas e tem duas rodas. Quando a Ana me chamou para o Projeto, eu pensei: “Vou usar essa mala!” Porque ela tem vários compartimentos pequenos, é engenhosa, mas disfuncional, não cabe nada nela. É um tudo que é nada ao mesmo tempo, coisa que tem tudo a ver com esse universo beckettiano. Fernando é um dos maiores cenógrafos do Brasil e essa mala é muito especial. Ela traz uma espécie de memória do teatro, porque ela já passou por vários cenários de outras peças brasileiras. Ela pode ser um travesseiro, uma tumba, uma pedra… Mas todos os objetos utilizados são elementos que, aliados à interpretação da Ana, conferiram uma poética para a cena, que busca esse estado de abandono, sobre o qual já falamos.

CASSIANA: A questão dos gêneros, no que diz respeito à Beckett, é controversa. Como foi lidar, no processo de direção, com essa fronteira, que oscila entre o sério e o jocoso?

ISABEL: No Beckett não há essa distinção de gêneros. Não é trágico, nem cômico. Nós batíamos muito nessa tecla durante os ensaios: de encontrar esse lugar do patético, muito próximo a uma auto-ironia O tempo todo a gente pensava nisso “Está ficando pesado” ou “ Está leve demais…” A cumplicidade do ator e do diretor nessa construção é muito importante, porque encontrar esse lugar na fronteira é muito difícil, mas acho que conseguimos.

CASSIANA: Você enxerga um niilismo na obra de Beckett?

ISABEL: Não. Vejo uma afirmação pela negação. Beckett não está falando sobre a ausência de sentido, pelo contrário, é sobre a impossibilidade de não fazer sentido. Sempre haverá produção de sentido, tentativa de conferir, de dar sentido. E eu vejo um amor e uma compaixão do Beckett tão grande pelo ser humano – porque ele fala da condição humana a partir daquilo que nós temos de mais frágil, de mais vulnerável – que ele acaba potencializando o ser humano. É assim que eu vejo Beckett. Eu entendo quem lê o Beckett e diz “nossa que coisa triste, que situação miserável”, mas para mim a vida é assim, a vida é muito difícil. Beckett faz isso com tanta poesia e humor, que não consigo conciliar isso com uma percepção de miséria, mas com uma compreensão profunda da condição humana. Ele mesmo diz: “Eu escolhi falar da impotência”. E o corpo está sempre presente, não há abstração, é nosso corpo que se deteriora que está ali.

Beckett é um artista genial. Ele se debate com o sujeito cartesiano. Ele interroga Descartes o tempo todo e junto a tantos embates, indagações, formalizações, ele é todo sentimento. Para terminar eu adoro uma coisa que o Beckett disse numa entrevista a Gabriel D’Aubarède, em Nouvelles Littéraires: “Não há chave ou problema (em minha obra). Eu não teria tido nenhuma razão para escrever meus romances se pudesse ter me expressado em termos filosóficos.” O entrevistador retruca: “E qual foi esta razão, então?” O Beckett responde: “Não faço a mínima ideia. Não sou intelectual. Tudo que sou é sentimento. Molloy e os outros vieram a mim no dia em que tomei consciência da minha loucura. Só então comecei a escrever as coisas que sinto.” O Beckett é um dos maiores artistas dos últimos séculos… é um privilégio ter nascido na mesma época que ele e poder trabalhar com as coisas todas que ele escreveu, pensou e produziu. Uma obra monumental.

Primeiro Amor

Tradução: Célia Euvaldo

Concepção: Antonio Guedes

Atuação: Ana Kfouri

Assistente: Flávia Naves

Vídeos, identidade visual e projeto gráfico: Helena Trindade

Assistente de design gráfico: Patrícia Gerstner

Sonoplastia: Antonio Guedes

Assistência técnica de vídeo: Renato Livera

Fotos de divulgação: Dalton Valerio

Operador de som, luz e vídeo: Vitor Emanuel

Cenotécnica: Carlos Augusto Campos e Leandro Ribeiro – articulação cenografia

Direção de produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi

Produção: Diálogo da Arte Produções Culturais

Realização: Cia. Teatral do Movimento

Idealização: Ana Kfouri

Indicações:

Indicação de Atriz, Prêmio Questão de Crítica.

Moi Lui

Concepção, direção e dramaturgia: Isabel Cavalcanti

Atuação: Ana Kfouri

Direção de arte: Rui Cortez

Iluminação: Tomás Ribas

Trilha Sonora: Tato Taborda

Identidade visual e projeto gráfico: Helena Trindade

Fotos de divulgação: Dalton Valerio

Gerente de projeto: Rodrigo Gerstner

Direção de produção: Ana Paula Abreu e Renata Blasi

Produção diálogo da arte: Produções Culturais

Realização: Cia. Teatral do Movimento

Idealização: Ana Kfouri

Indicações e Prêmios:

Indicação Melhor Atriz, Espetáculo, Luz e Cenário Prêmio Cesgranrio de Teatro.

Indicação Melhor Direção e Luz Shell 2013. Pela Iluminação, ganhou Shell, Cesgranrio e Questão de Crítica.

Notas:

(1) CAVALCANTI, Isabel. Eu Que Não estou Aí Onde Estou: O Teatro de Samuel Beckett: (o sujeito e a cena entre o traço e o apagamento). Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

(2) A Última Gravação de Krapp / Ato Sem Palavras (dirigido por Isabel Cavalcanti)

(3) Discurso dos animais: O animal do tempo (dirigido por Antonio Guedes) e A inquietude (dirigido por Thierry Trémouroux).

Leia nesta edição da Questão de Crítica:

Conversa com Rubens Ruche sobre a dramaturgia de Beckett, por Manuel Fabricio A. de Andrade e Suely Master: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/sonoridades-beckettianas/

Estudo de Cláudia Maria de Vasconcellos sobre o estranhamento na dramaturgia de Beckett: http://www.questaodecritica.com.br/2014/03/relacao-entre-palco-e-plateia-no-teatro-de-samuel-beckett/


Cassiana Lima Cardoso é Doutoranda em Literatura Comparada na UFRJ.

Vol. VII, nº 61, março de 2014

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